ENCARCERAMENTO FEMININO E O COVID-19
ENCARCERAMENTO FEMININO E O COVID-19
Amanda Gonçalves Prado Quaresma[1]
Ângela Maranhão Lima de Souza[2]
A PANDEMIA VIRAL DO COVID-19
“A prevenção é sempre o melhor remédio” é o que diz a sabedoria popular. Em 2005 a Organização Mundial de Saúde se precaveu em relação a uma possível pandemia, elaborando um plano sólido de como o mundo deveria se preparar para um surto pandêmico e reagir à crise gerada por ele. Entre as recomendações, os países deveriam desenvolver a capacidade de detectar uma pestilência e notificar os órgãos mundiais a respeito de doenças emergentes. Assim, 196 países se comprometeram e assinaram o acordo de cooperação à época[3].
Em 30 de janeiro de 2020 a OMS declarou a emergência de saúde pública por conta do vírus SARS-CoV-2, que é o causador da doença COVID-19 – abreviação para Corona Vírus Disease 2019. Já no dia 11 de março de 2020 foi oficializado o estado de pandemia[4], e, ao contrário do que pactuaram cinco anos antes, quase nenhum dos países atingidos tinham protocolos efetivados com planos de ação concretos e palpáveis.
Ao revés do despreparo dos países atingidos, os vírus detém a mais eficiente tecnologia de proliferação, adquirida aos longo dos milhões de anos de mutações: saíram do estágio de seres rudimentares dos primórdios da Terra e alçaram o temido título de parasitas que utilizam células de seres vivos para se reproduzirem, podendo causar diversas doenças.
Para que uma patologia se transforme em uma pandemia, ou seja, se dissemine pelo mundo, é necessário o equilíbrio perfeito entre letalidade e contágio. Explicando melhor: uma doença com alta letalidade não tem o potencial de amplo contágio, já que seus portadores irão sucumbir antes de conseguir infectar um grande número de indivíduos.
A grande diferença deste novo Corona Vírus é a apresentação de uma virulência condicional — que significa que ele pode ser altamente letal em algumas pessoas e menos em outras, dependendo das características do hóspede, como idade, presença de outras infecções e resposta do sistema imunológico de cada um – que apontamos como características dos indivíduos dos grupos de risco: idosos, grávidas, pessoas com comorbidades, etc. Essa é a explicação para o fato do SARS-CoV-2 ter sua curva de contágio e letalidade crescente de forma exponencial e diretamente proporcional[5].
O Corona Vírus, que sobrevive por horas em superfícies, se espalha através de secreções como saliva, espirro, tosse e catarro, em contato com os olhos, nariz ou boca. Os sintomas mais comuns são a tosse, febre, fadiga, falta de ar, garganta seca, diarreia, perda de apetite, paladar e olfato. No entanto, os estudos da SARS-CoV-2 estimaram que a taxa mais alta de excreção viral, e, portanto, de transmissibilidade, acontece entre um e dois dias antes da pessoa contaminada apresentar sintomas, sendo os assintomáticos os maiores transmissores[6].
A forma mais eficaz de se precaver contra um vírus é através da imunidade, sendo uma proteção que faz com que os sistemas imunológicos reconheçam o invasor e o combata através de anticorpos. Assim, quando um número suficiente de pessoas atinge a imunidade, é muito mais difícil do vírus se espalhar, gerando o que chamamos de imunidade grupal ou de barreira. No entanto, esperar a imunidade grupal de forma natural geraria a morte de milhões de pessoas, de modo que a vacinação de pelo menos 60% da população é um atalho possível. Assim, enquanto toda a comunidade científica global se movimenta para a criação, testagem e produção de vacinas contra o vírus, a desaceleração do contágio, e, portanto, das mortes causadas pela propagação do vírus, pode ser feita com técnicas que foram criadas há sete séculos atrás durante a Peste Negra: a quarentena e o distanciamento social.
A técnica consiste em evitar o contato e aglomerações de pessoas para obstar a propagação do vírus, de modo a forçar um achatamento da curva de contágio, e, portanto, de mortalidade. Sendo esse necessário para evitar que toda população se contamine ao mesmo tempo (pico da curva), sendo um paliativo para garantir que os hospitais e serviços de saúde tenham condições de salvar o máximo de vidas, já que o sistema não tem estrutura para tratar tantos infectados ao mesmo tempo: faltam leitos, equipamentos, insumos, profissionais e medicamentos e protocolos comprovadamente eficientes na extirpação da doença.
A Organização Mundial de Saúde recomendou à população que reforçassem a higienização, utilização de máscaras, praticasse o auto isolamento e seguisse as demais recomendações dadas pelas autoridades dos seus respectivos países. Diversos países do mundo decretaram lockdown e quarentena forçada para todos os habitantes, mas, no Brasil, a situação foi encarada sem a seriedade necessária pelo Presidente da República Jair Messias Bolsonaro, que chegou a afirmar que o vírus era apenas uma “gripezinha”. No entanto, diversos Governadores e Prefeitos agiram em consonância as recomendações da OMS, editando decretos para interromper as atividades regulares de ensino, comércio, trânsito, lazer, etc., mantendo o funcionamento apenas de atividades e serviços essenciais para população.
Diante da nova realidade em que cidadãos se viram, tendo o direito de liberdade de ir e vir tolhido em nome do direito à saúde pública, houveram diversas manifestações que pediram o retorno das atividades conforme suas rotinas e o fim do isolamento social, sendo questionada e criticada a preponderação do primeiro direito em relação ao segundo. Tais reações advieram da parcela da sociedade que não está acostumada a ter seus direitos ceifados em nome da coletividade. No entanto, essa ponderação de direitos não é novidade no país para grande parte da sociedade, vide a Lei de Drogas ser é um dos principais geradores do encarceramento no Brasil, sendo o principal fator para a prisão feminina.
PRISÕES E O COVID-19
A Constituição Federal de 1988 prevê o direito à saúde no art. 60, Capítulo II, Título II. Além disso, traz de forma explícita no art. 196 a saúde como direito de todos e dever do Estado, colocando-o como garantidor positivo de uma política de saúde universal, inclusive que alcance os indivíduos que estão sob sua custódia no sistema penitenciário.
Apesar do tema ser recente para a ciência, é massiva a disponibilidade de informações de todas as alçadas a respeito do vírus causador da COVID-19. No entanto, é trazido por Sérgio Garófalo que, no dia 24/05/2020, apenas 0,13% dos estudos citam ou tratam minimamente da realidade carcerária no que diz respeito ao vírus, de forma a evidenciar que a população carcerária é invisível não só para a sociedade, mas também para a ciência[7]. Desses artigos, todos salientam da necessidade de se tomar medidas de prevenção ao SARS-CoV-2 em ambientes prisionais, sendo necessário encarar as cadeias como locais que podem levar ao ressurgimento da epidemia. Ou seja, quando a curva estiver declinando na população geral, o ambiente prisional poderá ser alvo de novos picos da doença na população que se encontrava isolada pelas restrições de circulação de visitas impostas em virtude do vírus[8].
Afinal, o ambiente prisional não é um sistema completamente fechado, de modo que apesar dos internos se manterem com a liberdade de ir e vir cerceada, o modelo como um todo é poroso pelas diversas pessoas que circulam por ele: profissionais internos (psicólogos, assistente sociais, médicos, professores, policiais penais, diretores, prestadores de serviços), visitas aos internos, advogados e defensores públicos, novos presos e egressos do sistema, juízes e promotores em fiscalização, entidades de apoio cultural, social e religioso, etc.
Em virtude da ausência de dados do comportamento do vírus no ambiente carcerário, é necessário extrapolar observações de outras realidades para tentar vislumbrar a dimensão da pandemia no sistema penitenciário. Os cientistas Kenji Mizumoto e Gerardo Chowell analisaram informações da dinâmica epidemiológica de outra população que vivia um isolamento muito diferente da realidade prisional: uma população de milhares de turistas que faziam o Cruzeiro Diamond Princess na Ásia. Uma turista foi testada positivo para o vírus Sars-CoV-2, de modo que as autoridades japonesas determinaram que todas as pessoas desse cruzeiro ficassem em quarentena por tempo indeterminado. Então, os pesquisadores traçaram a realidade epidemiológica dentro do navio, de modo que foi identificado que cada pessoa portadora do vírus nesse cruzeiro infectou outras 11 pessoas que estavam saudáveis[9].
Assim, Sérgio Garófalo utilizou esses dados para supor uma possível realidade dentro dos presídios brasileiros: se o número máximo de reprodução eficaz na transmissão geral no Brasil estava perto de 6 pessoas infectadas por cada doente, um número considerado alto para os infectologistas, imagine em um ambiente fechado de extrema precariedade de condições de higiene como os presídios, já que em um cruzeiro de luxo com pessoas supostamente saudáveis, com boa alimentação e condições de higiene, que podiam se isolar nas suas cabines, chegou em 11 pessoas infectadas por cada doente[10].
É preciso assinalar que a única aproximação desses dois ambientes é que se tratam de um ambiente fechado com aglomeração de pessoas, mas todas as demais características são diametralmente opostas: não é difícil imaginar a distância entre as regalias dos turistas em um cruzeiro de luxo e a vida de internos de uma penitenciária brasileira sem possibilidade de isolamento, sem alimentação, higiene e saúde mental adequadas, etc.
Não à toa o Supremo Tribunal Federal reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro na ADPF 347, tendo o Ministro Marco Aurélio narrado o ambiente prisional como lugar de “violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica”. Além disso, afirma que a superlotação carcerária e a precariedade das instalações das delegacias e presídios configuram tratamento “degradante, ultrajante e indigno a pessoas que se encontram sob custódia”[11], não deixando de levar em conta a superlotação desses ambientes. Segundo a World Prison Brief, em junho de 2019 o Brasil tinha ocupação de 167,7% da sua capacidade oficial[12].
Na região Nordeste, segundo relatório do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), com população total de 135.983 presos, registrou-se em 22 de junho, 343 suspeitas, 791 detecções e 11 óbitos pelo vírus Sars-CoV-2, mas o número de testes realizados ainda é ínfimo para ter um retrato fiel da realidade[13].
Uma modelagem matemática feita por pesquisadores norte-americanos avaliou os cenários possíveis da infecção por COVID-19 no sistema prisional do estado do Tennessee, demonstrando que, se nada for feito para controlar a entrada do vírus nesses ambientes, o pico de contaminação no presídio seria de 60% da população prisional infectada e se daria 63 dias antes do que na população geral do mesmo estado, que seria de apenas 15% da população contaminada[14].
As pesquisas desses matemáticos trazem as previsões de que se fosse adiado a prisão de 90% dos indivíduos de grupos de risco para a COVID-19 reduziria em 56,1% a mortalidade da doença nos presídios. Além disso, a interrupção da prisão por crimes leves reduziria a detenção de aproximadamente 83%, resultando em 71,8% menos infecções da população encarcerada, 2,4% menos infecções entre os funcionários e agentes penitenciários e 12,1% na comunidade em geral[15].
Inclusive, as conclusão a que chegaram os matemáticos sobre as ações práticas para reduzir os efeitos do vírus no sistema prisional não destoam dos direcionamentos dados pelo Conselho Nacional de Justiça na Recomendação nº 62, que orienta aos Tribunais e magistrados na adoção de medidas preventivas à propagação do COVID-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo. Dentre essas medidas, encontram-se a aplicação preferencial de medidas socioeducativas em meio aberto e a revisão das decisões que determinaram a internação provisória de adolescentes, reavaliação de prisões provisórias, suspensão do dever de apresentação periódica ao juízo, máxima excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva, concessão de saída antecipada dos regimes fechado e semiaberto, concessão de prisão domiciliar, entre outras várias recomendações desencarceradoras[16].
No entanto, é possível verificar que essas diretrizes do CNJ são reiteradamente desrespeitadas pelos Superiores Tribunais, Tribunais de Justiça e Magistrados. O Supremo Tribunal Federal recebeu 1.149 processos relacionados ao tema da pandemia, dos quais 881 são habeas corpus ou pedidos de liberdade, entretanto os magistrados deferiram apenas 15 deles[17]. Em São Paulo, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas Direito de São Paulo e do Insper, das 6.781 decisões de habeas corpus que mencionam a COVID-19, entre os dias 18 de março e 4 de maio, em 88% dos casos o pedido foi negado[18].
A fundamentação para a negativa do pedido revela mais do que o descumprimento da Recomendação e do direito de acesso à saúde da população encarcerada, mas alguns argumentos mostram a negação do status de pessoa humana das pessoas presas, que são em sua maioria pretas e pobres, comparando-as com o próprio vírus[19].
Nesse mesmo sentido, a Carolina Costa Ferreira aponta também para a “desumanidade dos argumentos técnicos” comumente utilizados nas peças e decisões jurídicas[20], como se esses vereditos não fossem repercutir na vida de seres humanos que suam, choram, sangram e menstruam.
No contexto da pandemia, há o isolamento de uma população que já é bastante isolada no tocante a direitos, oportunidades, laços sociais e outras formas em que a desigualdade é sentida na pele pelos ingressos do sistema prisional antes mesmo de entrar nesse.
ENCARCERAMENTO FEMININO
Ser mulher e, portanto, materializar esta condição marcada pela opressão traz reflexos em todo o processo de encarceramento: nas causas que levam ao cárcere, nas diversas formas de violência institucional que permeiam a persecução penal e os presídios, nas dores e sofrimentos que vão além da pena. As mulheres encarceradas são presos que menstruam, que sofrem com o abandono dos parceiros e familiares a partir do momento em que ingressam nas penitenciárias e que podem, ainda, possuir filhos sob sua responsabilidade[21], estes que acabam por sentir, também, os efeitos de uma privação da liberdade que se pretende intranscendente.
No Brasil, desde o ano de 2005 tem havido um crescimento vertiginoso no número de mulheres encarceradas. Da análise do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do DEPEN relativo ao período entre julho e dezembro de 2019, observa-se que os números caíram sensivelmente entre os anos de 2016 a 2018; contudo, retomaram a ascendência em 2019, resultando em um número total de aproximadamente 37.200 mulheres presas[22].
Deste grupo de mulheres, mais da metade se encontra encarcerada pela suposta prática de crimes relacionados ao tráfico e à Lei de Drogas (50,94%); em segundo lugar, vem a imputação de crimes contra o patrimônio (26,52%) e em terceiro de crimes contra a pessoa (13,44%), de modo que as demais imputações juntas não constituem sequer 10% do total[23].
Não há como falar no encarceramento feminino no Brasil, portanto, sem enfrentar a criminalização das drogas como o principal fator de aprisionamento de mulheres. A “guerra às drogas”, que é o discurso oficial para uma necropolítica direcionada aos jovens negros e periféricos, se sustenta em interesses políticos e econômicos, recaindo principalmente sobre aqueles que não possuem relevante poder nas redes de tráfico. Tem-se que no crime organizado, assim como no mercado formal de trabalho, as mulheres usualmente desempenham funções subordinadas a homens[24], podendo ser vistas como um dos elos mais fracos da guerra às drogas[25]. Assim, as mulheres são um dos principais alvos do recrutamento para transporte de drogas, comumente ocupando a função subalterna denominada de mula, esta que é inerentemente arriscada e, ainda, precariamente remunerada.
Embora a questão não comporte reducionismos e não se possa afirmar temerariamente que mulheres não podem ser violentas ou temidas, a interpretação dos dados sobre encarceramento feminino permite concluir pela prática de condutas com menor grau de reprovabilidade, em que a coculpabilidade estatal ganha relevo se considerada a extrema vulnerabilidade – verificada pelos eixos gênero, raça e classe destes sujeitos. Partindo da compreensão de que o direito penal é instrumento de controle social, é necessário enfatizar sobre quais mulheres estamos falando: mulheres negras e periféricas, alvos preferenciais do armamento mais pesado do Estado, o cárcere.
O encarceramento dessa população marginalizada social e economicamente revela um agir desproporcional do Estado. Desproporcional em dois sentidos: primeiramente, na proteção deficiente, considerando-se que as políticas públicas não foram capazes de reduzir os abismos de desigualdade socioeconômicas existentes entre homens e mulheres. A renda das mulheres em geral ainda é 42,7% menor que a dos homens, mesmo que elas tenham melhor desempenho na educação e maior expectativa de vida[26]. No que se refere às mulheres negras, que se encontram na base da desigualdade salarial no Brasil, estas recebem em média menos da metade que os homens brancos[27]. É importante observar que aqui, como na América Latina em geral, as mulheres presas por tráfico de drogas são chefes de família em lares monoparentais, sem antecedentes criminais e com baixa escolaridade formal e dificuldade de acesso a empregos formais[28].
Em segundo lugar, verifica-se a desproporcionalidade pela atuação excessiva através do sistema de justiça criminal, direcionada ao aprisionamento de mulheres em situação de vulnerabilidade e com pouco poder no universo do tráfico de drogas, para reprimir condutas em sua maioria praticadas sem violência contra a pessoa. Expressão direta da seletividade do sistema penal, apontada exaustivamente pela criminologia crítica, percebe-se um recrudescimento punitivo voltado para aqueles que estão mais vulneráveis, enquanto os reais beneficiários do tráfico de drogas permanecem movimentando uma economia bilionária.
Alternativas penais ao encarceramento já existem, preconizadas pela Portaria n. 495 de 28 de abril de 2016 do DEPEN. No âmbito do STF, dois julgamentos influenciaram diretamente nos direitos das mulheres encarceradas: o afastamento do caráter hediondo do tráfico privilegiado (HC 118.533) e a determinação de que mulheres grávidas ou que tenham filhos de até 12 anos cumpram a pena em prisão domiciliar, entendimento que posteriormente foi positivado pela Lei 13.769 de 19 de dezembro de 2018. Interessante observar que, em relação à inovação legislativa, a autora do projeto de lei, Simone Tebet, afirmou que “a medida não foi pensada nas mães, mas nos filhos”[29].
No entanto, persiste um dos principais problemas: mesmo existindo alternativas penais, não há no sistema de justiça, ou fora dele, o interesse em conhecer ou dar atenção a situação das mulheres encarceradas, mães, negras, pobres e seus super punidos crimes não violentos. Ao contrário, a condição de mulher vulnerável, ao invés de trazer uma necessária discussão sobre coculpabilidade estatal, traz o duplo estigma de transgressora da lei e das prescrições sociais de gênero[30].
ENCARCERAMENTO FEMININO, COVID-19 E A PRISÃO DE SARA RODRIGUES COMO EXEMPLO EMBLEMÁTICO
Apesar do encarceramento masculino possuir números absolutos superiores ao do encarceramento de mulheres, a superlotação dos presídios é uma realidade compartilhada por ambos. O INFOPEN Mulheres informou que no primeiro semestre de 2017 havia uma taxa de ocupação de 118,8% dos presídios femininos, ou seja, haviam 37.828 mulheres encarceradas no Brasil e um déficit de 5.991 vagas[31]. Assim, considerando que o aprisionamento é crescente ao longo dos anos, sem estar acompanhado da regularização da superlotação, a preocupação é acentuada frente à pandemia do COVID-19 e todas as condições subumanas enfrentadas no cárcere, conforme já delineado no segundo tópico.
Também já apontamos a resistência do sistema judicial em libertar presos em meio à crise sanitária, mesmo que por crimes sem violência. Em relação às mulheres encarceradas em São Paulo, se estima que, das cerca de 15 mil mulheres encarceradas, foram libertas apenas 326[32]. Observa-se ainda que, segundo levantamento realizado pelo Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria do Estado de São Paulo, cerca de 7.000 detentas estão no grupo de risco do COVID-19, incluindo grávidas, puérperas e mães de crianças com até 12 anos[33]. Portanto, a quantidade de mulheres libertadas é ínfima, demonstrando a ausência de importância dada à vida de mulheres presas.
Já no estado do Ceará, a Secretaria de Administração Penitenciária transferiu 51 detentas que se encontravam em Sobral para o Instituto Penal Feminino em Aquiraz, um presídio superlotado que já conta com 28 casos confirmados de COVID-19, deixando-as distantes dos seus familiares, sem ao menos comunicar à Defensoria Pública[34].
Não bastasse a dificuldade de fazer cumprir as recomendações do CNJ e libertar as mulheres encarceradas pertencentes ao grupo de risco, a situação pandêmica não parece ter inibido ou tornado mais criterioso o sistema de justiça criminal na escolha daquelas a serem encarceradas. A prisão de Sara Rodrigues se tornou exemplo emblemático deste agir desproporcional durante a pandemia. Estando grávida, a ativista de 24 anos, membra da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, foi presa por tráfico e associação ao tráfico e, após a audiência de custódia, encaminhada para a Colônia Penal Feminina do Recife[35].
Apesar da Constituição Federal do Brasil vedar as penas cruéis no seu art 5º, XLVII, “e”, de que outra forma pode ser interpretada a prisão, em plena pandemia de COVID-19, de uma mulher gestante, mãe e responsável por uma criança de 5 anos?! A brutalidade dos agentes do sistema de justiça frente à condição feminina resta evidente, em especial considerando que a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco que denegou o habeas corpus teria mencionado que a paciente não pertencia a nenhum grupo de risco[36]. A referida decisão ignora que o Ministério da Saúde incluiu as mulheres grávidas e puérperas no grupo de risco para o COVID-19[37]. Note-se que, em estudo recente publicado no International Journal of Gynecology & Obstetrics, pesquisadores brasileiros observaram 124 mortes de mulheres grávidas e puérperas decorrentes de COVID-19 no Brasil, número 3.4 vezes maior que o total de mortes reportadas pela doença, relacionadas à maternidade, no restante do mundo[38]. Em outros termos, oito em cada dez gestantes e puérperas que morreram de coronavírus no mundo eram brasileiras, sendo que o vírus não expõe à risco apenas às mães, mas também aos bebês[39]. Desta forma, o posicionamento do TJ/PE reverbera a máxima de que as mulheres sofrem violências institucionais das mais variadas em razão do gênero, em um sistema de justiça patriarcal que invisibiliza a condição feminina.
Decerto que a pandemia possui efeitos distintos sobre a diversidade de mulheres que compõe a população carcerária feminina. Um destes recortes é o das mulheres migrantes. No estado de São Paulo – o que mais aprisiona mulheres no Brasil – apenas 16 presas migrantes foram libertas devido à Recomendação nº 62 do CNJ, sendo que 115 permanecem presas em regime fechado e 39 em regime semiaberto[40]. Pelo menos 75% das migrantes presas no Brasil respondem por tráfico de drogas internacional e atuavam na função de mulas do tráfico. No entanto, a ocupação de papel subalterno e precarizado não é capaz de convencer o judiciário à imposição de medidas alternativas à prisão, e, nesse caso específico, uma dificuldade extra se coloca como empecilho para a liberdade: a falta de endereço fixo, evidenciando o alto grau de vulnerabilidade dessas mulheres e da atuação seletiva do sistema penal sobre os desvalidos.
Até o momento, ao menos uma mulher em privação de liberdade morreu em decorrência do corona vírus[41]. Se os dados são difíceis de conseguir em relação aos presos de modo geral, já que poucos testes são realizados, a situação se agrava para o caso das mulheres encarceradas, visto que os dados do poder público não apresentam recorte de gênero[42] ou raça.
Em relatório recente, o Instituto Igarapé traz como possíveis estratégias de mitigação dos efeitos da pandemia na vida das mulheres presas e egressas: (i) a qualificação nos dados sobre o impacto do corona vírus nas prisões, (ii) a disponibilização de testes para o corona vírus em unidades prisionais, (iii) o cumprimento da Recomendação 62 do CNJ, (iv) a melhoria das condições sanitárias em unidades prisionais, (v) a manutenção de serviços públicos voltados para o atendimento de pessoas egressas e (vi) a interlocução com iniciativas da sociedade civil que estão trabalhando na assistência direta[43].
É o mínimo; porém, no Brasil, seguimos em busca da efetivação de um mínimo de dignidade às mulheres encarceradas. Sem esquecer, contudo, da importância de se questionar essas prisões e trazer à tona a inquietante observação de que boa parcela destas sequer deveria estar em uma penitenciária.
No começo da pandemia, era comum a suposição de que o mundo nunca mais seria o mesmo e que assistiríamos o movimento global de valorização das vidas humanas, como ocorreu após as grandes guerras mundiais. Até o presente momento, apesar de ainda não sabermos quando a crise terá fim, o potencial catastrófico do vírus não foi capaz de transformar o modus operandi dos agentes do sistema de justiça criminal, o que se observa também no que toca às mulheres encarceradas.
É de uma coincidência cruel que, no atual contexto calamitoso da saúde pública, uma quantidade enorme de mulheres permaneça presa em nome da proteção da saúde pública – o bem jurídico tutelado pela política de drogas no Brasil -, quando a recomendação do CNJ para diminuir o contexto de calamidade seja pelo desencarceramento. São muitas mulheres, como Sara Rodrigues, tendo a sua condição de mulher desrespeitada e invisibilizada em prol de uma guerra às drogas que recai nos ombros dos mais vulneráveis.
[1] Mestranda em Direito Penal e Liberdades Públicas (UFBA). Graduada em Direito (UFBA). Membra do Grupo de Pesquisa “Feminismos e Processo Penal”, vinculado ao Instituto Baiano de Processo Penal (IBADPP). Advogada Monitora do Patronato de Presos e Egressos do Estado da Bahia – PPE/BA no Conjunto Penal Feminino. Email: amanda@quaresma.adv.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6182-4092
[2] Mestranda em Ciências Sociais (UFBA). Bacharela em Direito (UFBA). Assessora Jurídica do Ministério Público do Estado da Bahia. Membro do Núcleo de Estudos sobre Sanção Penal (NESP). Email: angelamaranhao@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4239-0847
[3] OMS, Organização Mundial de Saúde. International Health Regulations (2005). 3ª edição. 2016. ISBN: 9789241580496. Disponível em: <https://www.who.int/ihr/publications/9789241580496…/>. Acesso em: 22 jun. 2020.
[4] OMS afirma que COVID-19 é agora caracterizada como pandemia. Organização Pan-Americana da Saúde. Disponível em:
[5]AKTIPIS, Athena. ALCOCK, Joe. How the coronavirus escapes an evolutionary trade-off that helps keep other pathogens in check. The Conversation, 17 jun. 2020. COVID-19. Disponível em
[6]Idem, ibidem.
[7] CARVALHO, Sérgio Garófalo de. Saúde prisional na época da COVID-19. In: CONGRESSO VIRTUAL UFBA 2020. Disponível em:>. Acesso em 21 jun. 2020.
[8] Idem, ibidem.
[9] MIZUMOTO, Kenji. CHOWELL, Gerardo. Transmission potential of the novel coronavirus (COVID-19) onboard the diamond Princess Cruises Ship, 2020. In: Infectious Disease Modelling. Vol. 5, ano 2020, ISSN: 2468-0427. p. 264-270. Disponível em:
[10] CARVALHO, op. cit.
[11] STF. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: ADPF 347/0003027-77.2015.1.00.0000. Relator: Ministro Marco Aurélio. Disponível em:
[12] WORLD Prison Brief. Data Brazil. Disponível em:
[13] DEPEN. COVID-19 – DEPEN e SPF. Disponível em:
[14] LOFGREN, Eric. LUM, Kristian. HOROWITZ, Aaron. MADUBUONWU, Brooke. FEFFERMAN, Nina. The Epidemiological Implications of Incarceration Dynamics in Jails for Community, Corrections Officer, and Incarcerated Population Risks from COVID-19. In: MedRxiv: The Preprint Server for Health Sciences. Disponível em:
[15] Idem, ibidem.
[16] BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. Recomendação nº 62/2020. Disponível em:
[17] SCHUQUEL, Thayná. Covid-19: de 881 habeas corpus impetrados, STF deferiu apenas 15. Metrópoles, 18/04/2020. Disponível em: