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ENTRE A LEGALIDADE E A LEGITIMIDADE: ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO DESCOLONIAL PARA UMA REFLEXÃO SOBRE O ABORTO NO BRASIL

ENTRE A LEGALIDADE E A LEGITIMIDADE: ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DO PENSAMENTO DESCOLONIAL PARA UMA REFLEXÃO SOBRE O ABORTO NO BRASIL

Jessica Holl[1]

Rayann Kettuly Massahud de Carvalho[2]


1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente trabalho tem como objetivo discutir a atual situação do aborto no Brasil, a partir da dicotomia entre legalidade e legitimidade, centrando as discussões no marco do pensamento descolonial. Assim, serão feitas considerações acerca da legalidade do aborto no marco normativo brasileiro, considerando dois eventos ocorridos em 2020 emblemáticos para contextualizar a discussão: a Nota Técnica nº 16/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS e a Portaria n. 2.282 do Ministério da Saúde. Com esses dois eventos, pretende-se demonstrar como a discussão normativa sobre o aborto mudou de foco, indo do debate sobre a sua plena legalização para a luta para que as hipóteses em que ele é legal no país não sejam restringidas.

Isso, em um contexto em que, mesmo quando ilegal, o aborto continua sendo praticado no país. Como o aborto só é legal no Brasil em três hipóteses (quando há risco de vida para a mulher em decorrência da gestação, quando a gravidez é fruto de estupro e nos casos de feto anencéfalo) os dados reais sobre o número de ocorrências são imprecisos, considerando que a maioria dos abortos que ocorrem são ilegais. Nesse sentido, Cardoso, Vieira e Saraceni trazem alguns dados interessantes sobre a situação:

O objetivo do estudo foi descrever o cenário do aborto no país, utilizando dados públicos disponíveis para acesso nos diversos Sistemas de Informação – SIM (mortalidade), SINASC (nascidos vivos) e SIH (internação hospitalar). No período entre 2008 e 2015, ocorreram cerca de 200.000 internações/ano por procedimentos relacionados ao aborto, sendo cerca de 1.600 por razões médicas e legais. De 2006 a 2015, foram encontrados 770 óbitos maternos com causa básica aborto no SIM. Houve discreta redução dos óbitos por aborto ao longo do período, com variações regionais. Esse número poderia ter um incremento de cerca de 29% por ano se os óbitos com menção de aborto e declarados com outra causa básica fossem considerados. Entre os óbitos declarados como aborto, 1% foi por razões médicas e legais e 56,5% como aborto não especificado. A proporção de óbitos por aborto identificados no SIH, em relação ao total de óbitos por aborto identificados no SIM, variou de 47,4% em 2008 para 72,2% em 2015. Embora os dados oficiais de saúde não permitam uma estimativa do número de abortos no país, foi possível traçar um perfil de mulheres em maior risco de óbito por aborto: as de cor preta e as indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, e sem companheiro.[3]


Considerando esse contexto, é apresentada, então, uma problematização do direito à não gravidez a partir do marco descolonial. A partir da verificação de uma fratura entre a legalidade e a legitimidade da questão — fratura essa que tem se acentuado, dada a implementação de políticas que deliberadamente buscam dificultar o acesso ao aborto e, consequentemente, limitar o direito da mulher por não optar pela maternidade —, coloca-se então a ilegalidade, derivada da ilegitimidade da restrição e proibição do aborto.

2. A POSSIBILIDADE JURÍDICA DO ABORTO NO BRASIL E OS DESAFIOS DE 2020

O aborto é legal no Brasil em três hipóteses: quando há risco de vida para a mulher em decorrência da gestação (conforme art. 128, inciso I, do Código Penal); quando a gravidez é fruto de estupro (conforme art. 128, inciso II, do Código Penal); e nos casos de feto anencéfalo (nos termos da decisão do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADPF 54). Os casos em a interrupção da gravidez é permitida, também têm por fundamento constitucional os artigos 1º, III; 5º, I, 6º; 226, 3º e 7º, que trazem os princípios da dignidade da pessoa humana,da igualdade entre homens e mulheres, o direito à saúde e a garantia ao seu acesso universal e o princípio do livre planejamento familiar.Destacam-se ainda os direitos sexuais e reprodutivos da mulher e o seu direito à sua integridade física, sendo o procedimento um dever do Estado, nessas hipóteses.

Contudo, no ano de 2020, a questão do aborto ganhou novamente destaque. Isso, não em razão de movimentos sociais que buscam sua ampla legalização, mas em decorrência de movimentações do governo no sentido de limitar as hipóteses já legalmente previstas. Observe-se, que algumas dessas hipóteses, datam da redação original do Código Penal, na década de 1940 e, 80 anos depois ainda continuam permanentemente sujeitos a retrocessos e a interpretações que limitam sua efetividade.

No dia 05/06/2020 foi dada ampla circulação à informação de que a equipe técnica vinculada à Coordenação de Saúde das Mulheres, do Ministério da Saúde, havia sido exonerada em razão da publicação de uma nota técnica que aborda o acesso à saúde sexual e à saúde reprodutiva no contexto da pandemia da COVID-19 (Nota Técnica nº 16/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS[4]). Flávia Andrade Fialho, coordenadora de Saúde das Mulheres e Danilo Campos da Luz, coordenador de Saúde do Homem, ambos da Coordenação-geral de Ciclos da Vida da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, tiveram suas exonerações publicadas na edição 107 do Diário Oficial da União.[5] [6]



O Presidente da República, por meio de suas redes sociais, manifestou-se contrariamente à Nota Técnica em questão, afirmando se tratar de nota sobre o tema do aborto. Ademais, mencionou ainda que o Ministério da Saúde cumpre com a legislação nacional e que é contrário à legalização do aborto.

O que chamou a atenção no caso, é o fato da Nota Técnica que gerou tanta controvérsia, na verdade seguir as diretrizes constitucionais e internacionais, no que dizia respeito à garantia da saúde integral de mulheres e meninas, o que perpassa a saúde sexual e reprodutiva, no contexto da pandemia de COVID-19. Ela mencionava a questão do aborto em um único momento e, então, fazendo simples referência a suas hipóteses legais. E, em já havendo previsão normativa para casos em que o aborto é legal no Brasil, é responsabilidade do poder Executivo, especialmente do Ministério da Saúde, desenvolver políticas públicas que viabilizem sua realização. Isso, até mesmo como decorrência do princí­pio da separação dos poderes, em que cabe ao poder Executivo garantir a aplicação das leis aprovadas pelo poder Legislativo e dar cumprimento às decisões proferidas pelo poder Judiciário.[7]



Então, uma situação que não tinha nada de extraordinária e que não ampliava nenhum direito — na verdade ela dava simples cumprimento às normas existentes — ocasionou intensa movimentação do governo. E o resultado foi a na implementação de medidas que viabilizariam o acesso à saúde integral de mulheres e meninas.

Pouco tempo depois um episódio que gerou grande comoção nacional: uma criança de 10 anos foi estuprada pelo tio no estado do Espírito Santo, engravidou e por isso foi realizada a interrupção da gravidez por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), em Pernambuco.[8] Contudo, informações que deveriam ser sigilosas, visto se tratar da intimidade de uma menor, vazaram para grupos religiosos extremistas, que foram protestar contra a realização do aborto, na porta do hospital em que o procedimento seria realizado. Quando essa situação foi noticiada pela mídia, grupos feministas também se dirigiram ao local defendendo que a criança tivesse acesso ao procedimento.

Interessante observar não só a necessidade de, novamente, justificar a realização do aborto em hipótese legalmente prevista desde a década de 1940, visto que no caso a gravidez era decorrente de estupro e colocava em risco a vida da genitora. E mais, ainda, após esse episódio, o Governo Federal editou portaria que dificulta o acesso ao aborto legal nos hospitais da rede SUS: a Portaria nº 2.282, editada pelo Ministério da Saúde em 27 de agosto de 2020.[9] [10]



Nos termos da referida portaria, torna-se obrigatória a notificação à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro. Nessa hipótese, os referidos profissionais deverão ainda preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime, independente de consentimento da mulher.

O Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez, necessário ao procedimento de aborto legal passa, assim, a ser composto por quatro etapas, que prolongarão no tempo a situação de vulnerabilidade da mulher, por demandarem:

  1. a lavratura de Termo de Relato Circunstanciado pelos profissionais de saúde (que incluirá local, dia e hora aproximada do fato, tipo e forma de violência, descrição dos agentes da conduta e identificação de testemunhas);
  2. o fornecimento de relatório detalhado por médico responsável após detalhada anamnese, exame físico geral, exame ginecológico, avaliação do laudo ultrassonográfico e dos demais exames complementares;
  3. A assinatura de Termo de Responsabilidade que conterá advertência expressa sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal) e de aborto (art. 124 do Código Penal), caso não tenha sido vítima do crime de estupro;
  4. A assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que deverá conter os desconfortos e riscos possíveis à sua saúde, os procedimentos que serão adotados quando da realização da intervenção médica, a forma de acompanhamento e assistência, assim como os profissionais responsáveis e a garantia do sigilo que assegure sua privacidade quanto aos dados confidenciais envolvidos, passíveis de compartilhamento em caso de requisição judicial.

Ainda, na segunda etapa do Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez, a equipe médica deverá informar a gestante acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia e ela deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada.

Vários pontos da portaria merecem crítica, a começar pela tentativa em si de restringir direitos de base constitucional, como já destacado anteriormente. Também merece destaque a determinação de que a equipe médica responsável pelo caso, reporte-o imediatamente para a autoridade policial, independente do consentimento da vítima. Isso, especialmente quando se considera a necessária relação de confiança e sigilo que deve haver entre médico e paciente.

Mais ainda, o procedimento determinado pela Portaria nº 2.282/2020 coloca a obtenção de provas acerca do crime de estupro como prioridade em relação ao atendimento humanizado à mulher, que já se encontra em situação de vulnerabilidade. Note-se que esse paradigma que prioriza a obtenção de provas e não a atenção à mulher em situação de violência já havia sido superado a partir do advento da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que trata especificamente dos casos de violência doméstica (que podem ser de cunho sexual ou não).

Ademais, o procedimento em questão também desconsidera a anuência da mulher em fornecer material genético e biológico, como fragmentos de embrião ou feto para eventual procedimento investigativo. Assim, o acesso ao Sistema Único de Saúde fica condicionado a uma espécie de anuência tácita, em que a mulher apenas é informada de que essa coleta será feita. A esse respeito importa lembrar que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 973.837 RG (2016), alertou sobre os limites dos poderes do Estado de colher material biológico de suspeitos ou condenados por crimes, de traçar o respectivo perfil genético, de armazenar os perfis em bancos de dados e de fazer uso dessas informações. Na ocasião foi considerado necessário analisar a questão à luz da violação dos direitos da personalidade e do princípio da vedação à autoincriminação — art. 1o, III, art. 5o, X, LIV e LXIII, da Constituição Federal. Bem, se o material genético de suspeitos ou condenados por crimes deve ser protegido a partir dos direitos da personalidade, o mesmo deve ser estendido ao material genético e biológico de mulheres vítimas de estupro, que buscam o amparo do Estado para realizar o procedimento de aborto e que devem ter autonomia para decidir sobre o fornecimento, ou não, do material genético ao poder público.

Outro ponto que merece atenção está relacionado com a etapa do Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez, a equipe médica deverá informar a gestante acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia. De fato, a vítima de estupro, que já se encontra em situação vulnerável, não devendo ser submetida ao constrangimento de ter que visualizar o feto ou ultrassonografia, que, na realidade, mais se assemelham à uma tentativa de demovê-la de realizar o procedimento ao qual tem direito.

Se em um primeiro momento a opção normativa representada pela Portaria em análise mostra-se em descompasso com a legislação nacional e com a proteção dos direitos das mulheres, ela também se mostra em descompasso com os dispositivos do direito internacional, aos quais o Brasil está vinculado.

Nesse sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em seu relatório Violencia y discriminación contra mujeres, niñas y adolescentes[11] destacou que os direitos sexuais e reprodutivos incluem o direito à igualdade e à não discriminação, à vida, à integridade pessoal, à saúde, à dignidade e ao acesso à informação, entre outros. A partir desses direitos, a obrigação fundamental dos Estados inclui a garantia de acesso rápido e adequado aos serviços de saúde que somente mulheres, adolescentes e meninas necessitam, com base em seu gênero e função reprodutiva, livres de todas as formas de discriminação e violência, de acordo com os compromissos internacionais existentes em relação à desigualdade de gênero. A Comissão ressaltou ainda que tanto o sistema universal como o interamericano de direitos humanos têm abordado progressiva e consistentemente os impactos da negação de tais serviços nos direitos das mulheres.

A este respeito, importa observar que a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher prevê que os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera dos cuidados médicos a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, o acesso a serviços médicos, inclusive os referentes ao planejamento familiar (art. 12.1), e também devem tomar todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra as mulheres em todos os assuntos relacionados ao casamento e às relações familiares e, em particular, devem assegurar, com base na igualdade entre homens e mulheres, os mesmos direitos de decidir livre e responsavelmente sobre o número e o espaçamento de seus filhos e de ter acesso à informação, à educação e aos meios que lhes permitam exercer esses direitos.

Também o Comentário Geral Nº 36 (2018) do Comitê de Direitos Humanos a respeito do Artigo 6º da Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.[12] De acordo com o Comitê, os Estados Partes devem proporcionar acesso seguro ao aborto para proteger a vida e a saúde das mulheres grávidas, e em situações onde levar a gravidez a termo causaria dor ou sofrimento severo à mulher, em particular nos casos em que a gravidez é resultado de estupro ou incesto ou o feto tem uma anormalidade grave. Ademais, o Comitê de Direitos Humanos reconheceu ainda que impor um dever aos médicos e outros oficiais de saúde de relatar casos de mulheres que tenham sofrido aborto não respeita o princípio da não-discriminação.

Destaca-se ainda que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos[13] reitera o impacto negativo das leis que criminalizam aborto absolutamente sobre os direitos à vida, à integridade pessoal, à saúde e ao direito das mulheres de viverem livres de violência e discriminação em casos de risco à saúde, não-viabilidade do feto e em gestações resultantes de violência sexual ou incesto. Isso ocorre, na medida em que estas disposições impõem uma carga desproporcional sobre o exercício dos direitos das mulheres e meninas, e cria um ambiente propício para abortos inseguros.

A este respeito, a Comissão[14] adverte que a criminalização absoluta do aborto (ou a criação de barreiras que criem impedidtivos para o acesso ao procedimento de forma segura), trás a imposição de um fardo desproporcional no exercício dos direitos da mulher, e por isso é contráriaàs obrigações internacionais dos Estados de respeitar, proteger e garantir os direitos da mulher à vida, à saúde e à integridade. Nesse sentido, a CIDH[15] tem recebido informações constantes sobre as conseqüências diretas da criminalização do aborto em todas as circunstâncias e sua ligação com os números de morbidade e mortalidade materna. Isso, visto que dada a ausência de opções legais, seguras e oportunas, muitas mulheres se sujeitam a práticas perigosas e até mortíferas; elas se abstêm ou são desencorajadas de requerer serviços médicos ou vivenciam casos de emergências obstétricas sem os cuidados médicos necessários; ou, se forçadas a prosseguir com a gravidez, são submetidas a um sofrimento físico prolongado e excessivo e psicológico.

Outro aspecto que chama a atenção é que a portaria em comento traz dificultadores ao acesso ao procedimento de aborto especificamente para a rede SUS. Assim, todas as violações de direitos aqui narradas são implementadas ainda um agravante: serão aplicáveis apenas para as mulheres que utilizam os serviços do Sistema Único de Saúde. Então, aquelas mulheres que tiverem condições econômicas de buscarem o procedimento legal de aborto em instituições de saúde privadas não serão afetadas pela Portaria.

Acentuar as distorções econômicas existentes no Brasil é especialmente preocupante quando isso ocorre por meio de restrição indevida a preceito constitucional. O que se verifica, portanto, é que as mulheres que já estão em uma condição econômica mais vulnerável, ao serem colocadas em situação ainda mais vulnerabilizada em razão da violência sexual sofrida, são mais uma vez violentadas ao terem o acesso ao procedimento de aborto dificultado. É dizer, o Estado brasileiro negando apoio a uma parcela da população que dele mais necessita.

A situação torna-se ainda mais alarmante, quando se considera, como destacado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que dificultar o acesso ao procedimento de aborto seguro favorece que mulheres busquem outras formas de acesso ao procedimento. Assim, a Portaria em discussão, além de inconstitucional, não resultaria nem mesmo em um maior número de mulheres desistindo de dar prosseguimento ao procedimento de aborto: o resultado seria um maior número de mulheres buscando por procedimentos de aborto inseguros. E isso, em um contexto em que uma mulher morre a cada dois dias por aborto inseguro, de acordo com manifestação do Ministério da Saúde em audiência pública referente à ADPF 442.

Diante de todo esse cenário verifica-se que existem alternativas normativas para buscar uma compreensão mais humanizada do aborto e das mulheres que demandam sua realização. Seria possível buscar e implementar uma interpretação alinhada com todos os entendimentos internacionais listados, bem como com os direitos constitucionalmente previstos, que fosse compreensiva com os direitos das mulheres. No entanto, a opção do Governo Federal é exatamente a oposta

Dessa forma, é preciso considerar a importância e a necessidade de uma perspectiva feminista a ser aplicada sobre a hermenêutica jurídica tradicional. Isto no sentido apresentado por Barak-Erez[16], para quem o feminismo tem muito o que contribuir com as tradições legais e constitucionais, representando uma contrarreação a estereótipos e perspectivas discriminatórias que tradicionalmente marcaram as interpretações constitucionais. Assim,

[uma] interpretação feminista pode ser uma ferramenta muito efetiva a serviço de uma mudança legal gradual. Na verdade, a conexão entre feminismo e interpretação pode ser apresentada de forma ainda mais ambiciosa: feminismo também deveria ser compreendido como oferecendo uma nova perspectiva interpretativa para o conhecimento humanos, incluindo a esfera jurídica.[17]



Naturalmente aqui não é proposta a existência de um único feminismo. Também Barak-Erez, ao trabalhar as possibilidades trazidas pelo feminismo para a hermenêutica jurídica, o faz considerando as múltiplas conformações e correntes existentes, dentro do que se convencionou chamar de feminismo. Entretanto, o que, em alguma medida, essas vertentes do feminismo trazem em comum para a hermenêutica jurídica, e especificamente para a hermenêutica constitucional, é a consideração de uma perspectiva transversal de gênero, que marca as relações sociais — inclusive as jurídicas — mas que é ignorada no Direito, a partir de uma pretensão de neutralidade. Neutralidade essa que, na verdade, serve como cortina de fumaça que assegura a manutenção das desigualdades de gênero existentes. Assim, aproximações feministas ao Direito, que trazem a preocupação com uma perspectiva transversal de gênero têm muito o que contribuir na medida em que afirmam a necessidade de localização do eu pesquisador e do eu “aplicador” do Direito, desconstruindo um eu universal pretensamente neutro, que na verdade é homem, branco e heterossexual.[18]



Assim, temos a importância de discutir que a opção pela restrição do acesso ao aborto não é a única escolha possível diante das legislações postas (isso, sem nem mesmo precisar discutir a possibilidade de alterações legislativas). Não é um escolha neutra e protegida por um discurso técnico. Não. É uma escolha deliberada por uma hermenêutica normativa que busca restringir os direitos das mulheres e meninas. É uma escolha localizada em uma agenda política específica e que é exatamente contrária à prática corrente de parcela significativa da população.

3. Contribuições do pensamento descolonial

A partir do supracitado diagnóstico é possível perceber que apesar de no direito brasileiro o aborto ser compreendido como legal em apenas três hipóteses (e mesmo assim tem havido um movimento governamental para restringir o acesso ainda que nesses casos), ele continua sendo uma prática recorrente no Brasil. O objetivo do trabalho, então, écontribuir para desvendar a aparente contradição. Para tanto, no presente artigo, analisar-se-á, como principal mote argumentativo, a relação entre legalidade e legitimidade no direito moderno, a partir do pensamento descolonial.

Antes, no entanto, é preciso fazer duas considerações. Primeiramente, explicitar a relevância de uma reflexão desde uma teoria situada no Sul global. Isso se justifica pois as ciências sociais hegemônicas são marcadas por um eurocentrismo,[19] pela compreensão de que há no mundo uma única forma de sociedade, uma único modelo a ser copiado e seguido — europeia ou estadunidense.[20] Isso leva uma invisibilização e silenciamento de uma infinidade de experiências sociais que coexistem no mundo. No mesmo sentido, ao partir de uma única realidade e apresentando-a como uma narrativa global, produz-se como inexistente toda a realidade e as histórias locais que existem fora dela.[21] Portanto, essa forma de teorização não é suficiente para explicar o todo e a complexidade do mundo, uma vez que é provinciana.[22]



Em seu lugar, como desdobramento, para que seja possível compreender o tempo presente, é necessário a utilização de um ferramental teórico que seja capaz de explicar o centro, a periferia, bem como a relação entre elas, uma teoria, nesses termos, global.[23] Devido ao exposto, se justifica a utilização do pensamento descolonial.

Para além disso, é necessário evidenciar que apesar do aborto ser uma temática e uma pauta fulcral para a prática e para a teoria feminista, o aporte teórico em que se assenta este capítulo não é o feminismo descolonial, uma vez que não possui uma reflexão detida sobre a tensão entre legalidade e legitimidade — como dito anteriormente, a temática ora analisada.Não obstante, desse campo são subsumidas algumas contribuições e — apesar de não serem desenvolvidas de forma detida por não serem a principal questão argumentativa — permanecerão presentes como pano de fundo: em primeiro lugar, a compreensão de que o feminismo branco e hegemônico, centrado na categoria gênero, é insuficiente para uma reflexão sobre as mazelas vivenciadas pelas mulheres nas regiões periféricas, pós-coloniais ou do Sul global, é necessário cruzá-la com outras categorias, como, raça e classe.[24]



Em segundo lugar, apesar da compreensão de o colonialismo — a relação de subordinação, de dominação e de exploração exercida de forma legítima entre antigas metrópoles e antigas colônias — ter chegado ao fim com os processos de independência,[25] a colonialidade de gênero continua presente, marcando e estruturando as sociedades modernas.[26] Isto é, as mulheres são compreendidas como hierarquicamente inferiores aos homens, exatamente pela condição de serem mulheres.

Por isso, para que seja possível realizar uma análise adequada das singularidades que a dominação de gênero assume na contemporaneidade é necessário voltar os olhos para o que há de específico na dominação de gênero no tempo presente. Portanto, levar a sério a diferença colonial,[27] a influência da economia,[28] bem como a condição geopolítica — a distinção entre centro e periferia.[29]



Por fim, uma última consideração, não serão utilizadas as contribuições de todo o pensamento descolonial, uma vez que é um campo muito amplo e plural,[30] mas, em grande medida, apenas as reflexões de Enrique Dussel, membro do Grupo Modernidade/Colonialidade, ligado a filosofia da libertação[31] e uma das principais bases teóricas da referida tradição.[32] Isso se justifica pois, em que pese algumas divergências, ele leva a sério as contribuições do feminismo descolonial, afirmando textualmente que os feminismos do Norte têm muito a aprender com os feminismos do Sul.[33] [34] Para além disso, ele possui uma vasta reflexão sobre a relação entre legitimidade e legalidade,[35] objeto central da reflexão proposta no presente artigo para analisar e compreender o aborto no Brasil.

3.1 além da legalidade: legitimidade e a ausência de participação simétrica das afetadas e dos afetados na formação dos consensos

Uma das tarefas do pensamento descolonial enquanto corrente crítica[36] é buscar contribuir para explicar os fenômenos que existem no mundoe que, ao menos em um primeiro momento, parecem ser contraditórios. Nesse caso, mais especificamente, como entender que apesar do aborto ser considerado na maioria dos casos como um ato ilegal no Brasil continua sendo realizado por uma grande parcela da sociedade brasileira? Como compreender que apesar da discussão em âmbito governamental pender no sentido da restrição ao aborto mesmo nas hipóteses em que é legal, ele continua sendo uma prática social?

Para isso, é necessário apresentar um diagnóstico, como buscou-se realizar nos tópicos iniciais. A partir de então, com intuito de contribuir para explicitar o que permanece oculto e, assim, explicar a aparente contradição, será preciso apresentar, ainda que de maneira breve, o modo com o que o pensamento descolonial, mais especificamente Enrique Dussel, compreende o que é o direito, o papel ocupado pela legitimidade, bem como a sua relação com a legalidade. Em seguida, a partir das denúncias feitas pelo pensamento descolonial, realizar-se-á uma reflexão acerca de pressuposição de simetria em que se ancora o direito moderno.

Em oposição a distintas tradições que compreendem o direito como mera dominação e como mecanismo de manutenção do status quo, Enrique Dussel compreende o direito como a expressão de um acordo que a comunidade faz consigo mesma — ao tomar consciência de si, de ser uma comunidade —,[37] decidindo de modo soberano, livre e autônomo se dar instituições, regulamentar a vida social e regular a vida em sociedade.[38] Desse momento em diante, o poder se desdobra de formas distintas, entre elas poder constitucional[39] e em seu entorno se constitui todo o sistema de direitos.[40]



Essa decisão de dar-se instituições e estabelecer regras para a vida em sociedade não paira no ar, ela possui um fundamento — historicamente determinado —, ela é decorrente do próprio movimento que espécie humana realizou e realiza no transcorrer do tempo e está ancorada na busca por produzir, reproduzir e ampliar a vida humana em comunidade e, no limite, da espécie humana como um todo.[41]



Importante ressaltar que desde o momento inicial, quando a comunidade decide dar si mesma instituições, as decisões tomadas são sempre consensuais — por meio de trocas de razões se formam acordos linguísticos —, pressupondo sempre a participação simétrica de todos os afetados e de todas as afetadas. Configurando, assim, a legitimidade — que é um elemento fundante e que permanece presente em todos os momentos de tomada de decisão da comunidade política.[42]



A legitimidade vai se expressar de uma forma específica no direito, sendo ela: a pressuposição de que todos são co-autores e todas são co-autoras das normas jurídicas.[43] Sendo assim, os cidadãos e as cidadãs não obedecem a lei e cumprem o direito por uma imposição ou determinação externa, mas como membros e membras da comunidade política entendem o direito como a expressão dos acordos que eles mesmos e elas mesmas chegaram de modo consensual, livre e autônomo. Portanto, descumprir o direito é descumprir um acordo consigo mesmo, consigo mesma e com a própria comunidade. O imperativo que determina que se obedeça ao direito é interno e fruto dos consensos estabelecidos pela própria comunidade.[44]



Em sendo assim, é possível perceber que, para Enrique Dussel, a legitimidade é fundante da própria legalidade. Legalidade e legitimidade não são categorias teórico-sociais que estão completamente apartadas, independentes ou que se realizam em planos distintos, podendo ser analisadas de forma isolada — uma ação o

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