Crime de petrechos para o tráfico ilícito e o controle penal das drogas
Por: João José Leal e Rodrigo José Leal
Análise crítica do art. 34 da Lei nº 11.343/2006
O crime de petrechos pode ser considerado como um tipo penal equiparado ao crime de tráfico ilícito de drogas. Portanto, deve ser considerado, também, como uma espécie de crime hediondo.
Sumário: Introdução: Crime de Petrechos é Tipo Penal Equiparado ao Tráfico Ilícito de Drogas. 2. Crime de Petrechos para o Tráfico Integra o Rol dos Crimes Hediondos. 3. Denominação Jurídica e Histórico do Tipo Penal. 4. Definição Legal. Crime Comum, Formal e Subsidiário. 5. Formas Objetivas de Realização do Tipo Penal: Crime de Ação Múltipla. 6. Elemento Subjetivo do Tipo Penal ou Vontade Direcionada ao Tráfico. 7. Tentativa. 8. Sanção Penal. 9. Causa de Redução de Pena. 10. Causa de Aumento de Pena. 11. Regime Prisional Inicial e Progressão de Regime. 12. Considerações Finais. 13. Referências Bibliográficas. 14. Bibliografia.
1.INTRODUÇÃO – CRIME DE PETRECHOS É TIPO PENAL EQUIPARADO AO TRÁFICO ILÍCITO DE DROGAS
Neste artigo, analisaremos o crime de Petrechos para o Tráfico de Drogas, descrito no art. 34 da Lei nº 11.343/2006, aqui denominada de Lei Antidrogas e que pode ser considerado como um dos tipos penais equiparados ao crime de tráfico ilícito de drogas. Diferentemente dos tipos penais que poderíamos denominar de equivalentes ao crime de tráfico – ou seja, aquelas modalidades típicas previstas nos incisos I a III do art. 33 da lei em estudo –, o crime de petrechos encontra-se descrito em dispositivo próprio, o que lhe garante autonomia normativa e, também, natureza jurídico-formal própria em relação ao tipo penal fundamental de tráfico ilícito de drogas.
Deve, também, ser diferenciado dos tipos penais associados ou relacionados (por exemplo, os tipos penais de porte para uso pessoal e colaboração para o tráfico de drogas), mas que não são equiparados ao crime de tráfico.
Este é um crime que, pela severidade da resposta punitiva, situa-se na esfera dos crimes de maior potencial ofensivo previstos na atual Lei Antidrogas. Portanto, deve ser examinado à luz do regime repressivo de maior rigor reservado pela Lei 8.072/90 – LCH – aos crimes integrantes da categoria legal das infrações hediondas. Isto significa que, ao tipo penal sob exame, não se aplicam as normas processuais previstas nas Leis 9.099/96 e 10.259/2001, que disciplinam a competência e os procedimentos de maior favorecimento penal ao agente de uma infração de menor potencial ofensivo.
2. CRIME DE PETRECHOS PARA O TRÁFICO INTEGRA O ROL DOS CRIMES HEDIONDOS
Para uma análise crítica do tipo penal sob exame, uma questão surge como preliminar: deve o crime de petrechos ser considerado como uma espécie de crime de tráfico de drogas e, em conseqüência, de crime hediondo? A questão torna-se relevante na medida em que, devendo ser tratado como uma das espécies de infração hedionda, as conseqüências penais para o seu autor serão certamente bem mais severas.
Na doutrina, há um entendimento tácito e amplamente majoritário no sentido de que o referido tipo penal, antes descrito no art. 13 da revogada Lei 6.368/76 e agora tipificado no art. 34 da Lei Antidrogas, é uma das formas típicas do crime de tráfico ilícito de drogas e, em conseqüência, integra o rol das infrações hediondas.
Dos poucos autores que procuraram abordar expressamente esta questão, Alberto Silva Franco escreve que as condutas incriminadas no então art. 13 da Lei 6.368/76 não têm por objeto material a substância entorpecente propriamente dita, mas o maquinismo, o aparelho ou qualquer objeto destinado ao fabrico, preparação ou transformação de substância entorpecente. E, com inteira razão, afirma que esta circunstância “não desfigura o delito de tráfico ilícito de entorpecentes, desde que a finalidade não seja o uso próprio.” Para o autor em apreço, quem emprega aparelho ou instrumento para processar cocaína, para prensar maconha etc., “está, na verdade, exercendo o tráfico ilícito de entorpecentes“. (1)
Reconhecendo que este é o entendimento da maioria dos doutrinadores, Luiz Flávio Gomes tem posição expressa em contrário. Para o autor, equiparar o crime de petrechos ao de tráfico ilícito de drogas requer o recurso à interpretação integradora ou extensiva, em prejuízo do réu e isto estaria ferindo o princípio da legalidade. (2)
Embora a Lei 11.343/06, a exemplo da situação jurídica anterior, não tenha optado por atribuir os respetivos nomes jurídicos para as infrações penais ali tipificadas, a doutrina converge para a hermenêutica de que a expressão tráfico ilícito de drogas (ou de substância entorpecente ou tóxica, como dizia a lei anterior) refere-se a um gênero de infração penal, do qual o crime de petrechos é uma das espécies.
A nosso ver, o tipo básico descrito no caput do art. 33 deve ser considerado como o núcleo do crime que leva o nomen juris genérico de tráfico ilícito de drogas, sendo suas espécies as formas típicas descritas nos incisos I a III deste artigo. No tocante à denominação, cremos que as infrações penais descritas na Lei Antidrogas podem ser classificadas em quatro categorias: crime tráfico ilícito de drogas, propriamente dito (art. 33, caput); tipos penais equivalentes ao tráfico (art. 33, incisos I a III); tipos penais equiparados ao tráfico (arts. 34 e 36) e os tipos penais relacionados ou associados ao tráfico (arts. 28, art. 33, § 3º, 35, 37, 38 e 39). Estes últimos, embora tenham relação com o objeto material do tipo penal básico, não devem ser considerados como espécies criminosas de tráfico e, em conseqüência, não podem ser considerados como crimes hediondos.
Por sua vez, o crime de petrechos para o tráfico, por ser modalidade equiparada ao tipo penal genericamente denominado de tráfico ilícito de drogas, deve ser considerado como crime hediondo, condição a ser observada, como base do processo hermenêutico, no exame das questões jurídico-penais que faremos a seguir, especialmente, aquela referente ao regime prisional de maior rigor previsto na LCH.
3. DENOMINAÇÃO JURÍDICA E HISTÓRICO DO TIPO PENAL
O tipo penal que passamos a denominar de petrechos para o tráfico de drogas – descrito no art. 34, da Lei Antidrogas – já se encontrava incriminado no art. 13 da Lei 6.368/76, mas não com a amplitude com que veio tratada no novo dispositivo incriminador.
Embora a lei tenha utilizado uma série de substantivos para descrever o objeto da ação proibida (maquinário, aparelho etc.), cremos que o termo petrechos ou apetrechos pode ser empregado para denominar o tipo penal em estudo. (3) A nosso ver, este substantivo plural é o que melhor sintetiza o sentido jurídico-penal do objeto material da infração em exame, para dar-lhe o nomen juris mais adequado.
Ademais, o termo petrechos já é utilizado pelo Direito Penal brasileiro com este mesmo sentido, ao incriminar a conduta com o nome jurídico de Petrechos para Falsificação de Moeda (art. 291, do Código Penal). Na descrição da conduta proibida, a norma incriminadora codificada utiliza os mesmos termos substantivos (maquinismo, aparelho, instrumento etc.) para designar o objeto material do referido tipo penal. (4)
Trata-se, portanto, de termo com significado jurídico-penal consolidado, tanto na doutrina quanto no Direito Positivo brasileiro.
O tipo penal em exame foi positivado, pela primeira vez, com a sanção da Lei 6368/76 (art. 13). Até então, a conduta ainda não era objeto de incriminação. Em alguns casos, podia ser enquadrada como crime de tráfico ilícito de drogas, mas a regra era de ser a conduta impunível, por constituir ato meramente preparatório para este crime maior.
Conforme assinalou Vicente Greco Filho, trata-se de tipo penal criado pela Lei 6.368/76, com o objetivo de incriminar condutas antes consideradas como meros atos preparatórios e, portanto, não puníveis. Havia uma lacuna legislativa que precisava ser preenchida, a fim de alcançar a conduta do agente que se encontrar na posse de qualquer instrumento destinado ao tráfico de drogas, por representar, por si só, um efetivo perigo de lesão para o bem jurídico protegido, que é a saúde coletiva. (5)
Há, também, os casos daqueles que se desfazem da droga já produzida ou preparada, mas mantêm em seu poder os petrechos destinados a fabricar mais drogas. Continuam, portanto, praticando o delito ora em exame.
No caso deste crime, fica evidente que a lei penal optou por uma ação preventiva, incriminando condutas que, a rigor, não estariam ultrapassando os limites dos atos meramente preparatórios e que, em regra, não são puníveis.
4. DEFINIÇÃO LEGAL. CRIME COMUM, FORMAL E SUBSIDIÁRIO
A Lei Antidrogas manteve a autonomia tipológica desta forma de conduta criminosa e preparatória em relação ao crime de tráfico. Para tanto, reservou-lhe o art. 34 e deu-lhe a seguinte dicção:
Fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar a qualquer título, possuir, guardar ou fornecer, ainda que gratuitamente, maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de drogas, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 1.200 (mil e duzentos) a 2.000 (dois mil) dias-multa.
Para Antônio Lopes Monteiro, maquinário é o conjunto de peças que compõem um aparelho e estes formariam “um conjunto de objetos ou utensílios ordenados para um determinado fim; já o instrumento é um objeto geralmente menos complexo que o aparelho utilizado para qualquer trabalho”. (6)
Trata-se de crime comum, pois qualquer pessoa imputável é capaz, em tese, de fabricar, adquirir ou, ao menos, ter a posse de quaisquer petrechos para o fim de preparar ou fabricar drogas. O objeto jurídico desta infração penal é a saúde pública, elevada à condição de bem jurídico suficientemente relevante para merecer a devida chancela penal.
É crime formal, bastando apenas a ação de fabricar, transportar, ter a posse etc. de quaisquer petrechos destinados à produção de drogas para ocorrer a consumação do crime em exame. Aqui, portanto, o objeto material do tipo penal não é propriamente a droga, mas qualquer petrecho capaz de produzi-la ou, ao menos, contribuir para a sua produção. (7)
Cabe assinalar que, se o agente ultrapassar a esfera da proibição preventivo-formal e chegar à efetiva produção ou mercância da droga, o crime praticado, obviamente, será o de tráfico ilícito. Neste caso, não ocorre a figura do concurso material ou formal de crimes, mas apenas um único crime mais grave. Pelo princípio da consunção, o crime maior e mais grave previsto no art. 33, caput, absorverá o tipo penal em exame, legalmente entendido como crime-meio menos grave. (8)
Por isso, o crime de petrechos deve ser considerado como tipo penal subsidiário do crime mais grave, que é o tráfico ilícito de drogas. Na jurisprudência, já se decidiu que o crime em estudo “é de natureza subsidiária e, salvo hipótese excepcional, deve considerar-se absorvido pelo crime de tráfico de drogras”. (9) Por isso, Isaac Sabbá Guimarães escreve que este tipo penal “incrimina condutas que, em regra, são meros atos preparatórios do deito previsto no art. 33, caput, da Lei de Drogas.” (10) Trata-se, portanto, de tipo penal com função de controle penal essencialmente acautelatória.
Na doutrina, há restrição a essa forma de incriminação por antecipação. No entanto, se partirmos da premissa político-jurídica de que é legítima a intervenção da lei penal para o controle das condutas relacionadas ao tráfico, cremos justificada, também, a incriminação da conduta descrita no art. 34, da Lei Antidrogas.
5. FORMAS OBJETIVAS DE REALIZAÇÃO DO TIPO PENAL: CRIME DE AÇÃO MÚLTIPLA
Diversas são as ações realizadoras do tipo objetivo, desde a fabricação até a simples guarda ou posse de qualquer maquinário, instrumento ou objeto destinado à produção de drogas, sem autorização legal. O legislador preferiu manter a opção por uma descrição abrangente e multifacetada do comportamento incriminado. Ao todo, a norma incriminadora utiliza-se de onze verbos para indicar o rol das condutas proibidas, capazes cada uma delas, isolada ou conjuntamente, de realizar este tipo penal de múltipla ação. (11) De um modo geral, o legislador repetiu os núcleos verbais da ação típica do tipo fundamental de tráfico ilícito de drogas.
Assim, deve ser sancionado com as penas deste crime não somente quem fabrica quaisquer petrechos ou maquinário destinado à produção ou preparo de drogas, como também todo aquele que adquire, utiliza, transporta, oferece, vende, distribui, entrega, tem a posse, guarda ou fornece um deste maquinário, equipamento ou instrumento, desde que a conduta tenha a destinação prevista e proibida pela norma incriminadora em exame.
6. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO PENAL OU VONTADE DIRECIONADA AO TRÁFICO
A doutrina converge para o entendimento de que os petrechos não precisam, obrigatoriamente, ter destinação própria ou exclusiva à produção ou ao preparo de drogas. (12) Se assim não fosse, a incriminação seria inócua, pois a droga poderia ser produzida ou preparada por meio de petrechos destinados à fabricação de outros produtos ou substâncias, como por exemplo, balanças, equipamentos e aparelhos de laboratórios, que são produzidos e utilizados para atividades lícitas (médicas, farmacêuticas, químicas etc.). Na verdade, a lei incrimina a posse, o transporte, a guarda etc. de maquinismo, aparelho ou qualquer objeto lícito desde que – e mesmo que eventualmente – destinado à produção de drogas para o tráfico ilícito.
Porém, é preciso que o agente fabrique ou tenha a posse etc. de petrechos com o propósito certo: a produção de drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal. A identificação do elemento subjetivo do tipo é essencial para a configuração da infração. Assim, é preciso demonstrar que o agente encontra-se na posse de uma balança de precisão, utilizando um laboratório ou transportando determinado maquinário etc., com a consciência da destinação e a vontade manifestada no sentido da produção, do preparo ou da transformação de drogas, com vista à destinação assinalada e proibida pela lei, seja por ele próprio ou para que terceiros pratiquem a ação de traficância.
A este respeito, vale a lição de Vicente Greco Filho:
“Para a caracterização do delito, a fim de que não se incrime injustamente o uso, emprego ou a destinação inocente, há necessidade de que, no caso concreto, fique demonstrado que determinados aparelhos, maquinismos, instrumentos ou objetos estejam efetivamente destinados à preparação, produção ou transformação de substância proibida.” (13)
Desta forma, é preciso ficar atento para os termos da descrição típica, que exige a destinação de petrechos idôneos voltada, propositadamente, para a produção ou o preparo de drogas. Assim sendo, balanças de precisão, aparelhos e equipamentos de laboratórios etc., podem ser considerados como objeto material da infração penal em exame, desde que fique comprovado, em cada caso concreto, que tenham o objetivo claro de preparar, transformar ou produzir drogas.
Também, é preciso que os petrechos tenham capacidade efetiva de realizar o propósito proibido pela norma incriminadora e relacionado ao tráfico de drogas.
7. TENTATIVA
Embora a doutrina entenda ser admissível (14), a nosso ver, a tentativa é de difícil configuração no plano da prática – não somente pelo fato de se tratar de crime formal, em que o resultado já vem antecipado ou cooptado pela norma incriminadora, o que faz com que alguns tipos penais formais desconheçam a forma tentada.
No caso em exame, é preciso ressaltar ainda que estamos diante de norma incriminadora de um comportamento que, a rigor, constituiria ato meramente preparatório. Em conseqüência, a regra é de que as condutas tipificadas no art. 34, já se manifestariam de forma consumada. Deve-se, também, atentar para o fato de que estamos diante de tipo penal subsidiário.
Por isso, torna-se juridicamente difícil conceber a idéia de uma possível tentativa do crime de petrechos para o tráfico de drogas. Nas formas típicas de “possuir” ou “guardar” petrechos para o tráfico, não cremos ser possível cogitar-se de tentativa punível.
8. SANÇÃO PENAL
A pena de reclusão continua a mesma – três a dez anos – mas a multa foi significativamente elevada, de 1.200 a 2.000 dias-multa. No tocante à pena privativa de liberdade, não somente o mínimo, mas também o máximo da pena reclusiva cominada, distanciou-se da carga punitiva prevista para o crime de tráfico ilícito de drogas. Para alguns doutrinadores, está aí um argumento para sustentar que o tipo penal em exame não deve se considerado como equiparado ao de tráfico ilícito de drogas, definido no art. 33, caput, da Lei Antidrogas.
De qualquer forma, se considerarmos que se trata de crime subsidiário, é preciso reconhecer que a pena cominada é relativamente elevada. É um indicador evidente de que o legislador acreditou na função preventivo-repressiva da pena privativa de liberdade como instrumento eficaz e indispensável ao combate das atividades relacionadas ao tráfico de drogas.
Quanto à pena pecuniária, os valores mínimo e máximo foram significativamente aumentados em relação aos valores cominados na lei anterior. Esta é uma marca da nova Lei Antidrogas. É verdade que esta fez uma opção clara por um controle penal comprometido com a pena reclusiva como sanção prioritária. Mas, ao mesmo tempo, acreditou na idéia de que, em termos de Política Criminal, é conveniente atingir seriamente o patrimônio do traficante ou dos agentes relacionados ao tráfico.
Trata-se norma penal mais severa e, portanto, sujeita à regra da irretroatividade.
Na doutrina, há critica severa a esta opção legislativa por uma acentuada majoração dos valores cominados à pena de multa. Para alguns autores, “ao estabelecer os limites da pena pecuniária, forçou a mão o legislador e acabou por ferir o princípio da proporcionalidade”. (15) Porém, é preciso reconhecer que a atividade do tráfico ilícito de drogas movimenta milhões de reais que escoam pelos ralos da sonegação e da lavagem do dinheiro escuso. Em conseqüência, para os casos mais graves e envolvendo ações criminosas milionárias, os valores da pena de multa agora cominados em lei podem se revelar necessários e legítimos.
9. CAUSA DE REDUÇÃO DE PENA
A atual Lei Antidrogas trouxe uma importante inovação, que certamente irá contribuir para o abrandamento do controle penal em relação ao condenado do primeiro tráfico e que apresente um perfil criminológico de menor potencial ofensivo em relação ao bem jurídico protegido, que é a saúde pública. Trata-se da causa de redução de pena, assim descrita:
Nos delitos definidos no “caput” e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes e não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa” (art. 33, § 4º).
O objetivo da minorante em exame é o de permitir ao juiz um instrumento para flexibilizar a aplicação e a individualização da pena e enfrentar essa camisa de força imposta pela adoção da teoria monista, adotada por nosso Código Penal, em termos de concurso de pessoas. Como o tráfico, geralmente, é praticado por quadrilhas ou, ao menos, em concurso de pessoas, nem sempre é juridicamente razoável tratar o traficante primário – quando for o caso de um simples passador ou distribuidor da droga, é claro – com a mesma carga punitiva a ser aplicada aos principais agentes do crime.
No contexto deste estudo, cabe indagar se a minorante aplica-se somente ao tipo fundamental de tráfico de drogas e aos tipos penais que lhe são equiparados, descritos no art. 33, caput e seu § 1º, da Lei Antidrogas ou, também, ao condenado pelo crime de petrechos para o tráfico.
A nosso ver, apesar de estar descrita no espaço normativo do art. 33 e referir-se expressamente aos crimes ali definidos, esta causa de redução pode ser aplicada, também, ao crime ora estudo. É que, em matéria penal, o processo hermenêutico deve ser conduzido para dar à norma o sentido sempre mais favorável ao infrator. É evidente que a analogia benéfica é perfeitamente admissível em Direito Penal.
Assim sendo, se a circunstância de ser primário, de bons antecedentes e de não pertencer a qualquer organização criminosa pode beneficiar o agente do crime maior de tráfico, não vemos impedimento legal para que esta mesma circunstância possa beneficiar, também, o autor do crime menor de petrechos e a ele equiparado.
Além disso, é preciso assinalar que, se a redução não for estendida ao condenado primário e de bons antecedentes pelo crime de petrechos (crime menor), poderá ocorrer a contradição de se punir de forma menos severa o autor do crime de tráfico (crime menor) primário e de bons antecedentes, para o qual a lei é expressa em prever a possibilidade de ser beneficiado com a redução. Portanto, a incidência da causa de redução ao condenado primário e de bons antecedentes, pelo crime previsto no art. 34 da Lei Antidrogas, é conseqüência natural do princípio da igualdade processual.
Cabe ressaltar que a norma em exame proíbe expressamente que a pena privativa de liberdade aplicada, embora possa ser objeto de redução, seja convertida em restritiva de direitos. Portanto, a opção por um controle penal mais brando para o condenado primário pelo crime de tráfico e pelos tipos penais equiparados, não o livrou do efetivo cumprimento da pena reclusiva.
10. CAUSA DE AUMENTO DE PENA
Por outro lado, a Lei Antidrogas criou uma majorante de um sexto a dois terços, (art. 40 e seus incisos), que deve incidir, no momento da sentença condenatória, sobre as “penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei”. Ou seja, sobre as penas cominadas aos crimes descritos nos referidos dispositivos legais, aí incluído o crime de petrechos para o tráfico.
São sete as circunstâncias majorantes, previstas nos incisos do referido art. 40, que devem incidir sobre a pena a ser aplicada, se:
I – a natureza, a procedência da substância ou do produto apreendido e as circunstâncias do fato evidenciarem a transnacionalidade do delito;
II – o agente praticar o crime prevalecendo-se de função pública ou no desempenho de missão de educação, poder familiar, guarda ou vigilância;
III – a infração tiver sido cometida nas dependências ou imediações de estabelecimento prisionais, de ensino ou hospitalares, de sede de entidades estudantis, sociais, culturais, recreativas, esportivas ou beneficientes, de locais de trabalho coletivo, de recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, de serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, de unidades militares ou policiais ou em transportes públicos;
IV – o crime tiver sido praticado com violência, grave ameaça, emprego de arma de fogo, ou qualquer processo de intimidação difusa ou coletiva;
V – caracterizado o tráfico entre Estados da Federação ou entre estes e o Distrito Federal;
VI – sua prática envolver ou visar a atingir criança ou adolescente ou quem tenha, por qualquer motivo, diminuída ou suprimida a capacidade de entendimento e determinação;
VII – o agente financiar ou custear a prática do crime.
Literalmente interpretado o comando contido no caput do artigo 40, parece que o aumento deve ser obrigatoriamente aplicado sempre que verificada a presença de uma das circunstâncias acima descritas.
No entanto, cremos que a melhor interpretação é a de que nem todas as circunstâncias majorantes são compatíveis com o tipo penal descrito no art. 34, da Lei Antidrogas. Mesmo no caso do crime mais grave, que é o de tráfico ilícito, não nos parece razoável admitir que o simples fato de ser praticado nas proximidades de uma entidade ou associação cultural, recreativa, esportiva ou beneficiente, mas sem qualquer relação com a entidade e com os seus associados – apenas para ficar num exemplo isolado – apresente relevância político-jurídica para o aumento obrigatório da pena.
No caso do crime de petrechos, torna-se ainda mais evidente a impropriedade de se proceder a uma efetiva aplicação desta circunstância majorante, pois não seria razoável um aumento de pena somente porque a posse ou a guarda dos equipamentos ou aparelhos ocorra na proximidade de um locais assinalados no referido dispositivo. Além disso, verifica-se que as circunstâncias descritas nos incisos I e IV, são próprias do crime de tráfico ilícito e dificilmente poderão estar presentes na ação realizadora do crime de petrechos para o tráfico.
A nosso ver, esta causa de aumento deveria ter sido evitada pelo legislador – seja pelo excesso de preciosismo repressivo, seja por estar assentada na crença inútil de que o repique punitivo é um instrumento eficaz de combate à delinqüência. Esqueceu-se o legislador que, no caso do crime de petrechos para o tráfico, os marcos da sanção reclusiva conservam uma enorme distância entre o mínimo e o máximo. Isto permite ao magistrado, na apreciação das circunstâncias judiciais, fixar a pena-base com amplo espaço de manobra. Desta forma, as referidas circunstâncias poderiam ficar para ser objeto de consideração pelo juiz, na sua tarefa de aplicação da pena-base.
11. REGIME PRISIONAL INICIAL E PROGRESSÃO DE REGIME
A atual Lei Antidrogas trouxe, em seu texto, uma série de proibições e restrições para aplicação específica aos crimes ali tipificados. Cremos que o legislador optou por criar um subsistema punitivo próprio e autônomo, seja em termos penais ou processuais penais. Apesar das inúmeras normas de proibição expressa, a Lei Antidrogas é omissa quanto à progressão de regime prisional. No entanto, tratando-se de tipo penal classificado como hediondo, aplica-se ao crime de petrechos para o tráfico a regra contida no art. 2º, inciso 1º, da LCH, que agora determina o cumprimento da pena inicialmente em regime fechado.
Assim sendo, o condenado por crime de petrechos para o tráfico ilícito de drogas deve iniciar o cumprimento de pena em regime fechado, mas pode progredir de regime prisional, desde que tenha cumprido dois ou três quintos da pena (conforme seja primário ou reincidente) e comprovado o necessário mérito prisional.
12. CONSIDERAÇÕES FINAIS
1. Em termos de linguagem jurídico-penal, a expressão petrechos para o tráfico ilícito de drogas pode ser considerada como a mais adequada para denominar o crime previsto no art. 34 da Lei Antidrogas.
O crime de petrechos pode ser considerado como um tipo penal equiparado ao crime de tráfico ilícito de drogas. Portanto, deve ser considerado, também, como uma espécie de crime hediondo.
2. A norma agora vigente manteve a incriminação desta conduta meramente preparatória e, comparativamente ao texto da lei anterior, deu-lhe uma maior amplitude, em termos de descrição típica.
3. O crime de petrechos deve ser considerado como tipo penal subsidiário do crime mais grave, que é o tráfico ilícito de drogas. Trata-se, portanto, de tipo penal com função de controle penal essencialmente acautelatória. Considerando-se que se trata de crime subsidiário, a pena privativa de liberdade cominada – três a dez anos de reclusão – revela-se relativamente elevada.
4. O legislador manteve, também, a opção por uma descrição abrangente e multifacetada do comportamento incriminado. Em conseqüência, a norma incriminadora utiliza-se de onze verbos para indicar o rol das condutas proibidas capazes, cada uma delas, isolada ou conjuntamente, de realizar este tipo penal de múltipla ação.
Apesar de se referir apenas aos crimes previstos no art. 33, a causa de redução estabelecida no art. 33, § 4º, da Lei Antidrogas, pode ser aplicada, também, ao crime menor de petrechos para o tráfico.
5. Para a configuração do crime, os petrechos não precisam, obrigatoriamente, ter destinação própria ou exclusiva à produção ou ao preparo de drogas, mas é preciso ficar demonstrada a destinação dos petrechos idôneos voltada, propositadamente, para a produção ou o preparo de drogas (elemento subjetivo do crime).
6. A pena pecuniária teve seus valores mínimo e máximo significativamente aumentados em relação aos valores cominados na lei anterior. Esta é uma marca caraterística da nova Lei Antidrogas.
7. Conforme entendimento majoritário da doutrina, por se tratar de tipo penal equiparado ao crime de tráfico ilícito de drogas, o condenado pelo crime de petrechos para o tráfico, deve iniciar o cumprimento de pena em regime fechado. Poderá progredir de regime prisional, desde que tenha cumprido dois ou três quintos da pena (conforme seja primário ou reincidente) e comprovado o necessário mérito prisional.
13. NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 146.
(2) GOMES, Luiz Flávio e outros. Nova Lei de Drogas Comentada – Lei 11.343, de 23.08.2006. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 67..
(3) Segundo consta do Novo DicionárioAurélio da Língua Portuguesa, além do sentido próprio à linguagem militar – munições e instrumentos de guerra – o vocábulo petrechos, como substantivo masculino e plural significa, também, “quaisquer objetos necessários à execução de algo”. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1986.
(4) Ver, sobre o assunto: HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. IX, p. 230. FARIA, Bento de. Código Penal Brasileiro Comentado. Rio de Janeiro: Record Editora, 1961, v. VII, p. 29. NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, v. 4, p. 119.
(5) GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos – Prevenção – Repressão. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 101.
(6) MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes Hediondos. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 86.
(7) MENDONÇA, Andrey Borges de e CARVALHO, Paulo Roberto Galvão de. Lei de Drogas. Comentada Artigo por Artigo. São Paulo: Método, 2007, p. 34-5.
(8) Ver, a esse respeito: GUIMARÃES. Isaac Sabbá. Tóxicos. Comentários, Jurisprudência e Prática. Curitiba: Juruá, 2003, p. 63; GOMES, Luiz Flávio (Coord.) e outros. Nova Lei de Drogas Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 166.
(9) TJRJ: Ap. Crim., 12.966, DJ 16.09.1985.
(10) Ob. cit, p. No mesmo sentido: MENDONÇA, Andrey Borges de e CARVALHO, Paulo Roberto Galvão de. Lei de Drogas. Comentada Artigo por Artigo, p. 103-4.
(11) GRECO FILHO, Vicente. Ob. cit., p. 102.
(12) GUIMARÃES. Isaac Sabbá. Tóxicos. Comentários, Jurisprudência e Prática, cit., p. 63; GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos – Prevenção – Repressão, cit., p. 103; GOMES, Luiz Flávio (Coord.) e outros. Nova Lei de Drogas, cit., p. 167; MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes Hediondos, ob. cit., p. 86-7.
(13) Ob. cit., p. 102.
(14) DELMANTO, Celso. Tóxicos. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 26.
(15) BARBOSA JÚNIOR, Salvador José e outros. A Desproporcionalidade da Cominação da Pena de Multa na Lei de Drogas. Boletim IBCCrim, Ano 14 – Nº 169 – Dezembro 2006, p. 6.
14. BIBLIOGRAFIA
BEZERRA FILHO. Aluízio. Lei de Tóxicos Anotada e Interpretada pelos Tribunais. Curitiba: Juruá, 1999.
BOTTINI, Pierpaolo. In REALE JÚNIOR, Miguel (Org). Primeiro Encontro de Mestres e Doutores do Departamento de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP. Drogas – Aspectos Penais e Criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
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