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DEPOIMENTOS DO ALÉM – Leitura de carta psicografada no Júri não é tática inédita, mas divide opiniões

Durante o julgamento de um dos casos mais tristes da história recente do Brasil — o incêndio na Boate Kiss, que resultou na morte de 242 pessoas em janeiro de 2013 — um episódio em particular chamou a atenção no mundo do Direito: a advogada Tatiana Borsa, que defende o réu Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda Gurizada Fandangueira, usou uma carta psicografada em Plenário.


No momento dos debates entre acusação e defesa, a advogada citou a carta psicografada atribuída a Guilherme Gonçalves, uma das vítimas do incêndio, que teria pedido para que as pessoas parassem de procurar culpados pela “fatalidade”. “Os responsáveis também têm famílias e não tiveram qualquer intenção quanto à tragédia acontecida”, diz a carta.

O texto faz parte do livro “Nossa nova caminhada“, que reúne supostas cartas psicografadas de sete jovens que morreram no incêndio. O livro foi lançado pelos pais das vítimas e foi incluído nos autos do processo. Ao pedir a absolvição do músico, Tatiana Borsa mostrou um vídeo com a carta de Guilherme Gonçalves em que ele aconselharia as pessoas a “aceitarem as determinações divinas”.

Show de horrores


O uso de uma carta psicografada no Tribunal do Júri dividiu opiniões entre operadores do Direito ouvidos pela ConJur. Para o jurista, professor de Direito Constitucional e colunista da ConJur, Lenio Streck, a leitura da carta transformou o julgamento em um “show de horrores”.

“A questão não é apenas se se trata de prova válida. O ponto é: vale tudo no júri? Qual é o limite? A leitura da carta e o modo como foi feita a espetacularização transformou o julgamento em um show bizarro. Alguns colegas falam em extremo constrangimento. Outros em show de horrores. De fato, parece que foi ultrapassado o Rubicão da espetacularização do Júri”, disse.

O criminalista Fernando Augusto Fernandes considera a carta psicografada como uma prova ilícita, uma vez que não é possível passar por perícia e não representa a vontade da vítima. “Pior ainda frente a jurados que são leigos e influenciados pelo que é mostrado. A prova é absolutamente inadmissível”, ponderou.

Vida após a morte no Júri


Filho do advogado Ricardo Trad, autor do livro “vida após a morte no Júri”, o criminalista José Belga Assis Trad defendeu o direito de a defesa convencer os jurados por meio de argumentos religiosos, políticos ou humanitários. “É a plena liberdade de argumentar”, afirmou.

Para Trad, o mesmo raciocínio não se aplica à acusação: “A plenitude é de defesa, não de acusação, por isso acredito que é vedado ao Ministério Público ou ao assistente promover a juntada de documento dessa natureza no processo.”


Credibilidade jurídica


O professor de Direito Processual Penal e colunista da ConJur, Aury Lopes Jr., apontou erro do Ministério Público ao não ter impugnado a juntada do livro aos autos, bem como falha do juiz em ter admitido a prova. “Essa prova não tem valor jurídico, não tem controle de qualidade probatório, não tem contraditório possível. Com a juntada do livro aos autos, a defesa pode usá-lo. Não há erro da defesa nesse sentido”, afirmou.

Como o julgamento do Júri se dá por íntima convicção, Aury Lopes Jr. lembrou que não será possível saber se a carta influenciou, ou não, na decisão dos jurados: “Por conta disso, provas dessa natureza, que não têm credibilidade jurídica, não devem ser admitidas na origem, quando entram no processo.”

O cerne do problema, tanto para Aury quanto para Lenio Streck, é justamente a configuração jurídica do instituto que permite que os julgamentos sejam baseados em “íntima convicção”. Para eles, o maior defeito do Tribunal do Júri “à brasileira” é a ausência de fundamentação dos votos dos jurados, resultado de uma reforma feita no Código de Processo Penal em 2008.

Estratégia de defesa


Os advogados criminalistas André Colares, Bruno Neves e Christopher Ravagnani, acreditam que o uso de carta psicografada no plenário do Júri está em consonância com a plenitude de defesa. “Todavia, a sua utilização deve ser sopesada pelo defensor, principalmente a partir de um olhar estratégico para os jurados que compõem o conselho de sentença”, afirmou Colares.

Para o criminalista Matheus Menna, os jurados podem, “e, por vezes, devem”, julgar por questões extrajurídicas e de cunho humanitário. “A instituição do Tribunal do Júri é resguardada como aquela em que a técnica cede lugar à íntima convicção. Apenas a pessoa que está envergando a beca defensiva vai saber do porquê de ter apresentado a carta psicografada”, disse.

Argumentos religiosos


A advogada Juliana Bignardi Tempestini, criminalista do Bialski Advogados, ressaltou que nada impede que cartas psicografadas sejam aceitas e usadas como provas judiciais. “O que não pode ocorrer é uma decisão judicial baseada e motivada unicamente em tal meio de prova, já que depende exclusivamente da fé daquele julgador responsável por analisar todo o contexto processual”, acrescentou.

Já no entendimento da criminalista Clara Cid, do escritório Bidino & Tórtima Advogados, assim como qualquer outra prova, a carta psicografada deve ser submetida a um juízo “acerca de sua fiabilidade e de seu nível de corroboração, notadamente quando confrontada com o acervo probatório dos autos”.

Segundo o advogado Vinícius Fochi, do Damiani Sociedade de Advogados, a carta psicografada também poderá ser analisada sob diferentes perspectivas, levando a diferentes convicções, como por exemplo, quando há um jurado adepto do espiritismo e outro evangélico: “O Brasil é um país multicultural onde impera a laicidade do Estado, que nos obriga a conviver com a diversidade religiosa”.

Depoimento póstumo


O uso de uma carta psicografada em plenário não é algo inédito no Rio Grande do Sul. Em 2006, Iara Marques Barcelos foi absolvida da morte de seu amante, o tabelião Ercy da Silva Cardoso, após a leitura de uma suposta carta da vítima, que foi psicografada pelo médium Jorge José Santa Maria.

A carta foi contestada no Tribunal de Justiça gaúcho. O Ministério Público pediu a nulidade do julgamento e apontou que o documento teria influenciado os jurados de forma indevida. Em novembro de 2009, o TJ-RS manteve a absolvição e considerou que a decisão dos jurados não foi manifestamente contrária às provas dos autos.

O relator, desembargador Manuel José Martinez Lucas, afirmou que o exercício da religião é protegido constitucionalmente “e cada um dos jurados pode avaliar os fatos levantados no processo conforme suas convicções”. “A religião fica fora desta sala de julgamento, que é realizado segundo as leis brasileiras”, completou o desembargador José Antonio Hirt Preiss.


Os dons de Chico Xavier


Médium mais renomado do Brasil, Chico Xavier, morto em 2002, também usou seus dons espirituais em Tribunais do Júri. Na década de 70, a história do juiz Orimar Pontes, de Goiás, se cruzou duas vezes com a de Chico Xavier. Em 1976, o médium psicografou o depoimento de Henrique Emmanuel Gregoris, assassinado por João Batista França durante uma brincadeira de roleta russa.

No mesmo ano, o médium psicografou a carta de Maurício Garcez Henriques, morto acidentalmente por José Divino Gomes. Em ambos os casos, o juiz Orimar Pontes aceitou o depoimento póstumo das vítimas e os jurados acabaram absolvendo os réus.

Em 1980, em Campo Grande, mais um escrito de Chico Xavier foi usado como prova. José Francisco Marcondes Maria foi acusado de matar sua mulher, Cleide Maria, ex-miss Campo Grande. O médium recebeu o espírito de Cleide. Com o depoimento, José Francisco foi absolvido. Em novo júri, chegou a ser condenado, mas a pena já estava prescrita.

Esse caso, inclusive, é retratado no livro “Vida após a morte no Júri“, pois o réu foi defendido pelo criminalista Ricardo Trad, considerado um dos maiores tribunos da história do Mato Grosso do Sul. Na obra, o advogado cita “três mensagens psicografas por Chico Xavier e enviadas pela mulher, inocentando o marido”, que foram usadas em plenário.

Defesa de réus no júri da Boate Kiss apresenta suposta carta psicografada de uma das vítimas da tragédia.

No trecho escolhido, jovem diz que “responsáveis também têm famílias” e os isenta de responsabilidade.

Alguns familiares deixaram a sala durante o episódio. pic.twitter.com/UshgPNL1ba


— Metrópoles (@Metropoles) December 10, 2021

Tábata Viapiana – Conjur

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