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DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO BRASIL PANDÊMICO: DA LIQUIDEZ DAS RELAÇÕES

DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO BRASIL PANDÊMICO: DA LIQUIDEZ DAS RELAÇÕES


Fernanda Abreu de Oliveira[1]

Bruna Isabelle Simioni Silva[2]

Ezilda Melo[3]


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR: A VIOLÊNCIA DO SILÊNCIO

De forma inesperada a população mundial foi afetada por um vírus, em que os estudos mais antigos sobre o mesmo chegam próximos de 5 (cinco) meses, período relativamente curto para investigação e apresentação de dados precisos que possam indicar o melhor tratamento e remédios a serem utilizados para aqueles que são acometidos.

O avanço do vírus pelo mundo que já atingiu a marca de 2.692,579 casos, com 188.075[4] mortes registradas, e tendo sido classificado pela OMS como sendo de risco muito elevado, fez com que milhares de laboratórios iniciassem corrida contra o tempo a fim de buscar uma vacina para tentar barrar os casos de contágio e em uma tentativa de trazer a normalidade[5].

A contaminação mais comum do covid-19 ocorre entre as pessoas por meio de “gotículas respiratórias ou contato direto com secreções contaminadas”, e assim governos dos países, no intuito, de achatar a curva de crescimento, optaram como saída por medidas de distanciamento social, que inicialmente começou de forma seletiva (grupos de riscos), porém, em virtude da rápida e alta transmissão, foi necessária a ampliação, não se limitando a grupos específicos, mas de toda a população[6], mantendo em funcionamento apenas as atividades consideradas essenciais.

Assim, diversas atividades normalmente desenvolvidas tiveram que se reinventar e tomar novos rumos para continuarem sendo realizadas diante do isolamento social, optando, muitas vezes, pelo trabalho home office.

Porém, não basta apenas os cuidados com a transmissão do vírus, mas também com as consequências nas demais searas, como é o caso do aumento dos riscos de violência doméstica e familiar.

O tema já trazia preocupações mundiais considerando índices alarmantes de violência. Estatísticas apresentadas pela ONU demonstram que “um terço das mulheres em todo o mundo experimentou alguma forma de violência em suas vidas”[7], apreensões que fazem sentido, visto que no Brasil dados do monitoramento da Polícia Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, que indicam que o país finalizou o ano de 2019 com um total de 563.698 novos processos, uma variação de 9,9% mais do que no ano de 2018, tendo um total de 403.646 medidas protetivas concedidas, representando uma variação de 19,9% a mais do que em relação ao ano de 2018[8].

Durante o período de confinamento, em que se tem 90 países, chegando, aproximadamente, a quatro bilhões de pessoas[9] nessa situação os números de violência doméstica tendem a crescer “já que mulheres em relacionamentos abusivos e violentos em isolamento social ficam expostas ao seu abusador por longos períodos de tempo”[10].

Em pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública os relatórios da polícia sobre abuso doméstico demonstraram redução para 652 nos primeiros 22 dias de março, e em comparação ao ano de 2019 em que representava 1.157 casos, e também a linha de apoio à violência doméstica do país, telefone Rosa, teve uma queda de 55% desde o início do isolamento social, tendo recebido 496 chamadas, nas duas primeiras semanas de março, sendo que no mesmo período em 2019 chegou a 1.104 ligações[11].

Ainda, aponta a pesquisa que houve a redução das medidas protetivas de urgência que foram concedidas, representando, por exemplo, no Estado de São Paulo uma redução de 37,9%, visto que no ano de 2019 no mês de abril haviam sido concedidas 1.785 medidas, enquanto no mesmo mês em 2020, durante o período de confinamento, foram concedidas apenas 1.109 medidas protetivas de urgência[12].

Os números acima apresentados não refletem a realidade do país, considerando que “as sobreviventes da violência podem enfrentar obstáculos adicionais para fugir de situações violentas ou cessar ordens de proteção que salvam vidas e/ou serviços essenciais”[13], vez que durante o isolamento muitas mulheres não conseguem sair de casa ou possuem receio de realizar considerando a presença e aproximação do ofensor.

A violência contra a mulher acontece, em sua grande maioria, dentro do âmbito doméstico e familiar o que dificulta a verificação do episódio. Porém, embora tenha ocorrido a diminuição dos dados estatísticos de ligações, ocorrências e medidas protetivas concedidas, é possível verificar que os dados não representam a realidade vivenciada por mulheres no país ao passo que os números de feminicídio só no Estado de São Paulo chegou a 46% fazendo comparativo entre o mês de março de 2019 e de 2020, e duplicou na primeira quinzena de abril[14].

Se a ocorrência da violência já era preocupante em tempos normais, após a pandemia que assolou o mundo de maneira abrupta é ainda mais, se mostrando silenciosa quando mulheres são impedidas de terem meios de enfrentá-la, reduzindo, por consequência os dados estatísticos, dando a falta impressão de que houve a sua redução, e, somente, demonstrando seus reais números quando apresenta um resultado drástico, a morte da vítima.

DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO NO BRASIL COMO EXPRESSÃO DE VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NO CONTEXTO DO COVID-19

O isolamento social imposto pela pandemia nominada de Covid-19 gerou um aprisionamento que coloca lado a lado os temas violência contra a mulher[15] e sobrecarga laboral das mulheres, expondo às lentes de aumento do contexto pandêmico a desigual divisão sexual do trabalho vigente em nossa sociedade.No entanto, como não se tem chamado de violência a forma como o trabalho dentro e fora dos lares está social e economicamente organizado, é importante da visibilidade à questão, ampliando não só a percepção do que seja trabalho, mas também do que seja violência, reconhecendo adequadamente a gravidade da questão.

Documento que tem se tornado referência atual sobre a temática foi produzido pelas organizações sociais de fins comuns designadas Think Olga e Think Eva. Seu relatório[16], no eixo 1 (violência contra a mulher), partindo do conceito de violência contra a mulher como qualquer ato de violência baseada no gênero, ressalta-se que “os casos de violência doméstica aumentam em períodos de estresse e perturbação prolongados, como crises financeiras e desastres naturais.[17] No eixo 2 (mulher, trabalho e economia), o problema é associado ao fato de que “a crise econômica agrava ainda mais a situação de mulheres em trabalho informal, pequenas e médio empreendedoras, mães e mulheres em empregos mal-remunerados”.[18] No eixo 3 (mulher e saúde), destacam-se que, embora os homens, segundo a Ministério da Saúde, sejam os mais atingidos pelo Covid-19 (57,7% dos óbitos registrados no Brasil), as mulheres são 57% dos idosos brasileiros, de forma que, quando não integram o grupo de risco, são a maioria na chamada linha de frente dos cuidados aos doentes. [19]



Violência contra as mulheres e trabalho doméstico são eixos comuns à quase totalidade das abordagens sobre o tema, mas a relação entre essas duas categorias estruturais não se opera. As notícias no Brasil dão conta de que as mulheres seriam o grupo social mais afetado pelo novo coronavírus, seja quando o assunto é impacto econômico[20], transitando pela questão da sobrecarga decorrente da suspensão de aulas em todo o mundo e suas consequências para as mulheres-mães no equilíbrio entre o cuidado em tempo integral e o home office, além da importância das redes de solidariedade e apoio[21]. Isto também para insistir sempre na perspectiva das múltiplas jornadas e da presença maciça das mulheres na linha de frente do combate ao Covid-19.[22]



A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – PNAD designada outros trabalhos”[23], que trata dos assim chamados “afazeres domésticos e cuidado de pessoas”, nos diz que, embora em relação a 2017 tenha havido um aumento da participação dos homens nesse tipo de trabalho, em todas as regiões do país as mulheres realizaram mais afazeres domésticos e cuidados que os homens (com percentual maior de 90% para elas, chegando a 94,7% na Região Centro-Oeste, e percentual variante entre 73,1% na Região Nordeste e 84,6% na Região Sul para eles). [24] Igualmente, em média, elas realizam quase o dobro de horas semanais em atividades de afazeres domésticos e/ou cuidado de pessoas. A média das mulheres, no Brasil, é de 21,3 horas semanais dedicadas a afazeres e/ou cuidados, ao passo que a medida dos homens é de 10,9 horas, ficando a Região Nordeste com a maior diferença de horas entre homens e mulheres (em média 11,5 horas). [25]



No mundo e de forma geral, essa realidade de desigualdades é uma constante[26]. E os documentos produzidos até o momento que integram a perspectiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos no contexto do Covid-19 ostentam sentido símile quanto aos elementos e condições que qualificam o maior impacto da pandemia sobre a vida das mulheres, com necessária consideração dos elementos de sua diversidade, tais quais raça, etnia, classe ou condição social, orientação sexual, dentre outros. Nisto merecem destaque dois documentos em particular, os quais tratamos de início apenas do ponto de vista de seus fatores determinantes.

Primeiramente, a ONU Mulheres lançou 14 (quatorze) recomendações para combate à pandemia Covid-19 sob perspectiva de gênero[27]. O documento traz a questão da violência doméstica apartada da questão da sobrecarga laboral das mulheres, mesmo reconhecendo o caráter drástico desta especialmente em tempos de pandemia. A Resolução 1/2020[28], por sua vez, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em seu item III trata em específico dos assim chamados “grupos em situação de vulnerabilidade”, lembrando que, ao emitir medidas de emergência e contenção em relação à Pandemia do Covid-19, deve-se aplicar perspectivas interseccionais e ter atenção especial ao impacto diverso das medidas nos direitos humanos de grupos historicamente excluídos.

A forma como é construído socialmente o papel das mulheres na execução dos afazeres domésticos e na realização do cuidado familiar pode exsurgir como violência tanto a partir de uma configuração normativa, como a partir de elementos externos a esta. Assim, para fins deste item de pesquisa, a violência é entendida em acepção mais ampla. Não a partir da tipologia dos danos que causa, mas de uma perspectiva dúplice: 1) como exercício de poder que transforma a diferença em desigualdade; e 2) como violação dos direitos humanos das mulheres.

O ponto de partida para compreensão da violência como exercício de poder que convola diferença em desigualdade remonta ao conceito de Marilena Chauí[29], literalmente:

Entendemos por violência uma realização determinada das relações de forças, tanto em termos de classes sociais, quanto em termos interpessoais. Em lugar de tomarmos a violência como violação e transgressão de normas, regras e leis, preferimos considerá-la sob dois outros ângulos. Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade, com fins de dominação, de exploração e opressão. Isto é, a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior. Em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência.

Nisto, violência é, primeiro, a efetivação de relações de forças. Segundo, essas forças acontecem em termos de classes e em termos interpessoais. Terceiro, há violência quando se converte uma diferença em uma desigualdade com a finalidade de dominar, explorar e oprimir. Quarto, há violência quando o ser humano é objetificado através de um silenciamento que o anula.

A relação homem-mulher, em nossa sociedade, com aspectos de classe e interpessoais, baseia-se na conversão do que é diferença em desigualdade e as finalidades disto não são outras senão a dominação, a exploração e a opressão. A diferença entre seres humanos plurais é convertida em desigualdade extrema dentro das relações laborais homem-mulher, uma desigualdade que avulta no exercício tanto do labor produtivo quanto do labor reprodutivo, aquele especialmente desvalorizado e este particularmente invisibilizado, como denotam as pesquisas acima ressaltadas. Eis uma realidade externa à pandemia que avulta com sua ocorrência, a par do isolamento e da maior necessidade dos serviços de cuidado/assistência. [30]



Embora Chauí diferencie a violência enquanto desigualdade da violência enquanto silenciamento, não se pode deixar de vislumbrar que a divisão sexual do labor em nossa sociedade se convola também em uma forma de objetificação da mulher, uma forma de destiná-la em sua existência pessoal e profissional à satisfação de necessidades (afazeres domésticos e cuidados, principalmente) que, em verdade, são uma responsabilidade social, da coletividade, posto que essencial à subsistência desta. Há uma imposição social do trabalho doméstico como tarefa afeita às mulheres, em caráter predominantemente não remunerado, o que se obtém a partir de processos de naturalização dos papéis sociais, que em verdade são construídos e erigidos para justificar a exploração não economicamente valorada de tal labor. Eis um claro mecanismo de conversão da diferença em desigualdade para fins de exploração laboral, o que traz equivalência com o conceito de violência em Chauí. [31]



Categoria relevante na compreensão desse fenômeno é a assim chamada divisão sexual do trabalho, que seria “uma forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos”, cuja características principal é a destinação da “esfera produtiva” aos homens e da “esfera reprodutiva” às mulheres, o que tem como resultado a desigualdade decorrente da “apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado”. [32] Além do quê, essa distância sucede de forma distinta a depender de outros fatores de vulnerabilidade social, como a própria doutrina da divisão sexual do trabalho reconhece e como diversas vezes já se ressaltou neste escrito. A teorização em foco é, aqui e aliás, fortemente endossada pelos números já destacados acerca da desigualdade entre homens e mulheres nos âmbitos do trabalho produtivo e reprodutivo, de tal sorte que em ambos estes meios a mulher é vitimizada pela exploração desigual de seu labor e pela violação de direitos vinculados à sua dignidade humana.

Isso impõe às mulheres uma sobrecarga social e pessoal que causa prejuízo ao seu pleno desenvolvimento, se lhe negando condições equitativas para tanto. Tem-se aí a segunda forma de violência abordada neste trabalho: a violência como violação sistemática dos direitos humanos das mulheres. Isto decorre diretamente da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, ratificada pelo Brasil em 1995/1996[33], cujo artigo 3 é expresso em afirmar que “toda mulher tem direito a ser livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada”.[34] Segundo o seu artigo 6, a mulher tem o direito de viver livre de violência e isto engloba o direito a “ser livre de todas as formas de discriminação” e o “direito da mulher de ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e costumes sociais” e que a inferiorizem.

Sem dúvida, a forma como o trabalho produtivo e reprodutivo está organizado em nossa sociedade dentro e fora do lar, a nosso sentir, é uma forma específica e deveras virulenta de violência contra a mulher, na medida em que lhe impõe um processo de discriminação sistemático, estrutural e generalizado, tornando-a cativa de um padrão educacional e de vida estereotipado conforme comportamentos e costumes sociais e culturais que lhe inserem em uma condição de inferioridade e subordinação, causando prejuízo direto e grave ao exercício pleno de seus direitos humanos e também fundamentais.

AMORES LÍQUIDOS EM TEMPO DE PANDEMIA

Apesar das subnotificações, tanto da COVID-19, quanto da violência doméstica, dados dão conta que esta aumentou no Brasil durante o período da pandemia, e também em outros países, a nível comparativo.

De acordo com declaração de Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora executiva da ONU Mulheres e vice-secretária geral das Nações Unidas: à medida que mais países relatam infecções e bloqueios, mais linhas de ajuda e abrigos para violência doméstica em todo o mundo estão relatando pedidos crescentes de ajuda. Na Argentina, Canadá, França, Alemanha, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos, autoridades governamentais, ativistas dos direitos das mulheres e parcerias da sociedade civil denunciaram crescentes denúncias de violência doméstica durante a crise e aumento da demanda para abrigo de emergência. As linhas de apoio em Singapura e Chipre registraram um aumento de chamadas em mais de 30%. Na Austrália, 40% de trabalhadores e trabalhadoras da linha de frente em uma pesquisa de New South Wales relataram um aumento de pedidos de ajuda, porque a violência está aumentando em intensidade[35]. Na França e na Espanha as denúncias podem ser feitas on-line e o aumento[36] também foi verificado. Na China houve aumento de divórcio comprovado[37]. Embaixadores de 124 Estados-membros da ONU e observadores responderam ao recente apelo do secretário-geral para combater o aumento da violência doméstica na pandemia.

No Brasil, dados estão sendo coletados e provam um aumento na violência doméstica: no Paraná, houve um aumento de 15% nos registros de violência doméstica, enquanto no Rio de Janeiro os números cresceram em 50%[38]. No contexto da pandemia de covid-19, os atendimentos da Polícia Militar a mulheres vítimas de violência aumentaram 44,9% no estado de São Paulo. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) informou que o total de socorros prestados passou de 6.775 para 9.817, na comparação entre março de 2019 e março de 2020. A quantidade de feminicídios também subiu no estado, de 13 para 19 casos (46,2%)[39]. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos[40] constatou alta de quase 9% nas denúncias realizadas no Disque 180, destinado a denúncias de violência doméstica.

Tais picos evidenciam alguns dos efeitos colaterais do isolamento social, medida que faz com que as pessoas fiquem mais em casa e os conflitos familiares se intensifiquem, e também se relacionam diretamente com a divisão social do trabalho doméstico e com o desemprego[41], que afeta em grau maior as mulheres, vez que mais sujeitas à informalidade. Além disso, a sobrecarga do trabalho doméstico com as funções de cuidado com filhos e familiares atrapalham as mulheres que se encontram em trabalho remoto exercido em suas casas, como, por exemplo, as professoras que se viram obrigadas a desenvolver educação à distância neste período. A ONU Mulheres faz apelo a setor privado para garantia da igualdade de gênero na resposta a COVID-19:

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“A pandemia Covid-19 não é apenas um problema de saúde. É um choque profundo para nossas sociedades e economias, e as mulheres estão no centro dos esforços de atendimento e resposta em andamento. Como respondentes da linha de frente, profissionais de saúde, voluntárias da comunidade, gerentes de transporte e logística, cientistas e muito mais, as mulheres estão fazendo contribuições críticas para lidar com o surto todos os dias.”[42]


Essa conjuntura trará consequências na saúde psicológica e até mesmo na avaliação de desempenho das mulheres profissionais, eventualmente, a repercutir em demissões futuras. Neste contexto de dependência financeira e convivência forçada que aumenta as tensões familiares, ocorre o aumento da violência contra as mulheres. A ONU Mulheres, no documento COVID-19 na América Latina e no Caribe: como incorporar mulheres e igualdade de gênero na gestão da resposta à crise[43],já sinalizou que estes são fatores que ampliam a violência doméstica contra as mulheres.

O que tem sido feito para minimizar esses efeitos na crise da COVID-19 no Brasil diante da constatação que a violência doméstica aumentou? Lives, artigos, matérias jornalísticas, atendimento on-line das delegacias das mulheres, atendimento de clientes por chamadas telefônicas ou de vídeo por parte de advogadas que militam no atendimento às mulheres, advocacy em ONG´s de mulheres,atendimento psicológico remoto, a atuação da bancada feminina no legislativo ao propor e votarprojetos de lei nas áreas econômica, proteção social, educação, prevenção e eliminação da violência contra as mulheres, são sinalizadores que demonstram que muito trabalho está sendo feito nessa linha de combate à violência doméstica.

Porém, essa bancada de mulheres esbarra noutra questão problemática: a tomada de decisão feita pelos homens. As deputadas federais correspondem a 77 dos 513 assentos da Câmara dos Deputados – 51% a mais das parlamentares eleitas em 2014. Em relação aos deputados federais, elas são apenas 15% da casa. Este quadro coloca o Brasil na posição 140ª na lista de 193 países que mede a representatividade das mulheres na política em estudo da União Interparlamentar e da ONU Mulheres[44]. Quais projetos federais foram propostos nessa matéria?

Foi apresentado no final de março de 2020 o PL 1267/2020, de autoria de diversos deputados, que buscar alterar a Lei 10714/03 (Lei Maria da Penha), para ampliar a divulgação do Disque 180 enquanto durar a pandemia do Covid-19.Também entrou em votação o PLS 238/2016, que altera a Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), para incluir ações de combate à violência contra a mulher no rol de exceções à suspensão de transferências voluntárias a entes da Federação inadimplentes. É uma iniciativa que merece destaque, pois a tendência é o aumento da inadimplência de Estados e Municípios em relação à União.

Temos também o PL 123/2019 que quer modificar as Leis 10201/2001 e 11340/2006, para autorizar o uso de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública em ações envolvendo prevenção e combate à violência doméstica e familiar e incluir os programas de combate e prevenção de violência contra a mulher como forma de projeto apoiado pelo fundo.

Importante dizer que o orçamento destinado ao programa de proteção à mulher em 2019 foi o menor desde a criação do programa, ocorrido no ano de 2012. Em 2015, a título comparativo, o valor destinado ao programa era seis vezes maior do que é hoje. Vale citar que o Disque 180, serviço bastante demandado durante a quarentena, não teve qualquer destinação de recurso em 2019[45].

Fica latente a necessidade de novas fontes de custeio do combate à violência contra a mulher e se torna urgente que não tenhamos interrupções parciais ou totais de atendimento às mulheres vítimas deste mal que assola historicamente este país.

A relatora especial da ONU sobre violência contra a mulher solicitou às organizações da sociedade civil, Estados, instituições nacionais de direitos humanos, organizações internacionais, academia e outras partes interessadas, informações relevantes de todos os países sobre o aumento dos casos de violência de gênero no contexto da pandemia de COVID-19. O prazo de submissões é 30 de junho[46].

O secretário-geral das Nações Unidas[47], António Guterres, instou os governos a colocar mulheres e meninas no centro de seus esforços de recuperação, inclusive ao torná-las líderes e igualmente envolvidas na tomada de decisões. “As medidas para proteger e estimular a economia, de transferências de renda a créditos e empréstimos, devem ser direcionadas às mulheres”, enfatizou, acrescentando que “o trabalho não remunerado deve ser reconhecido e valorizado como uma contribuição vital para a economia”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As mulheres estão na linha de frente da resposta à Covid-19,seja no exercício profissional hospitalar e das pesquisas científicas, seja ao trabalhar em suas casas, em home office ou no cuidado de suas famílias, ao procurar meios de subsistência na crise,preocupadas com o futuro do planeta que depois deste pandemia refletirá, para seu próprio bem e continuidade da vida, sobre em quais bases foi construída essa sociedade capitalista excludente, violenta, dizimadora, conservadora e arrogante de certezas que não servem de nada numa crise de incerteza caótica que coloca à vista de todos a precariedade da sociedade pós-moderna, rica em tecnologia, mas paupérrima na defesa humanitária.

Com a empatia e a humanização, próprias das sociedades matriarcais, do cuidado com o outro, poderemos falar numa mudança paradigmática, que já chega tarde, deixando tantos mortos e devastação na história da humanidade. As mulheres construíram a história com base na resiliência e asseguraram que suas vozes e experiências moldarão as decisões futuras para o bem deste planeta. A revolução é feminista e até lá precisamos garantir que estejamos vivas[48]. O holocausto da violência doméstica encontrou um eco ensurdecedor na COVID-19.

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[1] Advogada (Araújo, Soares, Barreto e Abreu Advogados Associados S/C), Professora de Direito (UERN – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte), mestre em Direito (UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte), doutoranda em Direito (UFPR – Universidade Federal do Paraná), Presidente da Comissão da Mulher Advogada (OAB – Ordem dos Advogados do Brasil/Subseccional de Mossoró). E-mail: fernandaabreu@uern.br

[2] Mestre em Direito Fundamentais e Democracia (Centro Universitário Autônomo do Brasil – Unibrasil). Professora de Direito (Centro Universitário Internacional – Uninter). Professora responsável pelo Grupo de Estudos: Direitos da Mulher do Centro Universitário Internacional – Uninter. Advogada inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil Seção Paraná. E-mail: simionibruna@hotmail.com

[3] Advogada. Professora de Direito de Graduação e Pós-Graduações. Mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Autora.E-mail: ezildamelo@gmail.com

[4] COVID-19, Coronavirus Pandemic. Disponível em: <https://www.worldometers.info/coronavirus/>. Acesso em: 23 abril 2020.

[5] SANTIRSO, Jaime. Corrida por uma vacina contra a Covid-19 se acelera. Disponível em: < https://brasil.elpais.com/ciencia/2020-04-15/corrida-para-encontrar-uma-vacina-contra-a-covid-19-se-acelera.html>. Acesso em 23 abril 2020.

[6] A medida se deu em razão de que com o grande número de infectados pelos covid-19 ocorre o aumento de atendimentos pelos hospitais, e em muitos casos há necessidade de consumo e permanência em leitos, o que pode causar um colapso no sistema de saúde, fazendo com que até mesmo situações não ligadas ao vírus não tenham o devido atendimento. Uma nota do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde “calcula que, em um cenário em que 20% da população brasileira seja infectada pelo novo coronavírus, e 5% desses infectados necessitem de atendimento em UTI por cinco dias, grande parte da rede brasileira teria sua capacidade esgotada”. IDOETA, Paula Adamo. A matemática das UTIs: 3 desafios para evitar que falte cuidado intensivo durante a pandemia no Brasil. Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52137553>. Acesso em 23 abril 2020.

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