DO RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO À AUSENCIA DE CÂMERAS NAS VIATURAS E NAS LAPELAS POLICIAIS, QUEM ESTÁ EM PERIGO?
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RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO À AUSENCIA DE CÂMERAS NAS VIATURAS E NAS LAPELAS
POLICIAIS, QUEM ESTÁ EM PERIGO?
Por Marcelo Bareato***
Não é de hoje que insistimos em chamar a atenção dos nossos Leitores para pontos que podem colocar em perigo todo o sistema jurídico brasileiro.
Por mais que não queiramos acreditar, vivemos no que pode ser chamado de nação homofóbica (a homofobia pode ser definida como “uma aversão irreprimível, repugnância, medo, ódio, preconceito que algumas pessoas nutrem contra os homossexuais, lésbicas, bissexuais e transexuais (também conhecidos como grupos LGBT)), racista (Racismo consiste no preconceito e na discriminação com base em percepções sociais baseadas em diferenças biológicas entre os povos) e preconceituosa (Preconceito é um juízo pré-concebido, que se manifesta numa atitude discriminatória perante pessoas, crenças, sentimentos e tendências de comportamento. É uma ideia formada antecipadamente e que não tem fundamento crítico ou lógico), e isso talvez faça parte da evolução natural de um povo que, diferente do que aconteceu na América do Norte onde ingleses banidos procuraram construir uma nação orgulhosa de suas lutas e tradições, em terras tupiniquins recebemos aqueles que estavam condenados, que não tinham mais razão para viver e que não se sentiam parte de nada.
Tais fatores são primordiais para a formação de raízes e implementação de traços culturais fortes, capazes de levantar ou derrubar uma nação. Talvez, exatamente aí estejam os fatores que desencadearam nossa vagarosa formação cultural, tantas e tamanhas lutas em prol de poucos direitos sociais e igualdade, especialmente do que hoje chamamos de gênero.
Dito isso, parece inquestionável que nossas escolhas validam atitudes que destoam do “sonho democrático”, da “dignidade da pessoa humana” e, porque não dizer, que favorecem todo o tipo de corrupção e ação criminosa. Criminosa sim, meu Caro Leitor, pois a criminalidade só encontra guarida onde o Estado não ocupa seus espaços. Mas como ocupar espaços se a população não sabe o que pedir e aguarda pacientemente que um “salvador da pátria” possa fazer por ela todo o dever de casa?
Pois bem, comecemos pontuando alguns exemplos práticos.
Nosso Código de Processo Penal, lei promulgada em 1941, de origem italiana e com diretrizes garantidoras, prevê claramente como deve ser o reconhecimento daquele que está sendo alvo de uma investigação ou processo penal, determinando em seu artigo 226:
Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Parágrafo único. O disposto no inciso III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.
Vê-se, claramente, que não há previsão de reconhecimento fotográfico, o qual foi adotado como “possibilidade” para agilizar o procedimento correto e quebrar as formalidades impostas pela lei, diga-se de passagem, implantado, como quase tudo que fizemos ao longo desses anos, de forma análoga ao que determinam as leis. Não demorou muito e a regra, sem que percebêssemos, virou exceção, alastrando o reconhecimento fotográfico por todos os cantos onde houver um Distrito Policial.
Ocorre que permeiam as fotografias arquivadas nos meios policiais, os negros, os pobres, aqueles que sem conhecer seus direitos passaram por uma delegacia e se deixaram fotografar ou ainda aqueles que praticaram crimes em tempos idos, mas que já estão reinseridos no contexto social.
Nesse ponto em específico é importante acrescentar que os delegados, as delegacias ainda trabalham com estatísticas, as quais devem atingir determinados números ao final de cada ano para compor o quantitativo de casos resolvidos e que essas estatísticas conduzem os “agentes da lei” a apresentarem álbuns pertencentes aos seus arquivos com fotografias às vítimas, obrigando-as a reconhecerem seu algozes mesmo que eles não estejam lá, muitas vezes sob a ameaça de que se não reconhecerem, ficarão presas no lugar dos criminosos.
Tais fatos são tão notórios que qualquer pessoa interessada em averiguar o que estamos à escrever poderá, caso queira, acessar as páginas da internet e buscar casos que ganharam a mídia e onde o reconhecimento fotográfico foi falho, ou porque o reconhecido sequer estava no local, ou porque a fotografia não condiz com sua aparência atual, ou porque a pressão foi tão grande que a vítima reconheceu a esmo, apenas para poder ir embora.
Outro exemplo claro reside na questão posta sobre a obrigatoriedade da polícia filmar o ingresso nas residências “suspeitas” ou durante a prisão de algum meliante, argumento fortemente rebatido pelo Supremo Tribunal Federal, contrariando entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o qual obrigava a aquisição de câmeras e uso em todas as atividades policiais.
Ora! Temos medo de que? Se a polícia é a responsável pela segurança pública e é quem nos garante a liberdade de ir e vir, porque devemos esconder os procedimentos usados pelos agentes da lei? A transparência não nos traria maior segurança e sensação de que, de fato, quem nos protege é digno de confiança e respeito? O que há para se esconder, senão práticas abusivas, torturas e desrespeito a todo o sistema jurídico posto? Claro que toda regra tem a sua exceção e que os bons policiais não apresentaram qualquer objeção a obrigatoriedade determinada pelo Superior Tribunal de Justiça, pelo contrário, entenderam ser uma excelente iniciativa para frear os maus policiais e recobrar o respeito da corporação.
Não paremos por ai! Voltemos nossos olhos agora ao julgamento pelo plenário do júri do caso “Boate Kiss”, fato ocorrido em 27 de janeiro de 2013, na cidade de Santa Maria/RS. Comecemos com a pergunta: qual a razão da duração de 15 dias para um julgamento que, se não fosse midiático, duraria um dia ou dois? Ato contínuo: porque televisionar julgamentos pontuais e não todos ou nenhum? Para respondermos são necessários percorrer alguns caminhos que, por vezes, esquecemos ou, na correria do dia a dia, deixamos passar desapercebido.
Parece indiscutível que nossa população não tem tradição ou cultura jurídica capaz de entender o que acontece num julgamento dessa envergadura, o contexto legal, quais as possibilidades e perspectivas do julgamento em questão, se a defesa, a acusação ou o juiz estão se valendo de artimanhas para desnaturar o julgamento e fazer com que ele perca em credibilidade e justiça. É fato que não conhecemos nossas leis e exatamente por isso, pagamos um preço tão alto pelo desrespeito a dignidade da pessoa humana, seja ela o acusado, a vítima ou os próprios cidadãos.
Nesse ponto, olhemos o julgamento por diversos ângulos: 1) pelo jurado que, querendo aplicar a sua convicção sobre o caso se vê obrigado a votar no sentido do que escuta nas ruas, com medo de que votando de outra forma, seja interpretado de maneira errada pela população e venha a correr inclusive risco de morte; 2) do promotor, do advogado e do juiz que, vendo o clamor popular causado pela mídia e o que a voz das ruas anseia, optam por serem populares e com isso alcançarem prestigio para conquista de mais clientes ou vida política, por exemplo (não esqueçamos aqui o caso Sergio Moro, Dallagnol e Bretas, todos relacionados a operação Lava-Jato).
Destarte, é de suma importância que tenhamos consciência que um julgamento que apura culpa criminal deve buscar, sobretudo, justiça (ou nos dizeres do site significados.com.br: “a particularidade do que é justo e correto, como o respeito à igualdade de todos os cidadãos, por exemplo. Etimologicamente, este é um termo que vem do latim justitia. É o princípio básico que mantém a ordem social através da preservação dos direitos em sua forma legal”). No mesmo grau de importância, que não há prestação jurisdicional em nenhum julgamento após o decurso do prazo de 6 meses entre o fato e a sentença, ou de 2 anos entre a sentença e o recurso, período em que ainda é possível manter o contexto probatório inalterado e apto a proporcionar ao acusado o devido processo legal, bem como ao julgador a segurança jurídica necessária para decidir com convicção e justiça. Vale a pena registrar que o caso da Boate Kiss tem por fato gerador a data de 27 de janeiro de 2013 (como já indicamos acima) e quase 9 anos após, estamos levando a plenário os acusados.
Com essas considerações, ponderar o cenário atual nos conduz a pergunta: ao abandonar os direitos e garantias fundamentais daqueles que estão sendo processados, estamos fazendo justiça ou proporcionando vingança para que o espectador possa se deleitar com o que se apresenta? Em continuação: como é possível manter a ordem social se não vemos no direito o caminho para uma sociedade estruturada, mas sim a popularidade individual de um discurso ou pensamento a ser aplaudido por aqueles que são manipuláveis pelo sentimento incutido vingança?
No passo em que trazemos a você, nosso Leitor, tais inquietações, outros casos atuais vão se apresentando e, então poderíamos perguntar também: Qual a finalidade de discutir se um novo Ministro é ou não evangélico, quando o que importa é a sua conduta perante a Constituição Federal e aqueles que necessitam de sua validação contra os abusos cometidos desde o inquérito policial até a decisão final? Não seria mais lógico receber a notícia com tranquilidade e guardarmos a certeza de que conhecendo nossos direitos e garantias, caso o novo Ministro não venha a desempenhar de forma correta o seu mister, simplesmente faremos com que ele seja punido e banido do Supremo Tribunal Federal?
Em mais um caso recente, nenhum policial algemaria um branco ou negro a uma armação de motocicleta e sairia arrastando por aí se não tivesse a certeza de que iria ser ovacionado por muitos, criticado por poucos, protegido pela corporação, retornando às ruas para outras mazelas o mais breve possível, se assumíssemos o papel que nos cabe, de fiscalizar, exigir nossos direitos e punir aquele que os desrespeitasse.
Assim, nossa argumentação de hoje tem a finalidade de deixar a você, meu Caro Leitor, a provocação para buscar informações sobre as leis existentes, sobre os direitos que já são seus e foram conquistados pela luta e derramamento de sangue de seus antepassados, na esperança de que possamos fortalecer o Estado de Direito, o Estado Democrático de Direito e a Dignidade da Pessoa Humana e, dentre tantas perguntas lançadas nesse texto, lhe questionar, finalmente, sobre QUEM DE FATO ESTÁ EM PERIGO, aquele que você chama de bandido ou aquele a quem você quer bem, mas permite que lhe retirem a segurança jurídica?
***O autor é doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, Advogado Criminalista, membro da Comissão Especial de Segurança Pública da OAB Nacional, Conselheiro Nacional da ABRACRIM, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, Presidente da Comissão Especial de Direito Penitenciário e Sistema Prisional da OAB/GO, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).