COVID-19 E OS IMPACTOS NA ASSISTÊNCIA AO PARTO NO BRASIL
COVID-19 E OS IMPACTOS NA ASSISTÊNCIA AO PARTO NO BRASIL
Carolina Castelo Branco de Melo[2]
Iago Barbosa Silva Araújo[3]
As chamadas boas práticas, no âmbito da obstetrícia, são aquelas utilizadas visando à utilização das melhores evidências científicas para uma gestação e nascimento respeitosos, e se concretizam nas condutas das equipes de saúde que estão alicerçadas no que se chama de Medicina Baseada em Evidências[4]. O Movimento pelo Parto Ativo teve início em Londres, em 1982, com o “Manifesto pelo Parto Ativo”, cujo modelo inspirou o Movimento pela Humanização do Parto, no Brasil, que, além de ser baseado nas evidências científicas, visa resgatar o protagonismo do corpo da mulher no cenário do parto.
Observa-se, portanto, que o movimento da humanização do parto dedica-se a exigir o básico, isto é, o devido respeito à mulher em todo o seu ciclo gravídico-puerperal.
As diretrizes de parto respeitoso estão previstas em Recomendações da Organização Mundial da Saúde e foram atualizadas em 2018. Diversas leis brasileiras, a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente, preconizam a “atenção humanizada” na prestação do serviço de saúde obstétrica, para favorecer a possibilidade de uma experiência positiva de parto e puerpério.
Contudo, a realidade da assistência médico-hospitalar é outra. O modelo praticado é marcadamente intervencionista e centrado no profissional detentor do conhecimento biomédico, o que revela a grande dificuldade de se reduzirem os índices de mortalidade materna e infantil no Brasil.
A pandemia do COVID-19, como em diversos outros setores, evidenciou também as fissuras do sistema nacional de saúde obstétrica. Até o mês de julho de 2020, 80% (oitenta por cento) dos óbitos maternos por coronavírus no mundo ocorreram com brasileiras[5] e, por essa mesma razão, é necessário reafirmar direitos reprodutivos da mulher, em sua dimensão protetiva.
Diante desse quadro, torna-se necessário debater sobre como conciliar as necessárias restrições de liberdades, garantidoras da saúde coletiva, com o direito à atenção humanizada à gestante-puérpera, em tempos de pandemia de COVID-19. Neste estudo, utiliza-se o método dedutivo, com revisão bibliográfica e narrativa de relatos.
DIREITOS DA MULHER NO CICLO GRAVÍDICO-PUERPERAL
Embora haja indiscutível pertinência didática em se distinguir direitos humanos e direitos fundamentais, a análise dos conceitos em nível de complementariedade serve mais aos propósitos deste trabalho, afinal as respectivas teorias apontam, finalisticamente, para um só conjunto de prerrogativas que garantem o desenvolvimento da pessoa humana em condições de dignidade e sem as quais se torna impossível a própria existência.
Tem-se que, humanos ou fundamentais, os direitos resultam de processos de lutas e conquistas, sendo, portanto, históricos. No dizer arendtiano, tais direitos não são um dado, mas um construído, que também se permite reinventar[6]. Outrossim, apoiam-se na ideia de igualdade, que, ao contrário de negar as diversidades biológicas e culturais entre seres humanos, designa que diferença alguma justifica um tratamento institucional discriminatório.
Se, por um lado, a teoria dos direitos fundamentais revela que, inicialmente, eles prestigiaram um segmento social muito específico, o de homens brancos e ricos, hoje, no contexto do constitucionalismo moderno, eles se prestam a uma tarefa muito mais complexa que à mera limitação de poder; dedicam-se também à emancipação dos grupos vulneráveis.
Por essa mesma razão, a despeito do suposto grau de amplitude que lhes diferencia, direitos fundamentais e direitos humanos são expressões da mesma realidade, qual seja, do comprometimento multinível (respectivamente, interno e internacional) do Estado com a proteção de toda e qualquer pessoa.
Exatamente por conta de sua opção democrática, é que o Brasil, ao promulgar a Constituição Federal (CF) de 1988, adota entre os seus fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, II e III), enquanto estabelece para si objetivos tais como reduzir as desigualdades e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, III e IV), dando visibilidade jurídica a diversos setores populares.
Outrossim, o seu Título II é completamente dedicado à proteção dos direitos e garantias fundamentais, fazendo constar no art. 5º, §2º, que aqueles expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais (de direitos humanos) em que a República Federativa do Brasil seja parte.
No particular dos direitos das mulheres, o texto constitucional reflete o combate ao privilégio patriarcal nos espaços públicos e privados da sociedade, encampado com dificuldade por algumas poucas parlamentares – 26 (vinte e seis) dos 559 (quinhentos e cinquenta e nove) constituintes – as quais representavam a agenda de gênero, na Assembleia Nacional. A denominada isonomia entre os gêneros masculino e feminino foi proclamada já no art. 5º, I, da CF, segundo o qual homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, constando, ainda, no art. 226, §5º, que dispõe que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal deverão ser exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
Vale salientar que, quando da promulgação da Constituição Cidadã, havia poucos anos da ratificação da Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher pelo Brasil. O citado instrumento de proteção internacional, que versa sobre a necessidade de se proporcionarem às mulheres condições para o exercício de direitos em pé de igualdade com os homens, foi adotado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1979. Cinco anos depois, foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro, por meio do Decreto nº 89.460, de 20 de março de 1984.
Não obstante os avanços legislativos, em pleno século XXI, meninas e mulheres ainda são constrangidas à heterossexualidade, à monogamia e à maternidade. Este domínio, que se projeta no âmbito da família, da comunidade e do Estado, está intimamente relacionado ao trato e controle da reprodução. Por muito tempo, a reprodução biológica e social foi uma responsabilidade quase que exclusiva da mulher, supostamente dotada do corpo e sentimentos necessários à tarefa de cuidar do pequeno ser humano. Essa condição na hierarquia reprodutiva é o maior fator de dificuldade de acesso por mulheres à escolaridade, à profissionalização, à renda e à participação política[7].
O controle progressivo sobre a decisão reprodutiva é, sem dúvida, uma urgência para a cidadania feminina, vez que, estando menos suscetíveis a uma gravidez não planejada e suas consequências, as mulheres conquistam identidade política e liberdade. Nesse movimento pela titularização de direitos sexuais e reprodutivos, destacou-se a necessidade do acesso ao serviço médico e ao planejamento familiar:
Para ilustrar, cabe citar, como exemplo da discriminação contra a mulher no campo da saúde, estudo de Amartya Sen, “Missing women”, que evidencia como a omissão de políticas públicas na área da saúde, endereçadas às mulheres, resultou na morte evitável de milhões de mulheres. Isto significa que pertencer ao gênero feminino interfere no modo pelo qual os direitos humanos são exercidos, respeitados ou violados. A respeito, merece destaque a problemática da mortalidade materna como violação aos direitos humanos (direito à maternidade segura), considerando que é um dos fatores de mortalidade mais evitáveis e preveníveis – estima-se que 98% dos óbitos maternos que ocorrem no Brasil sejam evitáveis[8].
Nesse sentido, a Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim de 1995 afirma que, “na maior parte dos países, a violação aos direitos reprodutivos das mulheres limita dramaticamente suas oportunidades na vida pública e privada, suas oportunidades de acesso à educação e o pleno exercício dos demais direitos”.
Por oportuno, é preciso distinguir: os direitos sexuais se referem basicamente à liberdade de expressão sexual, à privacidade, intimidade e segurança para o seu exercício, enquanto os direitos reprodutivos consistem no conjunto de direitos relativos ao planejamento familiar e decidir livre e responsavelmente sobre o número, espaçamento e a oportunidade de ter filhos.
Como instrumento de controle social que é, o Direito nunca foi indiferente ao corpo humano, suporte físico da personalidade, que delimita o início e fim da existência. Como norma de gênero neutro, é atualmente garantido pelo respeito à integridade física, caminhando, ainda que lentamente, para uma proteção menos engessada, com relativa autonomia do titular sobre sua disposição[9]. De acordo com o art. 13, caput, do Código Civil (CC), salvo por exigência médica, somente é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.
Inobstante, na prática, os corpos de mulheres e pessoas de sexualidades divergentes, vulnerabilizados pelo desvalor simbólico de suas existências, não dispõem da mesma proteção social que os corpos masculinos e, por isso, cada vez mais, os indivíduos se mobilizam, recusando-se à mera tutela abstrata de seus corpos e exigindo respeito e prestações positivas para conseguirem se desenvolver em condições de dignidade.
Em muitos casos, são necessárias medidas de coerção para efetivação de suas escolhas, notadamente no campo da saúde reprodutiva. Segundo estudo realizado pela Fundação Perseu Abramo, em 2010, uma em cada quatro mulheres brasileiras relatou uma experiência de abuso ou violência cometida durante o atendimento médico-hospitalar. Por essa razão, cresce o movimento político e jurídico para o combate a nomeada violência obstétrica, reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), na Declaração WHO/RHR/14.23 de 2014, como autêntica violação de direitos humanos[10].
Embora o Ministério da Saúde, no dia 03 de maio de 2019, tenha proferido despacho, defendendo a abolição do termo de seus documentos oficiais de políticas públicas, as Recomendações nº 29/2019 do Ministério Público Federal e nº 5/2019 do Conselho Nacional dos Direitos Humanos reiteraram a legitimidade do termo.
A apropriação do corpo e de processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, durante o ciclo gravídico-puerperal, contribui para os elevados índices de mortalidade e morbidade materna. Segundo o Ministério da Saúde, são evitáveis 92% (noventa e dois por cento) dos óbitos que ocorrem durante ou até 42 (quarenta e dois) dias após o parto e com causa relacionada à gravidez. O mencionado ilícito, por hora, se encontra tipificado nos artigos 1 e 2, “b”, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), ratificada pelo Decreto nº 1.973, de 01 de agosto de 1996[11].
Para que o Brasil atenda ao compromisso internacional de promoção da igualdade entre os sexos, é necessária a melhoria da saúde materna, que somente será obtida mediante a promoção de direitos tais quais: o atendimento pré-natal; atenção humanizada na gravidez, parto e puerpério; nutrição adequada; e acompanhante, de sua escolha, durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. Todos se encontram positivados em normas de proteção internacional (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher) e leis federais (a saber, Lei nº 8.069/90, Lei nº 9.263/96 e Lei 11.108/2005).
ESTADO DE EMERGÊNCIA E COVID-19
O estudo de direitos humanos e fundamentais, pela sua própria concepção de liberdades, abrange, necessariamente, a análise das hipóteses de restrições, afinal, como cogitar da prevalência absoluta de um direito subjetivo diante de outro, previsto por norma de mesma envergadura, sem ofensa aos princípios de unidade e concordância[12]? Os limites, portanto, decorrem da necessidade de conciliar, em determinado contexto fático, os direitos igualmente protegidos entre si.
Tais restrições denotam, sim, uma interferência desvantajosa do poder público sobre o bem jurídico tutelado e, por essa razão, somente se admitem válidas se impostas por normas constitucionais ou em virtude delas.
No atual contexto de crise sanitária provocada pela pandemia da COVID-19, as facilidades de contaminação, a inexistência de tratamento médico comprovadamente eficaz e a incapacidade do sistema de saúde para assistir em demanda potencialmente impraticável levaram os Estados, por recomendação da OMS, a adotarem medidas de isolamento social e outras restrições de direitos.
Nessa linha de intelecção, desde janeiro de 2020, o contágio rápido e agressivo do novo vírus, tem desafiado as fronteiras dos países e tem se alastrado pelos continentes, com explosão de epicentros de contaminação espalhados por todas as localidades globais, com aumento desenfreado do número de mortos. Por esse aspecto, a Organização Mundial da Saúde – OMS, em 11 de Março de 2020, classificou o SARS-CoV-2 como uma pandemia, reconhecendo o vírus como um problema sanitário internacional[13].
Em 3 de fevereiro de 2020, por meio da Portaria nº 188, o Ministério da Saúde (MS) do Governo Federal do Brasil declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), instituto que tem sua necessidade, funcionalidade e meio regulamentados pelo Decreto 7.616/2011, cujo art. 2º estatui que a ESPIN só deve ser declarada em situações que demandem o emprego urgente de medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, danos e agravos à saúde pública. Como requisito circunstancial, a pandemia da COVID-19 restou enquadrada na situação epidemiológica, prevista pelo art. 3º, I, do mesmo decreto.
Logo após a declaração de ESPIN, foi promulgada a Lei 13.979/2020, conhecida como Lei da Quarentena, que, objetivando a proteção da coletividade, dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, autorizando as autoridades competentes a realizarem medidas restritivas, em virtude da situação sui generis. A lei recomenda, entre outras diligências, o isolamento, a quarentena, a determinação compulsória de testes e exames, exumação de cadáveres e a requisição de bens e serviços.
Como marco legal, a partir dela, sucederam-se leis locais, atos administrativos e decisões judiciais diversas, a fim de reorganizar a sociedade brasileira, em meio ao grave contexto de crise sanitária, e conter a propagação da doença, promovendo a segurança da saúde coletiva e, notadamente, das populações mais vulneráveis. Para tanto, foi necessário restringir a liberdade de locomoção e suspender a autorização de atividades econômicas.
De toda forma, segundo diversas entidades que atuam em prol da humanização do parto, a situação de anormalidade evidenciou fragilidades e contradições dos sistemas de atenção à saúde de mulheres e bebês. Elas denunciam que as medidas de prevenção e controle da pandemia têm sido desvirtuadas para promover, por exemplo, o desrespeito ao direito a acompanhante no parto, ao acompanhamento por uma doula e de não ser induzida a uma cesárea desnecessária.
[…] a conjuntura desta crise sanitária do coronavírus não pode oportunizar a construção de uma narrativa segundo o qual os tempos atuais exigiriam a adoção de uma “ Constituição de Emergência”, através de uma “ Jurisprudência de Crise”, a justificar a suspensão ou a restrição desproporcional dos direitos individuais, bem como a normalização de abusos por parte das autoridades públicas, como se a Constituição Federal de 1988 tivesse cessado a sua vigência e eficácia[14].
Com efeito, os direitos das mulheres, arduamente conquistados e ainda em processo de efetivação, não podem sofrer restrição desproporcional, com a legitimação do abuso e da violência sobre os seus corpos, motivo pelo qual se torna necessário refletir sobre as boas práticas de assistência nessa conjuntura.
BOAS PRÁTICAS PARA O NASCIMENTO EM MEIO À CRISE PANDÊMICA
Da mesma forma que os demais direitos fundamentais até então conquistados e garantidos às mulheres, o direito fundamental da mulher às boas práticas de atenção ao parto e ao nascimento continua vigente.
Mesmo no cenário de excepcionalidade em saúde pública e apesar da sucessiva edição de decretos visando regulamentar as necessárias restrições, não foi editada, aprovada nem sancionada lei stricto sensu, seja municipal, estadual ou federal, que tenha suspendido ou revogado os direitos referentes à atenção humanizada.
Ocorre, todavia, que o MS passou a editar diversas notas técnicas com vistas a orientar o cumprimento de tais direitos no período emergencial da pandemia, as quais se encontram sistematizadas no Portal de Boas Práticas, uma iniciativa do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e Adolescente Fernandes Figueira (IFF), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do próprio MS[15].
As principais notas técnicas emitidas em relação às questões ligadas a gestação e ao parto são as seguintes[16]: a) NOTA TÉCNICA Nº 7/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS, que trata da atenção às gestantes no contexto da infecção COVID-19; b) NOTA TÉCNICA Nº 9/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS, que traz recomendações para o trabalho de parto, parto e puerpério durante a pandemia de COVID-19; c) NOTA TÉCNICA Nº 12/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS, cujo assunto é a infecção COVID-19 e os riscos às mulheres no ciclo gravídico-puerperal.
A Nota Técnica nº 7/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS traz orientações direcionadas à atenção primária à saúde das gestantes. Em suma, o documento recomenda que o protocolo de diagnóstico de COVID-19 em gestantes siga o regulamento para a população adulta geral. Assim, orienta que as gestantes com síndrome gripal tenham suas consultas e exames de rotina adiados por 14 (quatorze) dias e, quando necessário, sejam atendidas em local isolado das demais pacientes; quanto às demais gestantes, afirma que devem ter preservado seu atendimento. Consta, porém, que todas devem ter a continuidade das ações de cuidado pré-natal.
Por sua vez, a Nota Técnica nº 9/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS, a qual detalha as recomendações para o trabalho de parto, parto e puerpério durante a pandemia de COVID-19, orienta que as pacientes e seus acompanhantes passem por triagem, a fim de verificar casos suspeitos ou confirmados da doença antes de serem admitidos no sistema obstétrico.
Resumidamente, recomenda a referida nota técnica que, em casos de triagem negativa para COVID-19, tanto a parturiente quanto o seu acompanhante devem ser admitidos conforme os protocolos habituais de boas práticas já existentes, evitando-se, porém, o revezamento desses acompanhantes, a fim de diminuir a circulação de pessoas no ambiente hospitalar. Já em casos suspeitos ou confirmados de infecção de COVID-19, ainda nos termos da nota técnica supracitada, a mulher em trabalho de parto deve ser transferida para quarto em isolamento, utilizar máscara cirúrgica, receber orientações e meios de higienizar as mãos e receber cuidado de pessoal devidamente protegido com equipamentos de proteção individual.
Em relação ao acompanhante, a Nota Técnica nº 9/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS orienta que deverá ser alguém do convívio diário da parturiente e, se não for de convivência próxima nos dias anteriores ao parto, recomenda que este não deva ser permitido. Quanto ao acompanhante no pós-parto, recomenda que deve ser permitido apenas em casos de instabilidade clínica da mulher ou em condições específicas do recém-nascido, sugerindo-se a suspensão temporária nos demais casos.
Relativamente ao trabalho de parto e ao parto, a referida nota técnica ressalta que a infecção pelo novo coronavírus não é, por si só, uma indicação para antecipação do parto, a não ser que haja uma necessidade de estabilidade de oxigenação materna.
A seu turno, a Nota Técnica nº 12/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS traz questões específicas referentes aos riscos da infecção pelo SARS-CoV-2 às mulheres no ciclo gravídico-puerperal. Isso porque, conforme consta da nota técnica, as alterações fisiológicas no organismo da gestante e da puérpera levam à predisposição para infecções graves, de modo que a saúde dessas mulheres deve ser preservada ao máximo, a fim de evitar o contágio pelo novo coronavírus e, consequentemente, a mortalidade materna.
Apesar de todo esse leque de recomendações que visam à manutenção das boas práticas obstétricas nos serviços de saúde, têm sido corriqueiros os relatos de descumprimento desses direitos. As notícias narradas pelas mulheres ou os fatos que são presenciados por profissionais ligados à Humanização do Parto, sejam doulas, enfermeiras, obstetrizes, obstetras, ou mesmo profissionais da área jurídica que atuam ou estudam essa temática, são de desrespeito a direitos básicos como direito ao acompanhante (previsto em lei federal) e de escolha à via de parto (com aumento expressivo do número de cesarianas).
Tais situações trazem uma enorme preocupação no que se refere ao cumprimento dos direitos fundamentais conquistados pelas mulheres ao longo dos anos, principalmente no que concerne ao ciclo gravídico-puerperal. As notas técnicas emitidas pelo MS já reduzem sobremaneira a esfera de tais direitos e, na prática, os serviços de saúde os têm restringido ainda mais ao utilizar a pandemia de COVID-19 como justificativa para as situações mitigadoras.
Assim, um dos papéis da academia tem sido o de levar informação acerca das condutas mais atualizadas relacionadas ao parto e ao nascimento, as chamadas boas práticas, a fim de permitir que as mulheres e suas famílias possam exercer suas escolhas no contexto do parir e do nascer.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pandemia do coronavírus tem levado os países à adoção de medidas sanitárias diversas e, até o momento, na falta de um tratamento preventivo eficaz, a que se revela mais eficiente para conter a propagação acelerada da doença tem sido o isolamento social.
No entanto, o direito de bem parir e nascer, ainda carente de plena efetivação, não pode ser atacado, sob a justificativa de enfrentamento ao COVID-19, porque desproporcional e abusivo. Afinal, no outro prato da balança, também estão os direitos à vida e à saúde, no caso, reprodutiva.
Uma má experiência de nascimento pode ser traumática a ponto de os seus efeitos repercutirem por toda a vida da mãe e do bebê. Boas práticas no contexto do parto e nascimento promovem o vínculo materno-filial e cumprem com a responsabilidade do Estado brasileiro de proteger a maternidade e a infância.
[1] Mestre em Ciências Jurídicas, na área de concentração em Direitos Humanos, pelo PPGCJ/UFPB. Especialista em Direito Público, com ênfase em Direito Internacional de Direitos Humanos. Professora de Direito. Analista Judiciária do Tribunal de Justiça da Paraíba. Doula. E-mail: palomaldf@gmail.com.
[2] Mestranda em Educação Profissional e Tecnológica pelo ProfEPT/IFPB. Especialista em Direito Público. Analista Processual do Ministério Público da União. Doula e Educadora Perinatal. Pesquisadora na área de Violência Obstétrica. E-mail: carol_castelo_branco@hotmail.com.
[3] Graduando em Direito pela UEPB. E-mail: iago.barbosaaa@gmail.com.
[4] A Medicina Baseada em Evidências (MBE) é um movimento internacional criado na segunda metade da década de 1980 e em poucos anos se estendeu ao mundo inteiro. Nasce do reconhecimento de que boa parte da prática médica não é respaldada por estudos de qualidade sobre a segurança e a eficácia dos procedimentos utilizados, quer sejam os medicamentos, os exames, as cirurgias, entre outros. […]. Verificou-se que a medicina se baseia em muitos tipos de pesquisa tendenciosos (chamados de viés pelos cientistas) que às vezes favorecem práticas inúteis, arriscadas ou danosas. Com isso foi organizada uma iniciativa internacional para sistematizar o conhecimento científico “menos tendencioso” a respeito de cada procedimento médico, por especialidade (DINIZ, Simone Grilo; DUARTE, Ana Cristina. Parto normal ou cesária?: o que toda mulher deve saber (e todo homem também). São Paulo: UNESP, 2004. p. 13).
[5] LISAUKAS, Rita. Oito em cada dez gestantes e puérperas que morreram de coronavírus no mundo eram brasileiras. Estadão. São Paulo. 14 jul. 2020. Disponível em: https://emais.estadao.com.br/blogs/ser-mae/oito-em-cada-dez-gestantes-e-puerperas-que-morreram-de-coronavirus-no-mundo-eram-brasileiras/ . Acesso em: 14 jul. 2020.
[6] ARENDT, H. As origens do totalitarismo. Rio de Janeiro: Documentário, 1979.
[7] MATTAR, Laura Davis. Direitos maternos: uma perspectiva possível dos direitos humanos para o suporte social à maternidade. 2011. 235f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6136/t… Acesso em: 01 fev. 2018.
[8] PIOVESAN, Flávia. Direitos reprodutivos como direitos humanos. In: BUGLIONE, Samantha (Org.). Reprodução e Sexualidade: uma questão de justiça. Porto Alegre: THEMIS, 2002.
[9] GODINHO, Adriano Marteleto. Direito ao próprio corpo: Direitos da Personalidade e os Atos de Limitação Voluntária. Curitiba: Juruá, 2014.
[10] SOUSA, Valéria. Violência Obstétrica: nota técnica: considerações sobre a violação de direitos humanos das mulheres no parto, puerpério e abortamento. São Paulo: Artemis, 2015.
[11] Artigo 1. Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada. Artigo 2. Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica: b) ocorrida na comunidade e comedida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local.
[12] SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
[13] SOTERO, Ana Paula da Silva; SOARES, Ricardo Maurício Freire. Constituição e Restrição a Direitos Fundamentais em Tempos de Pandemia de COVID-19: um Breve Estudo do lockdown no Estado do Maranhão. In: BAHIA, Saulo José Casali (Coord.) Direitos e deveres fundamentais em tempos de coronavírus. São Paulo: Editora Iasp, 2020. volume 2.
[14] SOTERO, Ana Paula da Silva; SOARES, Ricardo Maurício Freire. Constituição e Restrição a Direitos Fundamentais em Tempos de Pandemia de COVID-19: um Breve Estudo do lockdown no Estado do Maranhão. In: BAHIA, Saulo José Casali (Coord.) Direitos e deveres fundamentais em tempos de coronavírus. São Paulo: Editora Iasp, 2020. volume 2.
[15] BRASIL. Portal de Boas Práticas em Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente. Disponível em:
https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/. Acesso em 14 jul. 2020.
[16] BRASIL. Portal de Boas Práticas em Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente. Disponível em:
https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/#biblioteca. Acesso em 14 jul. 2020.