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Desidratação do acordo de colaboração premiada. A quem interessa?

*Edemundo Dias de Oliveira Filho[1]

RESUMO: Este artigo constitui-se em uma singela análise sobre o instituto do acordo de colaboração premiada, presente na Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013 (Lei das Organizações Criminosas), como um dos mecanismos eficazes de obtenção de provas em processos criminais que investigam as grandes organizações criminosas, que, num movimento de inteligência, têm se mimetizado e se institucionalizado de forma sofisticada, sob a aparência de empresas e sociedades que se beneficiam do Estado, simulando legalidade e transparência perniciosas, o que torna mais difícil atingir o seu cerne. A partir de uma breve avaliação histórica do processo de formação das corporações do chamado crime organizado, busca-se entender o instituto, mediante análise bibliográfica e pesquisa de artigos e normas, para concluir sobre o mecanismo recentemente inaugurado no Congresso Nacional, com vistas a mitigar a faculdade de solução do Poder Judiciário e dos órgãos estatais de investigação, para ingresso nos meandros das empresas criminosas, fenômeno cada vez mais presente no mundo contemporâneo.

Palavras-Chave: Direito Penal. Processo Penal. Colaboração Premiada. Organizações Criminosas. Delação. Produção de Provas.

ABSTRACT: This article constitutes a single analysis of the institution of the plea bargain agreement, present in Law No. 12,850, of August 2, 2013 (Criminal Organizations Law), as one of the effective mechanisms for obtaining evidence in criminal proceedings that investigate major criminal organizations, which, in an intelligence movement, are mimicked and institutionalized in a sophisticated way, under the guise of companies and societies that benefit from the State, simulating pernicious legality and transparency, which makes it more difficult to reach their core. Based on a brief historical assessment of the formation process of so-called organized crime corporations, we seek to understand the institute, through bibliographical analysis and research of articles and standards, to conclude on the mechanism recently published in the National Congress, with a view to mitigate the power of solution of the Judiciary and state investigation bodies, to enter the intricacies of criminal enterprises, increasingly present in the contemporary world. Keywords: Criminal Law. Criminal proceedings. Award-Winning Collaboration. Criminal Organizations. Delation. Production of Evidence.

INTRODUÇÃO
A gênese deste artigo é a ressureição, na Câmara dos Deputados, de uma discussão iniciada no ano de 2016, com o Projeto de Lei nº 4372/2016, de autoria do então deputado federal pelo Estado do Rio de Janeiro Wadih Damous, do Partido dos Trabalhadores (PT). Esse projeto propõe a alteração da Lei nacional nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, que define o que é organização criminosa e, entre outros institutos importantes para obtenção de provas, oficializa a colaboração premiada como meio eficaz de dar ao Poder Judiciário acesso às entranhas das sociedades empresárias do crime, para compreendê-las, desarticulá-las ou destruí-las.

A essência do projeto do referido ex-deputado petista afeta diretamente a colaboração premiada, na medida em que desidrata a capacidade de ingresso dos órgãos de investigações estatais e, de consequência, do Poder Judiciário nas entranhas das organizações criminosas, pelo acréscimo de um terceiro parágrafo ao artigo 3º, cujo teor é o seguinte:[2]

Art. 3º…………………………………………………………………………..

…………………………………………………………………………………….

3º No caso do inciso I, somente será considerada para fins de homologação judicial a colaboração premiada se o acusado ou indiciado estiver respondendo em liberdade ao processo ou investigação instaurados em seu desfavor.” (NR)
O inciso I, ao qual o dispositivo faz referência, reporta-se ao instituto da colaboração premiada, comumente conhecido como delação premiada.

Apensos a esse projeto, acham-se os seguintes projetos de lei, com seus respectivos autores e partidos políticos:

a) PL 10336/2018, deputado federal Francisco Floriano, DEM/RJ;
b) PL 11156/2018, deputado federal Wadih Damous, PT/RJ;
c) PL 4575/2019, deputado federal Junio Amaral, PSL/MG;
d) PL 5424/2019, deputado federal Pompeo de Mattos, PDT/RS;
e) PL 5573/2019, deputado federal Bosco Costa, PL/SE;
f) PL 6422/2019, deputado federal Marcelo Brum, PSL/RS; e
PL 4699/2023, deputado federal Luciano Amaral, PV/AL.

Explica-se: atualmente, a lei permite o uso do instituto da colaboração premiada tanto por quem responde a processo em liberdade quanto por quem já se encontra sob a custódia estatal. O projeto inicial, do referido deputado petista, nascido no mesmo ano do impeachment da então presidente da república Dilma Rousseff, previa o corte do acesso à colaboração premiada a quem quer que estivesse preso.

Na atual conjuntura eleitoral resultante do pleito de outubro de 2022, foi iniciada uma severa perseguição aos opositores do regime, que teve como resultado uma dualidade nefasta e perniciosa e uma grave crise institucional. Para alguns deputados, era vital e necessário impedir o uso do instituto por quem estaria preso, como forma de restringir a gama de recursos de defesa acessíveis a quem é tido como “de direita”. Essa é a grande razão do pedido de urgência, já que é público e notório que uma personagem do governo anterior se utilizou, legitimamente, da colaboração premiada.

Atendendo ao clamor de determinados deputados, o atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), pautou, no último dia 5 de junho de 2024, um pedido de urgência de tramitação do projeto. Na lista de clamores paira tão somente o pavor de determinados segmentos políticos de que haja o uso do instituto por determinados presos, de tal modo que possa incidir em delação a determinados agentes públicos/políticos.

A decisão é apenas mais uma na lista de tratamento oportunista e despudorado de dispositivos que deveriam ser considerados sob a égide do bom direito. Do ponto de vista dos interesses inconfessáveis, desenha-se um regresso à velha prática de segregar e impedir a fruição, pelos adversários, dos direitos garantidos a todos os cidadãos.

Essa atitude, que prescinde de uma discussão pública que envolva autoridades jurídicas, causa grande inquietude nos pensadores da ciência do Direito, como é o nosso caso.

Historicamente, nossa linha de pesquisa voltou-se, durante décadas, à compreensão e ao conhecimento das organizações criminosas: sua gênese, seu modus operandi, sua arquitetura interna, sua cadeia de comando e as dificuldades para enfrentá-las, alcançá-las, atingi-las, eliminá-las por completo ou neutralizar a sua atividade.

Esse rumoroso movimento da Câmara dos Deputados, no sentido de dar urgência a um projeto maniqueísta, com esdrúxulos e nítidos interesses pessoais ou grupais, leva-nos a buscar elucidar esse intrincado processo que atinge em cheio as garantias individuais, ao desidratar uma valiosa ferramenta de persecução criminal, sem ouvir especialistas, estudiosos do tema, membros do Ministério Público e das polícias, notadamente, as polícias judiciárias federal e estaduais, mais especialmente ainda, o Poder Judiciário e — pior — sem ouvir a sociedade, a qual elegeu aqueles que deveriam agir nos estritos limites de honra do mandato que dela receberam. Isso nos leva a reiterar a pergunta que fizemos em recente artigo publicado no Jornal O Popular[3]: a quem interessa o fim da colaboração premiada?

Esta é a razão maior deste artigo. Por isso, buscamos expor, em rápidas pinceladas, o cenário histórico das organizações criminosas, da necessária e feliz criação do instituto da colaboração premiada, passando pelo núcleo do projeto que o desidrata a fim de atender a interesses político-partidários, numa evidente violação da segurança jurídica, para, ao final, expormos nossa opinião como pensadores do direito acerca dos malefícios de se adotarem práticas legislativas castradoras de direitos e garantias individuais, no caso específico, deletério à segurança pública de todos os cidadãos, protegidos pelo cerne inatingível da Constituição da República Federativa do Brasil.

A SOCIEDADE E O CRIME
Desde que o mundo existe, o delito penal existe. O primeiro homicídio (em verdade, fratricídio) de que se tem notícia no mundo cristão está retratado na Bíblia Sagrada, no livro de Gênesis [4], capítulo 4, versículos 1 ao 16, que relata a morte de Abel, perpetrada pelo seu irmão próprio Caim.

Deixando ao largo o relato evolutivo manifesto nas Escrituras Sagradas, quem estuda a evolução da sociedade, a partir do modelo familiar, é Fustel de Coulanges, que, em A Cidade Antiga[5], especula como origem do dever a relação entre o homem e o divino, grosso modo. Deixemos que ele próprio fale a respeito da antiga moral da família:

A religião desses primeiros tempos era exclusivamente doméstica; o mesmo acontecia com a moral. A religião não dizia ao homem, mostrando-lhe outro homem: Eis ali teu irmão. — Ela lhe dizia: Eis ali um estranho, que não pode participar dos atos religiosos de teu lar, não pode aproximar-se do túmulo de tua família; ele tem outros deuses, e não pode unir-se a ti por uma prece comum; teus deuses rejeitam sua adoração, e o encaram como inimigo; ele é também teu inimigo.

Nessa religião do lar, o homem jamais reza à divindade em favor dos outros homens; ele não a invoca senão para si e para os seus. Um provérbio grego ficou como lembrança e vestígio desse antigo isolamento do homem na oração. Nos tempos de Plutarco, dizia-se ainda ao egoísta: “Sacrificas ao lar(1).” — Isso significava: Tu te afastas de teus concidadãos; não tens amigos; teus semelhantes nada significavam para ti; não vives senão para ti e para os teus. — Esse provérbio era o indício de um tempo em que, gravitando toda a religião ao redor do lar, o horizonte da moral e do afeto não chegava a ultrapassar os estreitos limites da família.

É natural que a ideia moral tenha tido seu começo e tenha progredido como a ideia religiosa. O Deus das primeiras gerações, nessa raça, era bem mesquinho; pouco a pouco os homens tornaram-no maior; assim a moral, a princípio muito restrita e incompleta, alargou-se insensivelmente, até que, de progresso em progresso, chegou a proclamar o dever do amor para com todos os homens. Seu ponto de partida foi a família, e foi sob a ação das crenças da religião doméstica que os deveres começaram a aparecer aos olhos do homem.

Imaginemos essa religião do lar e do túmulo na época de seu pleno vigor. O homem vê bem perto de si a divindade. Ela está presente, como a própria consciência, a todas as suas mínimas ações. Essa criatura frágil, encontra-se sob os olhos de uma testemunha que não a abandona. Ele não se sente jamais só. A seu lado, em sua casa, em seu campo, tem protetores para ampará-lo nos labores da vida, e juízes para punir suas ações delituosas. — “Os lares — dizem os romanos — são divindades temíveis, encarregadas de castigar os homens, e de velar sobre tudo o que se passa no interior das casas.” — “Os penates — dizem eles ainda — são os deuses que nos fazem viver; eles nutrem nosso corpo e dirigem nossa alma(2).”

Era grato aos homens desse tempo dar ao lar o epíteto de casto(3), e acreditava-se até que o lar ordenava aos homens a observância da castidade. Nenhum ato material ou moralmente impuro devia ser cometido em sua presença.

As primeiras ideias de falta, de castigo, de expiação parecem ter aí a sua origem. O homem que se sente culpado não pode mais aproximar-se do lar; seu deus o repele. Para quem quer que haja derramado sangue não há mais sacrifício possível, nem libação, nem prece, nem banquete fúnebre. O deus é tão severo, que não admite desculpas; não distingue entre morte involuntária e crime premeditado. A mão manchada de sangue não pode mais tocar os objetos sagrados(4). Para que o homem possa retomar seu culto, e voltar à posse de seu deus, é necessário pelo menos que se purifique por uma cerimônia expiatória(5). Essa religião conhece a misericórdia; possui ritos capazes de limpar as impurezas da alma; por mais acanhada e grosseira que seja, ela sabe consolar o homem por suas próprias faltas. (grifos nossos).

Seguindo o pensamento desenvolvido por Coulanges, a ideia de castigo nasce da violação de uma norma de cunho religioso, que causa ruptura entre o homem e o seu protetor divino, o lar.

Mais adiante, já tratando da aplicação do direito, num cenário de evolução do Estado, quando da instituição da autoridade estatal representada pelo rei, nas cidades, ele mostra um exemplo de como exercia-se a autoridade judicante[6]:

Em Atenas, o primeiro arconte e o rei tinham quase as mesmas atribuições judiciárias que o pontífice romano, pois o arconte tinha a missão de velar pela perpetuidade dos cultos domésticos(4), e o rei, muito semelhante ao pontífice de Roma, tinha a direção suprema da religião da cidade. Assim, o primeiro julgava todas as questões que diziam respeito ao direito de família, e o segundo todos os crimes que atingiam a religião(5).

Veja-se que na antiguidade já se falava em crime, sob o viés de violação a normas estabelecidas no campo religioso. Essa escalada evolutiva chega ao ponto do surgimento das ligas das cidades até a formação política dos países durante a Idade Média, sobretudo na Europa.

Mais recentemente, a evolução científica trouxe consigo diversos avanços, visto que aumentou a complexidade das relações sociais. A população mundial cresceu vertiginosamente, sobretudo nos últimos dois séculos. O aumento da complexidade dessas relações trouxe, como efeito indesejado, a elevação da criminalidade.

A evolução tecnológica, experimentada em especial a partir da segunda metade do século XX, conquanto haja levado à necessidade de estruturação do Estado, como mantenedor da ordem social, também permitiu e induziu, por vias paralelas, a profissionalização, a atuação em organizações e a elevação da complexidade dos delitos. Barreiras territoriais foram rompidas, com profundo impacto na sociedade atual. Um panorama dessa evolução é tratado por este pesquisador.

Em O Vácuo do Poder e o Crime Organizado[7], já afirmávamos categórica e conclusivamente:

A emergência da aplicação dos mecanismos de repressão justifica-se até mesmo pelos índices incontroláveis de violência, notadamente a urbana, que tem suas raízes fincadas em fatores socioeconômicos alimentados pela ausência do Estado nas áreas consideradas essenciais ao desenvolvimento humano, como procuramos demonstrar durante todo o percurso deste nosso trabalho investigativo.

É deste terreno que se aproveita e nele se agiganta o narcotráfico, apresentando-se como canal de financiamento do crime organizado.

O Estado, enquanto órgão repressor, responsável pela manutenção do Estado Democrático Republicano de Direito, age de forma tímida e limitada, desprovido de uma legislação capaz de fragilizar o maior tentáculo do crime, o poder financeiro, pois este é o calcanhar-de-aquiles das empresas-crime.

Concebido o crime como um problema social, mas especificamente como um subproduto estrutural do sistema estatal, todo modelo de aproximação com o problema meramente reativo estará destinado ao fracasso.

De muito tempo para cá, as entidades empresárias do crime sofisticaram-se sobremaneira, desenvolveram camadas de proteção, estabeleceram mecanismos de compensação e criaram castas e estamentos, conforme o grau de participação dos indivíduos em suas estruturas internas, inclusive como meio de blindagem dos mais elevados níveis dentro da própria estrutura.

O Direito Penal, cujos princípios e métodos foram completamente repensados, principalmente a partir do pensamento do Marquês de Beccaria — Cesare Bonesana —, em sua inolvidável obra Dos delitos e das Penas, ainda no século XVIII, também recebeu o impacto insalubre dessa evolução no crime, sobretudo pela opacidade e ineficácia de seus métodos arcaicos de retribuição de pena apenas por meio de segregação ou de castigos. Tornou-se a criar métodos eficazes de enfrentamento à criminalidade, dos quais resultam, até os dias atuais, as conversões de penas restritivas de liberdade em medidas alternativas e a barganha. Haja vista a nefasta superlotação dos presídios brasileiros, transformados em massa de manobra e “centros operacionais” das Facções Criminais.

Além de uma série de projetos e programas integrados e multissetoriais (educação, saúde, trabalho e renda, cultura, lazer) pelo Estado brasileiro, com foco na prevenção ao crime comum, há de se convir, por conseguinte, que a eficácia do enfrentamento ao crime organizado necessitaria de mais do que a simples barganha ou a conversão em penas alternativas para que o Estado oficialmente instituído pudesse atingir e fazer ruir a estrutura interna das organizações criminosas, sobretudo por meio da constituição de provas robustas que não poderiam ser obtidas, a não ser que alguém de dentro as apresentasse ou denunciasse a instituição, seus líderes, seus métodos e suas atividades.

Um mecanismo de obtenção seria a infiltração de agentes estatais na estrutura, prática executada com mais ou menos eficácia e intensidade por diversos países. Essa prática, contudo, apresenta elevado risco para o agente, caso descoberto, e não garante que ele consiga se infiltrar nas altas cúpulas, nas quais, efetivamente, são conhecidas as atividades da organização criminosa. Isso cria o cenário necessário à formação do instituto da colaboração premiada, a ser aplicado por quem, sendo parte integrante da entidade do crime, negocia uma pena menos rigorosa para si em troca da outorga do conhecimento de que dispõe sobre a organização. Tudo isso, representa o cenário perfeito para o empoderamento dos setores de inteligência dos órgãos estatais de investigação e, sobretudo, do instituto da colaboração premiada.

ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA
A ruptura frequente e não reparada do tecido social provoca, na melhor das hipóteses, um sistema caótico, no qual o Estado não tem o poder, a legitimidade ou os mecanismos eficazes para reconstituir a ordem pública. Voltamos ao grande mestre Beccaria, que, já no século XVIII, observava a inadequação dos métodos punitivos como meio eficaz de contenção de delitos em patamares aceitáveis[8]:

Para um motivo que leva os homens a cometer um crime, há mil outros que os levam a ações indiferentes, que só são delitos perante as más leis. Ora, quanto mais se estender a esfera dos crimes, tanto mais se fará que sejam cometidos. porque se verão os delitos multiplicar-se à medida que os motivos de delitos especificados pelas leis forem mais numerosos, sobretudo se a maioria dessas leis não passarem de privilégios, isto é, de um pequeno número de senhores.

Quereis prevenir os crimes? Fazeis leis simples e claras; fazei-as amar; e esteja a nação inteira pronta a armar-se para defendê-las, sem que a minoria de que falamos se preocupe constantemente em destruí-las.

Não será necessário nos aprofundarmos na gênese dos delitos para observarmos que a manutenção da ordem social deve ter por base leis que não privilegiem determinadas castas, ou que tentem punir qualquer tipo de conduta com a mais severa das penas, mormente se utilizarem como pano de fundo uma falsa comoção social induzida pelas lentes midiáticas de entendimento deturpado e parcial.

A sábia e premonitória sentença de Beccaria estampa o exato momento vivido no Brasil atual, em que uma das instituições do Congresso Nacional — uma minoria privilegiada formada por deputados federais — busca destruir um sólido e eficaz mecanismo legal para eliminar os inimigos políticos e destroçar o já combalido sistema de combate ao crime organizado. Ou seja, de forma absolutamente esdrúxula e anômala, contemplamos o Estado a reboque dos interesses do crime… Mas o que vem a ser esse instituto tão combatido no Congresso? É o que tentamos responder nos tópicos a seguir.

3.1 O crime organizado – uma abordagem

Com efeito, em Segurança Pública Inteligente (Sistematização da Doutrina e das Técnicas da Atividade)[9], traçamos uma análise mais profunda sobre a complexidade desse contemporâneo fenômeno do crime organizado entrelaçado, inclusive, às organizações terroristas internacionais, em múltiplas teias de ações conexas e com bilhões de recursos movimentados e interesses políticos compartilhados.

O terrorismo e o crime organizado são faces contemporâneas do conflito global. Tanto o terrorismo quanto o crime organizado apresentam características específicas e uma delas é o aspecto social devido ao abandono do poder público em relação a determinadas regiões (investem, na medida de seu interesse de apoio da população e de recrutamento de seguidores e adeptos, no desenvolvimento cultural, educacional e em ações assistenciais, entre outros), o que divide o pensamento da população em geral: alguns condenam os atos desses grupos, mas outros admiram e os consideram seus salvadores. Por este motivo, acreditamos que conhecer as características do terrorismo e do crime organizado, e a enorme dificuldade de combate-los, é decisivo para o planejamento, a criação de alternativas e a implantação de políticas, estratégias e ações mais eficazes na área de segurança pública e justiça penal.

Entretanto, aqui não cabe — e não é nosso intuito — encerrar a discussão, principalmente em função da apertada abordagem deste artigo, mas, como estudioso, por várias décadas, das organizações criminosas, é possível ter por base uma premissa elementar da natureza humana: a busca diária pela estabilidade, pela conquista de bens e pela progressão social, no cenário de competição cada vez mais acirrado, no qual as necessidades são infinitas e crescentes e os bens são cada vez mais escassos.

Desde logo, uma parcela destacada na inteligência e percepção dos movimentos sociais percebeu que a prática individuada de crimes mantinha, em pequenos patamares, o lucro da ação criminosa, ao passo que o risco dessa ação era elevado. Ou seja, essas pessoas organizaram-se, sob um pacto de fidelização, especializando-se na prática de determinadas atividades criminosas que fossem mais lucrativas e de menor risco. Assim, todos recebiam conforme seu lugar na organização, beneficiando-se em maior ou menor grau, dependendo de seu papel e de sua atividade nessa empreitada.

Com a evolução tecnológica, essas organizações reinventaram-se. Aprenderam, inclusive, como o Estado funciona e nele se infiltraram. Reiteramos aqui, por oportuno, a já citada obra O Vácuo do Poder e o Crime Organizado, de 2002[10], quando desde ali estabelecíamos uma longa disposição sobre o Estado, desde a sua origem, suas definições adotadas por grandes pensadores, sua crise existencial. Daí, passamos à análise do conceito de crime, para então reconhecermos a instituição societária criminosa:

Em princípio, crime organizado é o crime com características de societas sceleris ou empresariais, que atinge duramente a sociedade bem como o seu sistema financeiro. É um delito de proporções e efeitos catastróficos. Como o próprio nome sugere, é uma prática adotada por homens e mulheres organizados que, em grande parte, têm no seu comando insuspeitos personagens públicos, os quais podem ser encontrados até em jornais, revistas e televisão, como inatacáveis cidadãos.

É uma tarefa quase impossível enumerar todos os fatores socioeconômicos e pessoais que concorrem para esta modalidade criminosa. Este tipo delitivo possui a estrutura de uma verdadeira empresa, sociedade ou companhia. Combina os fatores essenciais da produção com a consecução de seus fins ilegais e com especializações tecnológicas. Muito sólida, possui um alto escalão de diretores, os quais nunca são localizados nem conhecidos pelo público.

Como exemplo disso, tem-se, a partir de 1946, a máfia italiana mais famosa à época, com ramificação nos Estados Unidos (Cosa Nostra), onde homens da alta cúpula do poder norte-americano, de uma forma ou de outra, contribuíam com ela, seguida algum tempo depois pela máfia japonesa (YAKUZA), pela máfia chinesa (Tríades Chinesas), e um pouco mais recente, pelo Cartel de Cali e Medelin, ambos na Colômbia. Estas últimas dominaram e dominam, até os dias de hoje, o tráfico de entorpecentes em toda a América do Sul, com ramificações em países da Europa, funcionando como se fossem uma Sociedade Anônima.

A organização criminosa impõe-se através de subornos, intimidações, violências, principalmente nos seus campos mais lucrativos – tráfico de entorpecentes, prostituição, jogos ilegais (bicho e bingo), agiotagem e sequestro, sendo este último, na maioria das vezes para impor medo, intimidação e constrangimento às vítimas e reféns.

Após obterem os primeiros lucros dessas atividades, estruturam-se em empreendimentos vultosos e lícitos para que o restante do dinheiro possa ser capitalizado legalmente, transformando-se em dinheiro limpo. Dá-se a essa operação o nome de lavagem de dinheiro.

São passadas mais de duas décadas dessa nossa análise primária, cujas premissas mostram-se inabaláveis, senão avançadas mais ainda, têm se sofisticado e se mimetizado no Estado a tal ponto, que hoje, em determinados países, incluindo o Brasil, não sabermos, com clareza, qual o liame entre Estado e crime organizado. Não conseguimos precisar a fronteira, tal a aparência que as organizações aprenderam a simular.

Hoje encontramos o crime organizado entremeado nas estruturas de comando e de poder do próprio Estado. Endossam-nos os grandes escândalos de corrupção da história brasileira recente, dos governos ditos cidadãos: anões do orçamento (1987); navalha na carne (2007); TRT-SP (1992-1998); Jorgina de Freitas e a previdência (1991); fundos de pensão (2015); zelotes (2015); “mensalão”, “petróleo” (2003); e, atualmente, lava jato, etc., a lista é infinita… São apenas alguns dos mais vultosos, e cujo mapeamento foi possível por força da atuação de alguém de dentro.

3.2 A lei nº 12.850, de 2013, e os mecanismos de atuação contra o crime organizado

Enfrentar o crime organizado demanda trabalho, exige coragem, depende de um bom conjunto de leis, da polícia judiciária — federal e estaduais — fortalecida, prestigiada, preparada e aparelhada, do uso de inteligência e de segmentos do Ministério Público e do Poder Judiciário arrojados, comprometidos, atuantes e capacitados.

Todavia, ainda que essas variáveis estejam atuando razoavelmente, isso, por si só, não garante a eficácia do bom combate em face das entidades criminosas.

O mecanismo é simples: o agente infrator, membro de uma organização criminosa que cai nas mãos do Judiciário, está vinculado a um rígido sistema de pactos, cumplicidades, compensações e punições, caso traia sua organização. Para fazê-lo, ele reclamará determinadas garantias que se mostrem atrativas o suficiente: redução de penas, segurança a si e à sua família, inserção em programas de proteção etc.

Particularmente, no que se refere à legislação, o Direito Penal brasileiro demorou a estabelecer instrumentos capazes de permitir a negociação direta. Embora o Código Penal e determinadas leis esparsas tratassem, de per si, as definições e o combate a modalidades delitivas empresariais, como o narcotráfico, por exemplo.

Apesar de o país já contar com leis a respeito do uso e do tráfico de drogas desde a década de 1920 (Decreto nº 4.294, de 6 de julho de 1921[11]), além de se tratar de apenas uma abordagem parcial, pela definição e corporificação de penas, era necessário ampliar os mecanismos de composição e de negociação penal, para viabilizar e validar, legitimamente, a manifestação de um membro de organização criminosa, que alargasse o universo da letra pura sobre a modalidade delitiva e a pena imputada, permitindo que essa mesma negociação fosse considerada apta a instruir, como prova, um processo destinado a identificar e neutralizar determinadas entidades criminosas.

Remontando um passado mais remoto, Pamella Rodrigues Dias[12] publicou um artigo na internet, no qual assevera que a comumente chamada delação premiada tem assento nas Ordenações Filipinas (1603-1867), especificamente quanto aos crimes de falsificação de moeda.

O Código Penal, em sua redação original, no artigo 281, definia a formação de bando ou quadrilha como a associação de duas ou mais pessoas para cometerem crimes relacionados ao uso ou ao comércio de entorpecentes. Ou seja, não abrangia a totalidade das modalidades delitivas praticadas sob a forma de associação criminosa.

Uma boa tentativa de definir os contornos da organização criminosa veio com a Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995[13], que dispunha “sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas”.

Em treze artigos, essa lei fez um ensaio para viabilizar a persecução criminal contra organizações criminosas sem esbarrar na prova obtida por meios ilícitos, seu verdadeiro objetivo, notório na sua ementa. Ela peca, todavia, pela superficialidade, a nosso módico juízo, pela carência de dispositivos definidores.

De forma sistêmica, a definição legal do que vem a ser organização criminosa e os métodos e institutos, à disposição do Poder Judiciário, para enfrentamento das suas atividades, nascem somente em 2013, com a Lei nº 12.850, de 2 de agosto, valendo transcrever:

Art. 1º Esta Lei define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado.

1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
No capítulo II dessa lei, concentra-se o que nos interessa, a partir do artigo 3º:

Art. 3º Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova:

I – colaboração premiada;

II – captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos;

III – ação controlada;

IV – acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais;

V – interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da legislação específica;

VI – afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica;

VII – infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma do art. 11;

VIII – cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal. (grifos nossos)

Observa-se que essa lei, além de delinear os contornos antes nebulosos do que seria considerada uma organização criminosa, dotou as autoridades investigativas, o Ministério Público e o Poder Judiciário de um rol de mecanismos capazes de assegurar a legalidade no processo e a efetividade na prestação jurisdicional.

O dispositivo transcrito conta, ainda, com dois parágrafos que atestam, inclusive, o afastamento da publicidade, quando houver necessidade de contratar empresas ou pessoas para a realização de serviços técnicos especializados ou para a aquisição de equipamentos, sem dispensar a comunicação ao órgão de controle interno.

3.3 Colaboração premiada e seu uso pelos custodiados

Pela atual redação do dispositivo, quem quer que integre uma organização criminosa e esteja sob a custódia do Estado pode fazer uso do instituto da colaboração premiada, para ver reduzido o ímpeto das penalidades. Trata-se de um mecanismo de dupla face: a) permite ao Judiciário transacionar a pena, em busca de novas informações que se aprofundem no conhecimento das organizações criminosas; e b) auxilia a defesa do autor do delito que deseje negociar a redução de sua pena, pelas informações que detém da organização.

Em admirável obra, recém lançada — Direito Premial e Colaboração Premiada: Delação Premiada como forma de Produção Probatória na Investigação e Crimes Organizados, em que ao avaliar de forma profícua e exaustiva os institutos jurídicos correlatos em mais de trinta anos no Brasil assinala a importância do Estado aparelhar-se para enfrentar toda a complexidade que envolve o tema “dentro das regras do jogo”, ou seja: respeitando a lei e a Constituição Cidadã em face dos investigados e acusados no Processo Penal. Assim, o seu proficiente autor, o destacado criminalista Alex Neder, assevera[14]:

Com toda evolução jurídica que passou e passa, a Colaboração Premiada é definida como um meio especial de obtenção de prova e uma técnica especial de investigação, dentre outras previstas em lei, através da qual o agente do fato criminoso, coautor e/ou partícipe, objetivando uma redução de pena ou até mesmo a sua total isenção, colabora com os órgãos de investigação criminal (Polícia Judiciária, Ministério Público), inicialmente confessando os seus crimes e fornecendo dados importantes para identificação de terceiros e de parceiros do crime, e ajuda na recolha de provas que levem às autorias; na individualização das condutas dos participantes; na recuperação de ativos desviados e/ou subtraídos; na localização de pessoas, e, por fim, quando possível no desmantelamento da organização criminosa.

A Delação Premiada é um instrumento importante ao combate do crime organizado por agir de “dentro para fora” nas Orcrim, o que tem demonstrado muita eficiência, desde que sejam respeitados os princípios e direitos fundamentais […] Além disso, o processo penal brasileiro, bem como em Portugal e em outros países, encontra muitas dificuldades na busca da “prova” judicializada, por isso a valorização desse instituto.

[…]

Tanto que, a chamada “Lei Anticrime”, que alterou a Lei 12.850/2013, exige que, ao se formular o acordo entre o acusado e o Ministério Público, fique expressamente estabelecida a obrigação, pelo agente, de apresentar “as provas e os elementos de corroboração”. Assim, a não apresentação poderá ser causa de rescisão do pacto. Essa exigência legal busca garantir maior credibilidade à colaboração, tornando-se condição de admissibilidade de uma futura condenação ou mesmo de decisões cautelares. A Lei 13.964/2019, buscou aprimorar o instituto, evitando-se o início de persecuções penais de meras colaborações, tal como já se deu no passado, causando danos à imagem e à reputação de pessoas moralmente atingidas por delações que não restaram comprovadas.

Ocorre que o inusitado projeto de alteração da Lei nº 12.850, de 2013, e sua movimentação oportunista em direção à urgência na tramitação não estão calcados em uma discussão séria acerca do alcance do dispositivo e do impacto nefasto que ele sofrerá com essa desidratação, simplesmente ao se negar, ao custodiado, acesso ao instituto da colaboração premiada. Trata-se apenas do iníquo abuso do poder de legislar para favorecer os amigos e espinafrar os adversários.

Essa atuação tão canhestra do Legislativo Nacional é absolutamente arrasadora e retrógrada, se pensarmos o quanto ocorreu um avanço, pelo simples fato de que muitos delitos — e escândalos de escala planetária — foram alvo de ação exitosa do Poder Judiciário, que, com isenção e mediante o uso de mecanismos legais abrigados pela Constituição da República, alcançou êxito na identificação de organizações criminosas gigantes, atuando no seio da administração pública, na persecução e penalização de altos figurões, inclusive políticos de renome internacional e empresários presumivelmente honestos e bem-sucedidos.

Causa espécie o alvoroço atual instalado na Câmara dos Deputados, cujo presidente pautou pedido de urgência para tramitação e decisão do Projeto nº 4372, de 2016, sob o argumento de que um determinado preso, ora integrante do grupo político considerado adversário, teria feito uso do então projeto para minorar o concurso de modalidades delitivas a si imputadas.

CONCLUSÃO
À guisa de uma conclusão, recorremos mais uma vez à obra O Vácuo do Poder e o Crime Organizado, quando denunciávamos na oportunidade a necessidade de uma legislação mais sólida e eficiente em face do fenômeno estudado, por todas as considerações sobejamente expostas aqui. Já naquela quadra histórica antevíamos:

Não se poderia deixar de consignar, por oportuno, após a avaliação acima em relação à legislação brasileira de combate ao crime organizado, mesmo que resumidamente, acostados, voltamos a frisar, nos ensinamentos do eminente professor Luiz Flávio Gomes, crítico super abalizado da Lei 9.034/95, que o governo brasileiro, ao editar a Lei referida, apesar das evidentes razões emergenciais, não conseguiu oferecer aos órgãos que compõem o sistema de segurança pública, persecução e justiça penal uma legislação suficientemente eficaz como instrumento ao enfrentamento ao crime organizado. Em suma, a lacuna legislativa não foi devidamente preenchida. O vácuo legislativo ainda se faz presente.[15]

É sabido que, embora houvesse tentativas anteriores de se definir legalmente e de viabilizar meios de enfrentamento das organizações criminosas e de suas atividades ilícitas, somente a partir da Lei nº 12.850, de 2013, foi que se avançou, ao serem estabelecidos contornos claros e objetivos do que vem a ser a organização criminosa.

Tal lei também cuidou de definir os institutos e mecanismos capazes de auxiliar as autoridades policiais, o Ministério Público e o Poder Judiciário no enfrentamento de entidades criminosas, por meio de um abrangente rol de possibilidades à sua disposição, entre eles, o valioso instituto da colaboração premiada.

Com certeza, o surgimento dessa lei representou um marco. Para quem se lembra, 2013 foi um ano de grandes movimentos em direção à moralização da atuação do Estado, pelo clamor público contra a impunidade e pela criação de mecanismos eficazes de combate a crimes de grande repercussão, que lesavam o Estado e cujos agentes ficavam impunes, quer pela inexistência de instrumentos processuais adequados, quer pelo uso de subterfúgios capazes de arrastar o processo até a prescrição do delito.

Se a Lei nº 12.850, de 2013, é uma resposta direta e suficiente a esse clamor público, não podemos afirmar. Mas ela surge nesse contexto e representa um grande marco, porque aparelhou o Poder Judiciário, conferindo-lhe o que se costuma chamar de “paridade de armas” para o enfrentamento de entidades ágeis, complexas e sorrateiras, que se movem nas sombras ou mimetizadas em ações e atividades pretensamente normais.

Como investigadores e pesquisadores das organizações criminosas, pensamos que esse projeto de desidratação de um instituto tão valioso quanto a colaboração premiada não deveria sequer existir. A rigor, apostamos inclusive na sua inconstitucionalidade, tal a gama de princípios e dispositivos feridos. Todavia, não há que se falar em controle de constitucionalidade de lei em tese, é uma tarefa que deve ser desempenhada pela Comissão de Constituição e Justiça das Casas Congressuais brasileiras.

Ademais, dessuma-se por óbvio que a combalida Segurança Pública e a Justiça Penal no Brasil enfrentam desafios incomensuráveis, os quais exigem a participação colaborativa, entre todas as esferas e níveis de poder da República, além de ações integradas e inovadoras, buscando-se as mais diversas ferramentas de aprimoramento, a fim de melhorar as condições de vida dos cidadãos. A gestão administrativa eficiente, com absoluta solidez e transparência, por meio de recursos humanos e tecnológicos, demanda, fundamentalmente, uma legislação moderna, ágil e eficaz. É imprescindível!

A atuação do Congresso Nacional, pela atitude de parte dos integrantes da Câmara dos Deputados, incluído o seu presidente, de dar continuidade a esse projeto e seus apensos, causa um efeito contrário e grande insegurança.

Resta-nos lamentar que, ao final do primeiro quartel do século XXI, no Brasil, um país que goza de certo prestígio e relevância no cenário mundial, práticas deletérias como essa ainda sejam vistas. Principalmente porque essas práticas corroem e erodem princípios constitucionais basilares como o da igualdade de todos perante a lei, da ampla defesa e do contraditório, da legalidade estrita, da impessoalidade, da segurança jurídica, da irretroatividade das leis e da anterioridade, para citar os mais atingidos, com essa manobra legislativa feita sem o menor constrangimento, à margem do bom senso.

Por fim, retornamos à máxima de Rui Barbosa, de amplo conhecimento público, cujo conteúdo ecoa pelos anos e pelos corredores da aviltada Justiça:

De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.

Que o eco dessas palavras no tempo seja o brado finalístico da retirada das algemas que pretendem colocar no Judiciário, por meio desse projeto nefasto e infame.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto nº 4.294, de 6 de julho de 1921. Disponível em: https://www.diariodasleis.com.br/legislacao/federal/164670-estabelece-penalidades-para-os-contraventores-na-venda-de-cocaina-opio-morphina-e-seus-derivados-crua-um-estabelecimento-especial-para-internauuo-dos-intoxicados-pelo-alcool-ou-substancias-vene.html. Acesso em: 19 jul. 2024.

__. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília: 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 14 jan. 2024.

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__. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm. Acesso em: 21 jul. 2024.

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[1] Advogado. Escritor. Professor. Conferencista. Delegado de Polícia de Classe Especial Veterano. Mestre em Direito Público e Pesquisador Acadêmico (Universidade de Extremadura / Espanha). Graduado em Curso de extensão em Crime Organizado (Polizia di Stato / Roma / Itália). Especialista em Políticas Públicas (Universidade Federal de Goiás). Especialista em Segurança Pública – Direito Penal e Processual Penal (Pontifícia Universidade Católica de Goiás). Membro da Federação Penal Internacional (Paris / França). Membro da Abracrim – Associação Brasileira de Advogados Criminalistas. Membro (ex-presidente) da ACAD – Academia Goiana de Direito. Ex-Delegado Geral da Polícia Civil e Ex-Secretário de Estado de Justiça de Goiás.

[2] CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº 4372/2016. Altera e acrescenta dispositivo à Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013 que “define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Autoria: Deputado Federal Wadih Damous, 2016.

[3] OLIVEIRA FILHO, Edemundo Dias de. Delação Premiada: o trigo e o joio. Artigo. Jornal O Popular, Coluna Opinião do Leitor. Goiânia, 9 jul. 2024.

[4] BÍBLIA. Português. Tradução de João Ferreira de Almeida, Corrigida Fiel: Bíblia online. Gênesis 4: 1-16. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/4. Acesso em: 18 jul. 2024.

[5] COULANGES, Numa-Denys Fustel de. A Cidade Antiga. Trad. Frederico Ozanam Pessoa de Barros. São Paulo: EDAMERIS, 2006, pp. 67-68. Disponível em: https://latim.paginas.ufsc.br/files/2012/06/A-Cidade-Antiga-Fustel-de-Coulanges.pdf. Acesso em: 18 jul. 2024.

[6] COULANGES, Numa-Denys Fustel de. Id. p. 131.

[7] Oliveira Filho, Edemundo Dias. O Vácuo do poder e o crime organizado: Brasil início do século XX. Goiânia: AB, 2002, p. 171.

[8] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Versão para eBook. Editora Ridendo Castigat Mores, p. 67. Disponível na rede mundial de computadores internet – ver detalhes: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraDownload.do?select_action=&co_obra=4358&co_midia=2. Acesso em 17 jul. 2024.

[9] OLIVEIRA FILHO, Edemundo Dias de; FERRO JÚNIOR, Celso Moreira; PRETO, Hugo César Fraga. Segurança Pública Inteligente (Sistematização da Doutrina e das Técnicas da Atividade). George Felipe de Lima Dantas (colaborador). Goiânia: Kelps, 2008, p. 49.

[10] OLIVEIRA FILHO, Edemundo Dias de. O Vácuo do Poder e o Crime Organizado – Brasil Início do Século XXI. Goiânia: AB, 2002. p. 69-70.

[11] BRASIL. Decreto nº 4.294, de 6 de julho de 1921. Estabelece penalidades para os contraventores na venda de cocaína, ópio, morfina e seus derivados. Cria um estabelecimento especial para internação dos intoxicados pelo álcool ou substâncias venenosas; estabelece as formas de processo e julgamento e manda abrir os créditos necessários. Disponível em: https://www.diariodasleis.com.br/legislacao/federal/164670-estabelece-penalidades-para-os-contraventores-na-venda-de-cocaina-opio-morphina-e-seus-derivados-crua-um-estabelecimento-especial-para-internauuo-dos-intoxicados-pelo-alcool-ou-substancias-vene.html. Acesso em: 19 jul. 2024.

[12] DIAS, Pamella Rodrigues. Origem da delação premiada e suas influências no ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/origem-da-delacao-premiada-e-suas-influencias-no-ordenamento-juridico-brasileiro/112140126#:~:text=No%20Direito%20Brasileiro%2C%20os%20primeiros,crimes%20de%20falsifica%C3%A7%C3%A3o%20de%20moeda. Acesso em: 22 jul. 2024.

[13] BRASIL. Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995. Dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9034.htm. Acesso em: 22 jul. 2024.

[14] NEDER, Alex. Direito Premial e Colaboração Premiada – Delação Premiada como forma de Produção Probatória na Investigação e Crimes Organizados. Curitiba: Juruá, 2023. p. 111.

[15] Op. cit. p. 146.

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