Delação premiada: aspectos polêmicos
Emanuelle de Oliveira Pardauil[1]
O instituto da delação premiada[2] surgiu pela primeira vez durante a Inconfidência Mineira[3], posteriormente, em 1872, com o filósofo positivista alemão Rudolf Von Ihering[4], porém ganhou oxigênio e visibilidade com a Convenção de Palermo[5] possuindo aplicabilidade em âmbito penal desde a sede administrativa (inquérito policial) até após o trânsito em julgado, possibilitando ao delator algumas benesses, tais como: redução da pena de 1/3 a 2/3, cumprimento da pena em regime menos gravoso, o não oferecimento da denúncia pelo Ministério Público ou perdão judicial quando este incriminar – por meio de subsídios mínimos de autoria e materialidade[6]– o coautor ou partícipe de um crime.
Detentor de polêmicas e muitas críticas, esse mecanismo é considerado como importante instrumento para desestruturar o crime organizado, auxiliar as investigações policiais, esclarecer o modus operandi das organizações criminosas e até vir até a salvar vítimas, entretanto, para outros, é tido como um ato imoral e antiético, uma vez que o delator seria um ser indigno de credibilidade pela reprovabilidade social de sua conduta, tendo em vista que tal instituto possui cunho processualístico axiológico, fomentando a ideia de uma justiça negociada, vindo a contrariar o Princípio da Confiança existente no Processo Penal[7], bem como afrontar princípios constitucionais, por isso é questionada a sua constitucionalidade[8].
A delação premiada pode ser proposta pelo Órgão Ministerial, representada pela autoridade policial ou requerida pela defesa do acusado e deve, obrigatoriamente, obedecer requisitos. Com efeito, para que os benefícios da delação premiada sejam concedidos é necessário que o colaborador preencha alguns requisitos, sendo um deles a voluntariedade da delação. Assim, é importante ressaltar que ato voluntário não se confunde com ato espontâneo, sendo aquele o que surge da própria pessoa, sem nenhuma influência externa. O ato voluntário, por sua vez, é aquele em que a pessoa não sofreu nenhum tipo de coação ao efetivar a delação.
Outro requisito para a concessão dos benefícios advindos da delação é a efetividade da colaboração, ou seja, isso implica dizer que se não fossem as informações prestadas na delação, nem a polícia, nem o Ministério Público, por seus próprios meios, não poderiam encontrar os meandros do ilícito. De outro vértice, não é razoável que um réu que seja líder de uma organização criminosa receba o benefício do perdão judicial, ainda que tenha colaborado com informações de grande relevância para a investigação ou para a instrução criminal, tendo em vista que o pano de fundo desse possível acordo acarretaria certa impunidade.
A arquitetura deste instituto de direito premial praticado em concurso de agentes, tem um potencial condão de manobrar a apuração dos fatos, o que facilita a sedução em optar da delação, visto que o delator é submetido à pena de efeito simbólico, de utopia legislativa, mas que, do ponto de vista da estratégia de desmantelar o crime organizado, se converte em um primoroso instrumento aliado de nossa manutenção estrutural da segurança pública.
Aprofundando neste instituto, verifica-se que outro ponto sensível e controverso é a participação ativa do magistrado na celebração do acordo da delação premiada, uma vez que este pode intermediar as negociações entre o Parquet e o réu, comprometendo o sistema acusatório e a sua imparcialidade por ladear diretamente a colheita de provas, demonstrando assim, certa omissão quanto ao devido processo legal e à ampla defesa, de modo que inexiste poder limitador quanto à clareza do procedimento de valoração das provas, formando um quadro assistemático de insegurança jurídica.
Tal mecanismo encontra-se previsto em nosso ordenamento jurídico nas seguintes leis: Lei nº 8.072/1990 – Lei dos Crimes Hediondos; Lei nº 11.343/2006 – Lei de Drogas; Lei nº 7.492/1986 – Crimes contra o sistema financeiro nacional; Lei nº 8.137/1990 – Crimes contra a ordem tributária; Lei nº 9.613/1998 – Lei de lavagem de dinheiro; Lei nº 9.807/1999 – Lei de Proteção a vítimas e testemunhas; Lei nº 10.149/2000 – Lei do Acordo de leniência; Lei nº 12.850/2013 – Lei de Crime Organizado e no crime de extorsão mediante sequestro (artigo 159, CP), os quais estabelecem os direitos e deveres do delator.
A fim de evitar o crescimento desenfreado do crime organizado, a delação premiada se materializa como um mal necessário em nossa contemporaneidade frente à falência do Estado para combater de forma efetiva o mercado paralelo da criminalidade. Perpendicularmente, observa-se que a legislação brasileira não estabelece ordem processual para a delação, o que cria tropeços principalmente quanto ao valor probatório das declarações dos corréus no deslinde processual, ferindo o Princípio da Inocência[9] do acusado.
Nessa sede de realizar o punitivismo emergencial, se houver desalinhamento do membro do Ministério Público em não concordar com a proposta de acordo requerida pelo delegado de polícia, poderá ser aplicado o artigo 28 do Código de Processo Penal, devendo o Procurador Geral de Justiça decidir sobre a realização ou não da delação
[1] Advogada. Pós-Graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade da Amazônia, turma 2/2017. Pós-Graduanda em Direito Constitucional pela Universidade (sic), turma 1/2016. Membro do Conpedi, da Abacrim, da Comissão de Estudos Penais e da Comissão de Segurança Pública da OAB/PA. Matrícula: 26089312.
[2] Delação ou chamamento do corréu é a atribuição da prática do crime a terceiro, feita pelo acusado, em seu interrogatório, e pressupõe que o delator também confesse a sua participação. Tem o valor de prova testemunhal na parte referente à imputação e admite reperguntas por parte do delator.
(CAPEZ, Fernando).Curso de Processo Penal. 17ª. ed. São Paulo. Saraiva, 2010.
[3] Em 1789, o coronel Joaquim Silvério, delatou seus colegas e em troca teve suas dívidas perdoadas. Tal traição resultou em sua execução de José da Silva Xavier (Tiradentes).
[4] Por volta de 1853, o jusfilósofo alemão Rudolf von Ihering cogitou, ao refletir sobre o tema política criminal, da premiação a criminosos (isenção de pena, sanção mínima, manutenção do patrimônio suspeito etc.) em troca de delações de utilidade social. A propósito, Ihering escreveu o seguinte: “Um dia os juristas vão se ocupar do direito premial. Isso ocorrerá quando, pressionados por necessidades práticas, conseguirem introduzir a matéria premial dentro do Direito, isto é, fora da mera faculdade e do arbítrio e terão de delimitá-lo com regras precisas, nem tanto no interesse do aspirante ao prêmio, mas, e sobretudo, no interesse superior da coletividade”.
(CAPITAL, Carta). São Paulo, 2014.
[5] Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, também conhecida como Convenção de Palermo, é o principal instrumento global de combate ao crime organizado transnacional, criada no ano de 2000.
[6] Condições de procedibilidade para início das investigações/justa causa para oferecimento da denúncia, ou seja, o delator deve preencher – ainda que de forma mínima – os pressupostos elencados no artigo 41 do Código de Processo Penal para que o Ministério Público forme sua opinio delict Estatal.
[7] O princípio da confiança refere-se à situação na qual uma pessoa age de acordo com as regras avençadas pela sociedade (para uma determinada atividade), e acredita que a outra também agirá conforme tais regras. Trata-se de um orientador da conduta humana, que visa a organizar os comportamentos sociais, de forma que um sujeito saiba o que esperar do outro. (GOMES, Luiz Flávio, 2011).
[8]Fere a constitucionalidade uma vez que neste instituto pode ser associado o sistema acusatório, por estar alicerceada a um juízo de verdade demonstrando incompatibilidade com o sistema acusatório, pois cabe ao titular da ação penal “demonstrar em juízo a responsabilidade penal do acusado. Nessa linha, a delação premiada possibilita o Magistrado analisar os fatos delatados, sem oportunizar neste momento, a ampla defesa e o contraditório dos delatados, assim como também fragiliza a defesa do delator e seu direito ao silêncio.
(PRADO, 2006, p. 3)
[9] O princípio da presunção de inocência é previsto no artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal de 1988 como uma garantia processual atribuída ao réu pela prática de um crime, oferecendo-lhe a prerrogativa de não ser considerado culpado até que a sentença penal condenatória seja transitada em julgado, garantindo um julgamento de forma justa em respeito à dignidade da pessoa humana.