Execução provisória da pena e a vedação da “reformatio in pejus”
Embora muito criticada por grande parcela daqueles que se dedicam ao estudo das ciências jurídico-criminais, a execução provisória da pena (hipótese de prisão automática, sem os requisitos de cautelaridade), ainda é uma realidade no atual cenário brasileiro, notadamente após integrar o famigerado “Pacote Anticrime” – , de Sérgio Moro, atual Ministro da Justiça e Segurança.
Desde o habeas corpus 126.292, há uma total insegurança jurídica no país, um verdadeiro “drama jurisprudencial”, porquanto o julgamento da precitada ação constitucional se deu por maioria muito apertada e alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, em julgados posteriores, demonstraram certa mudança de entendimento, sinalizando uma possível alteração interpretativa.
Nada obstante, pelo que se verifica na prática, o “posicionamento” segue valendo, pelo menos até a manifestação “definitiva” da Corte Suprema sobre as Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44, que visam à pacificação do tema mediante a aferição da compatibilidade do artigo 283, do Código de Processo Penal, à Constituição Federal de 1988.
Dentre as idas e vindas, os prós e contras, versando sobre a “execução provisória e automática da pena”, uma questão tem passado à margem das discussões e merece destaque, sobretudo após o acertado posicionamento do Supremo Tribunal Federal, no bojo do habeas corpus n. º 163.580/PR, de Relatoria da Eminente Ministra Carmen Lúcia, ocasião em que a Douta Relatora se manifestou nos seguintes termos:
A jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal até o presente é no sentido da possibilidade de execução provisória da pena após o exaurimento da prestação jurisdicional na instância ordinária. Entretanto, na espécie examinada, o magistrado de primeiro grau assegurou à paciente o direito genérico de recorrer em liberdade, condicionando o cumprimento da sentença ao trânsito em julgado da condenação. Determinou o juiz de primeira instância que, “após o trânsito em julgado lance-se o nome da Ré no rol dos culpados e expeça-se Guia de Recolhimento”. Não houve recurso da acusação. A determinação do Tribunal de Justiça do Paraná de expedição de mandado de prisão em desfavor da paciente após o exaurimento das vias recursais ordinárias importa reformatio in pejus, por ter sido adotada a providência em recurso da defesa. Tal proceder é vedado pela legislação vigente (art. 617 do Código de Processo Penal). (grifou-se)
De igual forma, referendando supracitado posicionamento, o Superior Tribunal de Justiça, muito recentemente [18/02/2019], ao apreciar a ordem de “Habeas Corpus” nº 493.070, cuja relatoria competiu ao Ilustrado Ministro Sebastião Reis Junior, deferiu medida liminar para assegurar ao réu o direito de aguardar o julgamento em liberdade, com o seguinte fundamento:
Já é cediço que este Superior Tribunal, na linha do entendimento do Supremo Tribunal Federal, firmado na data de 5/10/2016 (ADC MC/DF n. 43 e ADC MC/DF n. 44), possui a orientação de que é possível execução provisória da pena após o julgamento em segunda instância.
Ocorre que, como decidiu a Ministra Cármen Lúcia por ocasião do julgamento do Habeas Corpus n. 163.580/PR, nos casos em que a sentença garante o direito de recorrer em liberdade e não há recurso da acusação, a determinação de execução provisória da pena configura reformatio in pejus. (grifou-se)
Os paradigmáticos precedentes abrem campo para uma nova discussão, até então inexistente e que nada tem a ver com problemática (abstrata) da constitucionalidade da execução provisória da pena. O que está posto para análise, agora, é a (im)possibilidade de início da execução provisória automática após decisão de segunda instância, nos casos (in concreto) em que a sentença penal condenatória concede ao réu o direito de recorrer em liberdade e não há recurso ministerial ou, em havendo, inexiste impugnação específica sobre esse ponto da decisão.
Observe-se, portanto, que se envolveram nessa nova discussão institutos atinentes à teoria geral dos recursos criminais, notadamente no que tange ao efeito devolutivo e o princípio do tantum devolutum quantum appellatum , de modo que resta despiciendo o incursionamento na celeuma jurisprudencial ocasionada pelo habeas corpus 126.292/SP.
Com efeito, levou-se em consideração a vedação da reforma em prejuízo do réu, quando somente sua defesa recorre (non reformatio in pejus), tanto que os julgados afirmam que a execução provisória seria vedada nos casos em que a sentença garante o direito de recorrer em liberdade e não há recurso da acusação, ocasião em que a determinação de execução provisória da pena configura reformatio in pejus. –
Acertado é o posicionamento, uma vez que, em matéria recursal, está o tribunal de reexame adstrito ao princípio do tantum devolutum quantum appellatum. Assim, como se defende há anos, “se, por exemplo, a acusação não pediu para o tribunal reconhecer determinada qualificadora, este não poderá fazê-lo ex officio” , sob pena de clara “reformatio in pejus”, vedada pelo artigo 617, do Código de Processo Penal, que assim dispõe:
“O tribunal, câmara ou turma atenderá nas suas decisões ao disposto nos arts. 383, 386 e 387, no que for aplicável, não podendo, porém, ser agravada a pena, quando somente o réu houver apelado da sentença”.
Há de se ressaltar, no entanto, que os julgados recentes, tanto do Supremo Tribunal Federal (Habeas Corpus n. 163.580/PR) quanto do Superior Tribunal de Justiça (Habeas Corpus” nº 493.070), foram claros no sentido de que a execução provisória da pena somente caracterizaria reformatio in pejus (reforma para pior) nos casos de recurso exclusivo do réu.
Entretanto, vai-se além dos precedentes para defender-se que, à última parte do artigo 617, do CPP (que veda a reformatio in pejus quando somente o réu houver apelado da sentença), deve-se dar interpretação teleológica, em compasso com o tantum devolutum quantum appellatum. Vale dizer, ainda que o Ministério Público tenha recorrido da sentença, se alguma parte lhe passou despercebida e prejudica ao réu, não poderá o tribunal reformar o ponto não impugnado, ex officio, visto que aquela matéria não foi “devolvida” para reanálise e, portanto, sobre ela, operou-se a preclusão consumativa (imutabilidade e inquestionabilidade até o trânsito em julgado).
Nesse panorama, as lições dos processualistas Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero sobre o instituto da preclusão consumativa em tudo se aplicam ao processo penal, de modo que, uma vez praticado o ato, consome-se a possibilidade de emendá-lo ainda que dentro do prazo legal eventualmente ainda disponível.
Destarte, se o magistrado de primeiro grau, ao sentenciar o feito, permite ao réu o recurso em liberdade, deve o órgão ministerial, quando de sua apelação, inexoravelmente impugnar este ponto da sentença, sob pena, como dito, de preclusão consumativa. Caso não o faça, obstado estará o Tribunal de manifestar-se sobre o tema específico, já que, em se tratando de matérias prejudicais à defesa, até mesmo em respeito ao sistema acusatório, não cabe ao Poder Judiciário consertar as “falhas” da acusação e conhecer pedidos que não foram feitos.
Com base nos precedentes retrocitados e dando-se interpretação teleológico-finalística ao artigo 617, do Código de Processo Penal, defende-se que, nos casos em concreto nos quais é garantido ao réu o recurso em liberdade, não poderá, em hipótese alguma, ser executada “provisoriamente” a pena em duas situações, a saber: (i) inexistência de recurso por parte do Ministério Público e (ii) ausência de impugnação específica, no apelo ministerial, da parte da sentença que deferiu o direito ao recurso em liberdade, haja vista que, nessa última hipótese, o tribunal só se manifestará em relação ao que lhe foi devolvido – tantum devolutum quantum appellatum.
Em conclusão, entende-se que, com esse viés hermenêutico, preserva-se o estado de liberdade (status libertatis) do recorrente até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, que se dará quando não mais cabível for qualquer recurso, em absoluta consonância com o comando constitucional inserto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil.
REFERÊNCIAS
Livros:
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 01. 17ª ed. Salvador: Editora JusPODIVM, 2015.
MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz, MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. 2ª ed. São Paulo, RT. 2016.
Artigos e notícias:
BOMFIM, Ricardo. Suspeito de tráfico consegue reverter prisão em segunda instância no STJ. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-fev-18/suspeito-trafico-reverter-prisao-segunda-instancia. Acesso em 19 fev. 19
Cármen concede HC a ré com direito de recorrer em liberdade garantido por juiz. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-out-30/carmen-concede-hc-re-direito-recorrer-liberdade. Acesso em 19 fev. 19
NUNES, Filipe Maia Broeto. Reformatio in pejus direta, indireta e reformatio in mellius. Disponível em: https://filipemaiabroetonunes16.jusbrasil.com.br/artigos/185053372/reformatio-in-pejus-direta-indireta-e-reformatio-in-mellius. Acesso em 19 fev. 19.
NUNES, Filipe Maia Broeto; MELO, Valber. Princípio da presunção de inocência e o drama jurisprudencial. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-ago-29/opiniao-presuncao-inocencia-drama-jurisprudencial. Acesso em 19 fev. 19.
Proposta de lei anticrime de Moro altera 14 leis; leia a íntegra. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI295707,81042-Proposta+de+lei+anticrime+de+Moro+altera+14+leis+leia+a+integra. Acesso em 19 fev. 19.
TEIXEIRA, Matheus. Gilmar Mendes concede primeiro HC contra prisão após segunda instância. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-ago-23/gilmar-concede-primeiro-hc-prisao-segunda-instancia. Acesso em 19 fev. 19.