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Delação Premiada com Base nos Princípios Constitucionais Atuais

INTRODUÇÃO

O mundo tem se desenvolvido expressivamente através da globalização, facilitando cada vez mais transações e comércios multinacionais, surgindo novos avanços tecnológicos e instrumentos que visam facilitar nossas vidas. No entanto, juntamente com este desenvolvimento global, progrediram, também, as condutas ilícitas, que aproveitaram-se dos aparatos tecnológicos, para se estruturar e organizar, criando uma verdadeira criminalidade complexa.

Com isso os Estados têm, cada vez mais, buscado ampliar a luta e a repressão a esta criminalidade moderna e desenvolvida, procurando sempre se alinhar quanto à elaboração de normas e legislações, mormente com a criação de tratos internacionais que visam impedir o crescimento e desmantelar a criminalidade organizada.

É neste cenário, de grande progresso do combate e repressão aos crimes organizados, que a delação premiada ganhou ampla notoriedade, notadamente por exteriorizar efetividade e ampliação aos instrumentos investigatórios, sendo capaz, muitas vezes, de ter seu uso indiscriminado, sem que haja a devida observância de direitos e garantias fundamentais, bem como, sem que seja imposto limites para seu uso e aplicação na prática, gerando, assim, diversos questionamentos.

Exatamente por isso, e também em virtude da edição a Lei nº 12.850/2013, a delação premiada tem sido utilizada de forma recorrente na obtenção de provas, apesar de ainda surgirem pontos polêmicos e controvertidos na doutrina e jurisprudência.

É nesse contexto que se situa o presente estudo, que tem por objetivo analisar a delação premiada à luz dos princípios constitucionais.

Com isso, resta claro que é de extrema importância o aprofundamento nos estudos jurídicos deste instituto, que quando abordado e utilizado da maneira correta, poderá, certamente, contribuir para o desenvolvimento ao combate e repressão, assim como, para a solução de casos de complexas estruturas do crime organizado, produzindo resultados positivos.

Desta feita, adota-se como método de abordagem o dedutivo e, como método de procedimento, o descritivo, pautando-se a pesquisa no levantamento bibliográfico e documental.

1. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA

Nos Estados Unidos, a delação premiada é um elemento necessário ao sistema de justiça criminal. Devidamente negociados e estruturados, os acordos de delação, em geral, beneficiam o acusado (delator), o governo e o judiciário. Além disso, o público também se beneficia do instituto, pois resultam na economia de recursos públicos, bem como na rápida solução de casos criminais. A colaboração premiada também é útil para os promotores que atuam em casos de crime organizado, uma vez que o acordo poderá levar a uma cooperação inestimável dos acusados, tanto na investigação, quanto na persecução de outros membros de uma organização criminosa (CENTRAL EUROPEAN AND EURASIAN LAW INSTITUTE, 1999, p. 1).

Nem sempre foi assim, anteriormente os tribunais desencorajavam estes acordos, entretanto, com o passar do tempo, durante o século XIX, vendo a população crescer e consequentemente a saturação dos tribunais com casos criminais, passaram a ser mais flexíveis e aceitar o instituto. Com isso, tornou-se comum o uso da delação no sistema criminal Norte Americano e, no século XX, passou a integrar o sistema de justiça (MENDRONI, 2016, p. 471).

Brindeiro (2016) salienta que “a experiência tem sido bem-sucedida nos EUA e na Europa – que adotou o instituto originário da common law e típico do pragmatismo anglo-saxão –, superando o conservadorismo dogmático e teorias não funcionais”.

Mossin e Mossin (2016, p. 33) apontam que “na década de 60, nos Estados Unidos, a delação premiada foi introduzida através da Lei de Ricco, sendo que esta compreendia-se em “um acordo entre o Ministério Público e o réu no que concerne à a redução da pena quando houvesse condenação, que, posteriormente para que produza seus reais efeitos, deve ser homologado pelo juiz”.

Mendroni (2015, p. 205) defende que “[…] nos EUA, é notório, o Promotor de Justiça pode negociar a aplicação do rigor da Lei, em troca de valiosas informações que podem desvelar a identidade de outros criminosos e as suas condutas ilícitas”.

Já na Itália, a delação premiada surgiu na década de 1970, tempo em que se buscava a criação de ferramentas que auxiliassem no combate ao terrorismo e a extorsão mediante sequestro, subversão da ordem democrática e sequestro com finalidade terrorista, concedendo uma pena mais branda para todos aqueles que cooperassem com o combate à estes delitos (MOSSIN; MOSSIN, 2016, p. 33).

Acerca da constitucionalidade da delação premiada no país, Brindeiro (2016) aponta que desde 1990, a corte italiana tem reconhecido a constitucionalidade do patteggiamento, equivalente ao acordo de delação premiada ou ao plea bargain agreement, submetido ao controle judicial sobre o cabimento e a regularidade do acordo. Observou, ainda, que o juiz pode rejeitar ou homologar o acordo, devendo fundamentar sua decisão considerando a proporcionalidade da pena e sua adequação aos fins legais e constitucionais.

O novo patteggiamento foi inserido pelo código de processo penal de 1988, tornando-se famosas e amplamente usadas pelos Ministérios Públicos (BRINDEIRO, 2016), as delações dos arrependidos (pentiti) nos casos da Máfia, quando informaram à justiça detalhes do funcionamento e da organização da Cosa Nostra, especialmente a partir da prisão de Tomaso Buscetta no Brasil, permitindo a implantação daquele que ficou conhecido por “maxiprocesso” e acabou levando para a cadeia 342 mafiosos (MENDRONI, 2015, p. 205).

Desta maneira, Masson e Marçal (2017, p. 131-135) pontuam que com a grande evolução mundial do combate à criminalidade, e, também, se inspirando na legislação premial italiana de combate ao crime organizado, bem como na “plea bargaining” – instrumento de política criminal característico do direito anglo-saxão –, o legislador brasileiro optou por aparelhar-se e introduziu em nosso ordenamento jurídico o instituto da colaboração premiada (também batizada na doutrina de “delação premiada”, “cooperação premiada”, “confissão delatória”, “chamamento de corréu”, “negociação premial” etc.).

Sem a pretensão se de esgotar a questão, vale dizer que no Brasil a delação premiada, embora tenha ganhado evidência em um passado não muito distante, encontra previsão na legislação desde a década de 1990.

Para Masson e Marçal (2017, p. 118), a evolução legislativa “denota o quanto veio sendo lapidada a colaboração premiada entre nós. Em sua gênese, não se previa a forma como se efetivaria na práxis a “delação”; não havia regras visando à proteção do colaborador; poucos eram os prêmios legais”.

Na Lei nº 8.072/1990, denominada de Lei dos Crimes Hediondos, foi a legislação que introduziu a delação premiada no ordenamento jurídico do Brasil. Em seu artigo 8º, parágrafo único. Segundo Brito (2016, p. 92) disciplina que

“o instituto também passou a ter aplicação nos crimes hediondos, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo, quando praticados por bando ou quadrilha […]”.

Mendroni (2016, p. 200) discorre que o legislador, ao referir participante ou associado, pretendeu englobar casos de autoria e participação, que envolvessem todo e qualquer integrante do bando ou quadrilha. Já ao utilizar o termo desmantelamento, o que o legislador pretendeu foi referir-se a extinção do bando, porém, deve ser interpretado como o fim da prática ou da conduta investigada, haja vista não ser possível assegurar o real fim da prática de uma associação criminosa, podendo voltar a reunir-se no futuro.

Além disso, esta legislação acresceu o 4º parágrafo ao artigo 159 do código penal, com a seguinte redação: “Se o crime é cometido por quadrilha ou bando, o coautor que denunciá-lo à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços”.

Tem-se, ainda, a Lei nº 9.034/1995, que dispôs sobre utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, surgiu como a solução para o combate ao crime organizado, entretanto, “veio acompanhada de falhas, chamando a atenção a ausência de definição do próprio objeto da lei: organização criminosa”. (CUNHA; PINTO, 2015, p. 11).

Mais tarde, após longo e intenso debate acerca da ausência de definição de organização criminosa, o que dificultava a aplicação da delação premiada, esta lei foi revogada, momento em que entrou em vigor a Lei nº 12.850/13.

Poucos dias após a legislação acima mencionada entrar em vigor, foi promulgada a Lei nº 9.080/1995, que acrescentou dispositivos às Leis nºs 7.492, de 16 de junho de 1986, e 8.137, de 27 de dezembro de 1990, ampliando, então, a aplicação do instituto da delação premiada aos crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei nº 7.492/86) e aos crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo (Lei nº 8.137), quando, cometidos em quadrilha ou coautoria (BRITO, 2016, p. 93).

Bittar (2011, p. 109) tece severas críticas a banalização do instituto, que ocorreu devido a inexistência de distinção quanto à gravidade do delito, visto que com a aplicação da delação premiada aos delitos das Leis n.º 7.492/86 e 8.137/90, passou, então, a ser possível o uso da delação em crimes com penas de detenção de dois a cinco anos ou multa.

Dando seguimento, tem-se a Lei nº 9.269/19, que deu nova redação ao § 4º, do art. 159 do Código Penal, que trata do crime de extorsão mediante sequestro.

Mendroni (2015, p. 205) defende a ideia que, quanto menos durar o tempo de cativeiro da vítima, pela ação arrependida do integrante dos agentes sequestradores, tanto mais se aproximará da maior diminuição da lei (2/3), e, ao contrário, quanto mais durar o tempo de cativeiro, tanto menos terá de benefício, mais proximamente de 1/3.

Assim sendo, nota-se que o valor da diminuição (benefício) está diretamente atrelada a demora com que o coautor delata e/ou colabora com a liberação da vítima, visto que o legislador preocupou-se com sua vida.

Sobre a Lei nº 9.613/1998, Brito (2016, p. 94) alega que trouxe grande inovação ao instituto da delação premiada, qual seja, a “ampliação do ‘catálogo de prêmios’ oferecidos ao delator”. Nota-se, que agora seria possível o delator obter: a redução da pena de um a dois terços; cumprimento inicial da pena em regime aberto; isenção da pena, ou; substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito, em havendo colaboração espontânea que levassem à apuração das infrações e de sua autoria ou, então, à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.

Sucessivamente, com a entrada em vigor da Lei nº 12.683/2012, a redação do §5º. Alterou, então, a possibilidade de cumprimento inicial da pena, podendo ser tanto em regime aberto, quanto em regime semiaberto. Ampliando ainda mais o “leque” de benefícios que podem ser concedidos aos colaboradores. Diante disso, Mendroni (2016, p. 164) defende que o dispositivo seria:

“excessivamente benéfico, violando a aplicação da proporcionalidade em face do binômio: benefício proporcionado à justiça pela delação X benefícios favoráveis ao delator”.

Já a Lei nº 9.807/1999, buscando rebater as críticas dirigidas a maneira como o instituto foi concebido no Brasil, sem qualquer proteção àqueles que colaborassem com a investigação penal ou com o processo criminal, foi editada esta Lei, que trouxe normas relativas à proteção dos acusados ou condenados que voluntariamente colaborassem com o procedimento persecutório penal, da seguinte forma (BRITO, 2016, p. 96).

Mendroni (2016, p. 157) aduz ser claro que, somente os casos de crimes que sejam praticados mediante concurso de pessoas, serão alcançados pelos dispositivos desta lei, com notória preferência para crimes com atuação de organizações criminosas. Ressalta, também, que mesmo em se tratando de associações criminosas, nos casos de crimes graves, haverá a possibilidade de aplicação da delação premiada.

No que tange à possibilidade de concessão dos benefícios, Mendroni (2016, p. 157-158) argumenta que,

[…] as condições estabelecidas no caput e no artigo 13, da Lei são objetivas, mas a sua concessão é facultativa, pois, mesmo preenchidos aqueles requisitos, decreta a Lei: “Poderá o juiz…” Então, se o acusado colaborar voluntária e eficientemente, reconhecidamente pela Justiça, sendo primário e dentro dos parâmetros estabelecidos, poderá ser aplicado o perdão judicial.

Já o art. 14 da Lei estabelece a redução da pena, de um a dois terços, ao acusado não primário (a contrario sensu) que colaborar da mesma forma.

Em sentido oposto, Mossin e Mossin (2016, p. 155-156) argumentam que, ora o legislador utiliza o verbo poderá, ora emprega o verbo terá, devendo estes verbos sempre serem “entendidos e compreendidos em seu exato sentido”. Desta forma, quando a lei fala “terá” acarreta obrigatoriamente na concessão do benefício, não se tratando, portanto, de faculdade do juiz em aplicá-la, mas sim de “verdadeiro e autêntico direito subjetivo do delator, quando ele preenche os requisitos postos por lei, que fazem decorrer o prêmio prometido”.

A Lei nº 11.343/2006, conhecida como a Lei de Drogas, instituiu, em seu artigo 41, a redução da pena àquele que, voluntariamente, contribui com a investigação e o processo criminal, do qual resultará redução, de um terço a dois terços, de sua pena.

Bittencourt e Busato (2014, p. 121) alegam que a Lei nº 9.034/2995, foi a única que mencionou, especificamente, como objeto de sua aplicação, as infrações penais praticadas por organizações criminosas e, por isso, foi revogada expressamente pela Lei 12.950/13. Já as demais legislações, no que tange à aplicação dos benefícios da delação premiada, permaneceram vigentes.

Exposto, brevemente, o histórico legislativo acerca da delação premiada, conclui-se que a figura da delação premiada não é nova no ordenamento jurídico brasileiro, visto que a primeira legislação a abordá-la é de 1990.

2. LEI 12850/2013

A Lei nº 12.850/2013, “além de ter atendido a uma antiga demanda jurisprudencial e doutrinária, pela definição de organização criminosa, dispôs sobre […] os meios de obtenção da prova […]” (BRITO, 2016, p. 97) trata, finalmente, sobre os pormenores do instituto da delação premiada em seus artigos 4º, 5º,6º e 7º.

Masson e Marçal (2017, p. 136) apontam que esta legislação “convive, em obséquio ao princípio da especialidade, com as demais leis que trataram da colaboração premiada. Não houve, pois, revogação dos demais diplomas, com exceção da antiga Lei do Crime Organizado (Lei 9.034/1995)”.

A Lei nº 12.850/2013, Lei das organizações criminosas, é a legislação mais recente e que trata detalhadamente o instituto da delação premiada, trazendo a seguinte definição:

Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados).

I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;

II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;

III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;

IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;

V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada (BRASIL, 2013).

Compete ressaltar, que os casos em que poderá incidir a lei acima mencionada, são somente os de organizações criminosas e não os de qualquer forma de concurso de pessoas, ou mesmo de associação criminosa. Em verdade, o que ocorre é um estreitamento das hipóteses de incidência em relação as demais previsões legislativas do mesmo instituto (BITTENCOURT; BUSATO, 2014, p. 125).

Assim, conforme a perspectiva legislativa, temos que aquele que colaborar efetivamente e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, poderá ter sua pena reduzida, substituída ou então extinta (perdão judicial) pelo juiz, desde que satisfaça um ou mais dos requisitos estabelecidos em lei.

3. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Nesse ponto cumpre destacar que o direito não é composto apenas por leis ou normas, mas também por princípios, os quais tendem a estar em concordância com o pensamento da sociedade e são fundamentais para o complemento do modelo garantista de direito penal.

Reale (2003, p. 37) abordou sobre o assunto:

Princípios são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, a aplicação e integração ou mesmo para a elaboração de novas normas. São verdades fundantes de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da práxis.

Do mesmo modo, Delgado (2007, p 184) disserta que o princípio é, de modo geral, responsável por traduzir “a noção de proposições fundamentais que se formam na consciência das pessoas e grupos sociais, a partir de certa realidade, e que, após formadas, direcionam-se à compreensão, reprodução ou recriação dessa realidade”

Assim, os princípios são fontes normativas que orientam o entendimento do ordenamento jurídico, sendo na aplicação, integração ou elaboração de novas leis e tornam-se verdades incontestáveis tendo em vista que necessitam da pesquisa em sociedade, ou seja, dos pensamentos e consciências das pessoas do mundo atual.

Ademais, não há somente princípios referidos a direitos individuais para decisões de direito fundamental, mas também tem aqueles que buscam satisfazer o interesse coletivo, devendo ser respeitados visto que foram elaborados para tornar a sociedade mais justa e igualitária.

Percebe-se que a Constituição Federal é a principal norma do nosso país, estando no topo da cadeia hierárquica entre as legislações existentes, portanto, as demais normas devem se submeter a ela, não podendo infringir qualquer princípio ou lei existente na Constituição.

Lima (2012, p. 53-54) ressalvou sobre a soberania dos princípios constitucionais:

Todavia, entre as normas constitucionais, podemos afirmar, os princípios são as linhas mestras, os núcleos fundamentais da Constituição, havendo uma superioridade deles em face das regras. É que o subsistema constitucional estrutura suas normas, hermeneuticamente, de forma escalonada. Mas a hierarquia, aqui, é tomada axiologicamente. Por veicularem valores jurídicos mais importantes, os princípios são normas que ocupam posições privilegiadas na Constituição.

Isto posto, nota-se que entre todas as normas constitucionais, os princípios são os núcleos fundamentais do nosso ordenamento jurídico por ser tratarem de valores jurídicos mais relevantes, os quais devem ser intolerantemente respeitados e são a base do garantismo penal brasileiro.

Em meio a esse contexto, a delação premiada sofre um embate com o sistema garantista penal, tendo em vista que fere os princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal. Percebe-se que a sociedade deve ser regida por valores oferecidas pelo Estado que protejam a dignidade humana, a paz, a liberdade plena e a igualdade substancial, sendo estas denominadas na nossa Constituição Federal por Direitos Fundamentais e caso algum fato entre em conflito com algum desses direitos, ocasiona-se em uma população desprotegida.

Percebe-se que os poderes públicos devem respeitar a legalidade constitucional, principalmente os direitos fundamentais, gerando um direito não efetivo e garantias impotentes caso carecer alguma dessas garantias. Assim, nota-se que a delação é um meio de prova anômalo, pois na grande maioria das vezes ela ocorre durante o inquérito policial e o acusado oferece provas contra si mesmo na fase pré-processual, quando ainda não existe o processo em si, abrindo mão de se defender através do processo legal.

Moraes (1998, p. 256) dissertou sobre o contraditório na fase investigatória do processo penal:

O contraditório nos procedimentos penais não se aplica aos inquéritos policiais, pois a fase investigatória é preparatória da acusação, inexistindo, ainda, acusado, constituindo, pois, mero procedimento administrativo, de caráter investigatório, destinado a subsidiar a atuação do titular da ação penal, o Ministério Público.

Dessa forma, não há como ter contraditório na fase pré-processual, então não podendo servir como uma prova, uma vez que o princípio do contraditório é essencial para um processo digno e sem ele não há como ter a verdade de uma acusação, pois não há contraprova e contra hipótese.

Não há como negar que é fundamental o contraditório para o sistema garantista penal, pois o magistrado só poderá aferir uma sentença após haver o princípio da refutação da hipótese acusatória e quando o delator abandona o direito de defesa, não há impugnação dos fatos, aceitando a verdade sem qualquer contraprova. Do mesmo modo, a delação atinge o direito da ampla defesa que por sua vez é a possibilidade de se valer de todos os meios para se defender, sendo que como o réu pode delatar e ceder o seu direito de defesa, fere diretamente este princípio constitucional.

Assim, observa-se que o acusado abrindo a mão de sua defesa para ganhar os benefícios judiciais em troca de sua delação, descumpre os princípios constitucionais da ampla defesa e contraditório e consequentemente do devido processo legal, tendo em vista que não segue todas as etapas processuais previstas em lei, tornando um ato judicial ineficaz e incompleto.

Além disso, Bittar (2011, p. 184-185) considera que:

[…] impõe, ao caso concreto, que a defesa dos demais réus seja cientificada da realização da delação e de seu conteúdo, não apenas para poder contraditá-la, mas principalmente, para ter ciência de que há nos autos a figura do delator, com todas as precauções exigidas do magistrado na valoração desta figura, caso contrário, a violação da Constituição é flagrante.

Verifica-se também que é preciso a notificação aos demais réus sobre a delação imposta e seu conteúdo, para além de poder contraditar o fato, ter a ciência que há no processo a figura do delator, pois caso contrário, há violação à Constituição Federal.

Seguindo essa linha de raciocínio, nota-se que para jurisdição ter uma satisfação completa, é essencial que os direitos fundamentais estejam garantidos para as partes processuais, conforme relata Luigi Ferrajoli (2006, p. 867-868):

[…] a propósito da jurisdição, mas que tem um caráter geral: a adoção por parte dos mesmos titulares de funções públicas daquilo que chamei de ponto de vista externo, e portanto de um lado, a gestão do poder não como um fim em si mesmo, mas como instrumento de tutela e satisfação dos direitos fundamentais, e de outro a clara consciência das suas margens irredutíveis de ilegitimidade jurídica e política para a sempre presente diversidade entre dever ser normativo e ser efetivo.

Portanto, a delação premiada deve estar de acordo com os princípios garantistas, por serem limitadores do poder punitivo estatal:

Desta forma, as exigências constitucionais quanto à validade de uma delação premiada devem estar de acordo com os princípios garantistas, que são limitadores do poder punitivo estatal, devendo ser observadas as principais implicações decorrentes desta realidade (BITTAR, 2011, p. 195).

Além disso, há uma preocupação diante a arquitetura da delação premiada, pois as penas dos crimes cometidos tem sido cada vez maiores, o que pode prejudicar a apuração dos fatos, em processo público e contraditório, visto que a exacerbação das penas pode ser um aliado para a tentação da delação, já que o acusado não tem nada a perder e ainda se beneficiará da redução de pena ou do perdão judicial.

[…] a delação tende a prejudicar a análise dos fatos, vejamos: A arquitetura da delação premiada, por sua vizinhança com a transação penal, guarda ainda outro elemento que em conexão com uma política criminal de penas cada vez maiores, tem potencial para prejudicar a apuração dos fatos, em processo público e em contraditório. O recrudescimento das penas, ditado pelo movimento de lei e ordem, facilita a ̳sedução da delação, esgrimindo-se no campo do concreto com uma pena de efeito simbólico, que de fato nunca caberia ou seria aplicada, mas que, do ponto de vista da estratégia de convencimento, se converte em poderoso aliado (PRADO, 2006, p. 4).

Por outro lado, percebe-se que não existe a verdade absoluta, apenas existem fatos que tenham um grau maior de confiabilidade nas provas demonstradas durante a fase processual, podendo levar a aceitação da hipótese acusatória, entretanto, a delação premiada leva a uma verdade somente pela palavra do delator, gerando perigo ao processo penal, como leciona Coutinho (2005, p. 9):

O pior é que o resultado da delação premiada — e talvez a questão mais relevante — não tem sido questionado, o que significa ter a palavra do delator tomado o lugar da ―verdade absoluta (como se ela pudesse existir), inquestionável. Aqui reside o perigo maior. Por elementar, a palavra assim disposta não só cobra confirmação precisa e indiscutível como, por outro lado, deve ser sempre tomada, na partida, como falsa, até porque, em tais hipóteses, vem do ―grande bandido. Trata-se, portanto, de meia verdade e, assim, de uma não-verdade, ou seja, uma inverdade, pelo menos a ponto de não enganar quem tem os pés no chão; e cabeça da Constituição. Não pode valer, por primário, o discurso do ―Pelo menos pegamos alguns. Esses alguns (dentre os quais inocentes) não cabem na estrutura democrática!

Assim, demonstra-se que considerar o discurso do delator como válido não é democrático, uma vez que não existe verdade de fato e para ter uma aceitação do que é dito, é necessário uma série de fatores como provas e contraprovas, assim, valendo-se apenas da palavra de um relato qualquer remonta aos passos de uma estrutura antidemocrática.

Nota-se que a principal preocupação da delação premiada diz respeito ao seu valor de prova, já que fere princípios constitucionais importantíssimos para haver um processo válido e eficiente.

4. UMA PEQUENA ANÁLISE

Sob esta ótica, uma das delações mais recentes merece análise visto que diante de 77 (setenta e sete) delatores, menos da metade foram condenados de fato pela justiça, sendo esta a colaboração feita por acionistas e executivos da Odebrecht na Operação Lava-Jato.

Desta homologação da delação percebe-se que o Ministério Público Federal criou três tipos de regimes que não existem na Lei de Execução Penal, sendo eles o regime domiciliar fechado diferenciado, domiciliar semiaberto diferenciado e domiciliar aberto diferenciado tomando, fazendo com que diversos delatores possam cumprir pena antes da iniciação do processo, ou seja, sem ter sentença condenatória e muitas vezes até sem denúncia, tomando como prova absoluta o relato do delator.

Isto posto, verifica-se que não constitui nulidade o indeferimento do acesso do acusado à integralidade dos termos da delação de terceiro, ou seja, o acusado só exerce o direito de defesa contra uma parte da colaboração feita contra ele, não tendo permissão de contraditar sobre a plenitude da acusação, ficando nas mãos do poder judiciário os fatos que o réu pode contestar.

Outro ponto da decisão foi que o depoimento do delator como testemunha é válido desde que não seja acusado no mesmo processo daquele que está sendo delatado, servindo como prova a declaração do delator.

Dessa forma, conclui-se que a delação premiada não age de acordo com princípios garantistas e formadores do processo penal brasileiro, causando efeitos sobre questões de valoração da prova e remontar-se ao sistema inquisitorial, uma vez que os direitos fundamentais são atingidos e juiz se baseia em uma estrutura de provas absolutas, fazendo com que sua convicção para julgar seja fraca e absolutista.

Perante este prisma, Rosa (2006, p. 173) relatou que:

Pode-se entender da seguinte forma: a delação na maioria das vezes encontra-se dentro do processo – se for comparada com as demais provas -,de forma isolada e de certa forma suspeita, vez que se analisarmos de forma acurada, vem a mesma permeada de ódio e vingança na declaração de seu autor, do que propriamente colaborar no julgamento. Nesse sentido, a pessoa é alvo daquela delação, portanto estando ela a partir daquele momento sendo incriminada pelo delator, é atingida frontalmente nos direitos fundamentais ferozmente defendidos pelo garantismo penal, in casu, o da ampla defesa e do contraditório.”

E o autor ainda conclui:

Assim, mostra-se temerária a condenação com base exclusiva na delação, sem que haja, conforme dito alhures, uma análise a fundo não só sob ótica dogmática, mas também nos tais princípios constitucionais garantidores de uma ordem social mínima, como meio de garantir o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo e, portanto, de limitação do poder punitivo e de tutela da pessoa contra a arbitrariedade, eventualmente atingidos dentro do processo (ROSA, 2006, p. 175).

À vista disso, percebe-se que a condenação com base exclusiva na delação é temerária, visto que fere princípios constitucionais garantidores de uma ordem social mínima, os quais tentam garantir máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo, limitando o poder punitivo e a tutela da pessoa contra a arbitrariedade, atingidos no processo com a delação imposta.

Destarte, não restam dúvidas que há críticas quanto ao uso da delação premiada, haja vista que a utilização da mesma, desrespeitando os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal 1988, os quais são prezados no sistema garantista penal brasileiro.

CONCLUSÃO

Ante todo o exposto ao longo do trabalho, pode-se concluir que o instituto da delação premiada fere os princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal, por conseguinte afrontando o sistema garantista penal brasileiro.

Primeiramente, averígua-se que apesar do Supremo Tribunal Federal acolher o sistema penal acusatório como o acolhido no Brasil, há diversos doutrinadores que divergem desse entendimento, tendo em vista que durante o procedimento penal existe a fase chamada pré-processual, na qual abrange resquícios do sistema inquisitorial, iniciando-se uma investigação policial sem a possibilidade da pessoa investigada se defender de tal ato, fazendo com que o magistrado aceite ou não uma denúncia oferecida pelo Ministério Público com base em apenas suposições de um polo processual.

Constata-se que a delação premiada vem sendo muito utilizada durante a fase de inquérito policial, entretanto nesse período ainda não tem o processo de fato e o acusado acaba abrindo mão de se defender durante a sequência processual, oferecendo provas contra si mesmo uma vez que para conseguir os benefícios disponibilizados pelo Estado, é necessário que o acusado confesse a autoria do crime.

Nesse sentido, observa-se que na fase pré-processual não há como ter direito ao uso do princípio do contraditório e da ampla defesa, visto que a fase interrogatória é somente preparatória da acusação, inexistindo a figura do acusado nesse momento e significando um mero procedimento administrativo, portanto a delação premiada utilizada nessa situação é desprovida de princípios essenciais para haver um processo penal digno e efetivo.

Verifica-se que o sistema garantista penal é regido pelo princípio da refutação da hipótese acusatória, que busca a aceitação de uma verdade através da impugnação dos fatos feitos pela acusação, não há como o juiz declarar pena a alguém que não contraditou as alegações opostas a ela, pois concluiria como verdade uma hipótese de suspeição.

Dessa forma, pode-se notar que o Estado coloca a delação premiada como um valor de prova de alto grau de confiabilidade, considerando-a como verdade absoluta inquestionável, desrespeitando a sustentação do processo penal que dita como inocente o acusado até que se prove contrário, ou seja, em casos de delação o réu é reputado como acusado até que evidencie o oposto.

Ainda sob essa perspectiva, o acusado só tem direito a defesa na fase processual e somente aos fatos que o Estado considera relevante para levar aos autos, não tendo o réu direito a integralidade da delação elaborada contra ele, ficando o poder concentrado na jurisdição estatal e constituindo um processo eminentemente inquisitorial.

Nota-se que no momento que o acusado deixa o seu direito de defesa de lado, ele abandona conjuntamente o princípio do devido processo legal, tendo em vista que não vai seguir todas as etapas previstas em lei para considerar um processo válido e completo, sendo completamente prejudicial ao garantismo penal, o qual preza por um processo no mínimo íntegro.

Assim, dependendo do momento que é realizada a delação premiada, os princípios garantistas e constitucionais podem ser atingidos de forma brusca, visto que eles são garantidores de uma ordem social mínima, tentando assegurar o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo, de modo a limitar o poder punitivo dentro do processo penal.

Por fim, o presente trabalho buscou demonstrar o confronto da delação premiada com o sistema garantista penal brasileiro, discorrendo entre os três capítulos sobre os métodos conduzidos do processo penal e como o instituto da delação implica diretamente nesse assunto, evidenciando que há diversas divergências sobre seu conteúdo e o método de sua realização.

REFERÊNCIAS

BITTAR, Walter Barbosa. Delação premiada: direito estrangeiro, doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

BITTENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei n. 12.850/2013. São Paulo: Saraiva, 2014.

BRASIL. Lei nº 12.850, de Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei no 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Diário Oficial da União. Disponível em:

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