Fake news, liberdade de expressão e eleições
Nas últimas semanas, intensificou-se o debate sobre liberdade de expressão, proteção da honra e da imagem, a efetividade e reflexos de falsas notícias nas eleições e no cotidiano e a necessidade de sua criminalização, por conta de operações envolvendo um suposto esquema de propagação de fake news, a partir das eleições presidenciais de 2018.
A proeminência das fake news no debate político-eleitoral e seu elevado potencial para o comprometimento democrático levaram a Justiça Eleitoral ainda naquele ano a firmar acordo de colaboração com partidos políticos que se comprometeram a manter “ambiente de higidez informacional, de sorte a reprovar qualquer prática ou expediente referente à utilização de conteúdo falso no próximo pleito”, atuando como colaboradores contra a proliferação de desinformação.1
Na verdade, as eleições gerais de 2018 constituíram verdadeiro divisor de águas no combate às chamadas fake news. Desde então, um dos maiores desafios das nossas instituições democráticas é assegurar a higidez do processo eleitoral, com ações afirmativas do c. TSE no combate à desinformação e, até mesmo, a criação de um novo tipo penal para criminalizar de forma especial a denunciação caluniosa com finalidade eleitoral, acrescendo o artigo 326-A ao Código Eleitoral (Lei 4.737/65).
Fake News: um problema de governança digital. Da plena proteção constitucional à liberdade de imprensa, de expressão e manifestação
Em contextos eleitorais, o impacto da desinformação tende a ser ainda mais lesivo, na medida em que pode deturpar a campanha eleitoral, o esclarecimento do eleitorado, a reputação de partidos e candidatos e a legitimidade da própria Justiça Eleitoral.
Apesar da popularização do assunto, a prática de fake news não é exatamente nova. A manipulação de opiniões por meio de informações inconsistentes, controvertidas ou apelativas sempre existiu. Contudo, antes da proliferação das redes sociais, a propagação de notícias falsas encontrava alguns obstáculos, como o custo alto na elaboração do material, a inviabilidade de alteração de conteúdos originais, a necessidade de simular autenticidade e obter legitimidade e, muitas das vezes, seu limitado alcance.
No entanto, com os avanços da tecnologia e da comunicação digital, as notícias passaram a não encontrar fronteiras, reduziram-se os custos com a sua produção e disseminação e, consequentemente, o seu potencial lesivo.
O livre acesso a ambientes digitais, onde todos podem criar, divulgar ou repassar notícias, possibilita ainda mais a deliberada ou involuntária participação na disseminação de notícias falsas e prejudiciais, uma vez que se deixou de lado a necessária checagem da informação, feita por editores nos veículos tradicionais de imprensa.
Ou seja, apesar de o eleitor ter acesso facilitado às plataformas digitais por meio de qualquer dispositivo eletrônico, a vasta informação encontrada nem sempre é plural, correta e de fonte segura. Tudo isso, obviamente, repercute no cenário eleitoral.
Ademais, o que também acaba dificultando a verificação das informações é o uso de paywalls, uma restrição na qual os visitantes de um site devem pagar pelo acesso ao seu conteúdo. Importante, por isso, avaliar o uso dos paywalls durante o processo eleitoral, que, talvez por iniciativa dos seus próprios gestores, evite ou diminua as restrições, na expectativa de que as notícias apuradas e embasadas proliferem mais que mentiras e boatos. 2
O Facebook é a maior rede social de computadores do mundo, sendo que o Brasil ocupa a 3º posição com aproximadamente 130 milhões de contas. Durante o período pré-eleitoral de 2018, segundo pesquisa da FGV, os pré-candidatos à Presidência, Jair Bolsonaro e Lula, tiveram, respectivamente, 111.590 e 111.405 interações, demonstrando-se, com isto, a potencialidade de alcance das informações digitais em todas as classes sociais.
Embora não se ignorem certos riscos que a comunicação de massa impõe ao fenômeno das fake news, revela-se inconstitucional pretender tolher a liberdade e pluralidade de opiniões.
Até mesmo no cenário político, não há como se afirmar que, ao impor certas limitações, o processo eleitoral ganharia em lisura ou legitimidade.
Tolher a liberdade de imprensa, de expressão e manifestação é sempre um dos primeiros passos para o arbítrio. Assim, em uma Democracia representativa, tanto a liberdade de expressão, manifestação e de imprensa quanto a participação política devem ser exercidas em sua plenitude, com a exposição crítica das diversas opiniões sobre os governantes e candidatos, posto que contribui para a garantia do próprio pluralismo democrático.
Os incisos I e III do art. 1º da CR/88 trazem, respectivamente, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político como fundamentos de nossa República, sendo que o art. 5º, em seu caput, garante a igualdade de todos perante a Lei e, em seu inciso IV, assevera ser “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
Em seu inciso V, o artigo 5º da CR/88 assegura o direito de resposta, além de indenização por dano material, moral ou à imagem, demonstrando, com isto, o equilíbrio entre direitos e deveres, típico de governos democráticos, diferentemente dos regimes autoritários, que se caracterizam pela obediência absoluta a autoridade ou governo.
Na ordem constitucional vigente, enquanto instrumentos do exercício do direito fundamental da liberdade de imprensa, os veículos de comunicação social gozam de estatuto da mais ampla garantia de livre atuação, sobretudo contra o supremo embaraço, representado pela censura prévia, à liberdade de informação jornalística (art. 220, §§ 1º e 2º, CR/88).
Dessa forma, verifica-se a convergência dos dispositivos constitucionais e o que dispõem os tratados internacionais de direitos humanos, em especial o art. 13 do Pacto de São José da Costa Rica, segundo o qual o exercício do direito à liberdade de pensamento e de expressão “não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidade ulteriores”.
A proliferação das redes sociais, com incursão por movimentos políticos, partidários e sociais, permitiu o surgimento de uma nova classe, os “influenciadores digitais”, motivo de debates, tanto na esfera política quanto acadêmica, especialmente nas últimas semanas, com operações envolvendo um suposto esquema de propagação de fake news a partir do disparo em massa de mensagens pelo Whatsapp nas eleições presidenciais. A legislação eleitoral veda a veiculação de qualquer tipo de propaganda eleitoral paga na internet, excetuado o impulsionamento de conteúdos disponibilizado pelos provedores de aplicação, desde que identificado de forma inequívoca como tal e contratado exclusivamente por partidos, coligações e candidatos e seus representantes (Lei n° 9.504, artigo 57-C).
Afinal, ainda que não autorize a censura prévia, a plena proteção constitucional à liberdade de imprensa, de expressão e manifestação não significa a impossibilidade de eventual responsabilização civil ou criminal, ou mesmo eleitoral, decorrente da divulgação de matérias ofensivas à honra ou inverídicas, que causem danos de ordem material, moral ou à imagem, ou seja, que violem a proteção constitucional da dignidade da pessoa humana.
Também no direito comparado o assunto tem sido objeto de discussão. Em 28 de maio de 2020, o Presidente norte americano Donald Trump assinou uma ordem executiva que questiona a legislação de proteção às redes sociais daquele País, modificando uma Lei de 1996, que lhes garantia total liberdade de atuação, sem serem responsabilizadas pelo conteúdo publicado por seus clientes. Tal fato se deu após a rede social Twitter marcar postagens de Trump com uma sugestão para que usuários checassem os fatos postados pelo chefe de Estado. Em seu discurso, Donald Trump alegou que a marcação de checagem em suas publicações afrontaria a liberdade de expressão.
Ainda que o tema invoque muita reflexão, o certo é que não podemos usar essa necessária luta contra a desinformação para limitar o direito à liberdade de imprensa, de expressão e manifestação, uma vez que fake news não têm nada a ver com referidas liberdades, e sim com “notícias fabricadas e montadas estrategicamente, ou premeditadamente, para dar a impressão de que possuem verossimilhança.” Por isso a necessidade de tutela inibitória, impedindo que uma notícia falsa continue a circular, sem prejuízo das sanções eleitorais, cíveis e criminais.
Da denunciação caluniosa com finalidade eleitoral (art. 326-A do Código Eleitoral)
A partir das eleições de 2018, verificou-se que as regras jurídicas existentes e principalmente aquelas de cunho penal eram insuficientes e não atendiam a finalidade de evitar a manipulação de dados e informações.
Nesse contexto, surgiu a Lei nº 13.834, de 4 de junho de 2019, que criminalizou a denunciação caluniosa eleitoral e, ainda, trouxe dispositivo que, inicialmente vetado pelo Presidente da República, teve o aludido veto posteriormente derrubado pelo Congresso Nacional, consubstanciado no art. 326-A, que dispõe:
“§ 3º Incorrerá nas mesmas penas deste artigo quem, comprovadamente ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral, divulga ou propala, por qualquer meio ou forma, o ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído. ”
O objetivo dessa reforma legislativa, ocorrida após as eleições presidenciais, foi assegurar maior lisura aos pleitos e garantir a efetividade dos princípios constitucionais. Jamais uma notícia falsa divulgada poderá ser considerada liberdade de expressão. Da mesma forma, os disparos maciços em redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas, quando inidôneos, violam os direitos fundamentais, inclusive a verdade, que é uma das bases da democracia. A criminalização de conduta ilegal visou a dar maior credibilidade ao debate político-eleitoral e coibir tais abusos.
A pena prevista para tal delito é de reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa. Foi motivo de discussão, que levou ao veto presidencial, ante a ausência do requisito proporcionalidade, posteriormente derrubado, no entanto, encontrando-se vigente a norma punitiva.
Portanto, encontra-se criminalizada a conduta de disseminação de fake news, cumprindo salientar que nos encontramos em ano eleitoral e a divulgação de notícias falsas, além de configurar crime, punível, como já descrito, com pena de reclusão, pode configurar, ainda, propaganda eleitoral antecipada negativa, também passível de multa pecuniária e garantia de direito de resposta ao ofendido, ou mesmo, a depender da origem dos recursos, dos gastos com a sua realização e disseminação, abuso do poder econômico ou captação ou gastos ilícitos de recursos para fins eleitorais.
A liberdade de expressão assegurada pela Constituição da República não é absoluta e, ainda que não autorize a censura prévia, deve obedecer aos limites da lei e o respeito as demais regras do direito, respeitando a dignidade da pessoa humana, a honra e, sob a ótica eleitoral, a lisura do pleito, pois falsas notícias resultam em desequilíbrio entre os candidatos, prejudicando a normalidade das eleições e o exercício regular da democracia.
Antonio Ap. Belarmino Junior, advogado, pós-graduando em ciências criminais pela FDRP/USP, presidente da ABRACRIM – SP, Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas no Estado de São Paulo.
Joelson Dias, advogado, ex-ministro substituto do TSE, mestre em Direito pela Universidade Harvard e membro fundador da ABRADEP – Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político.
1 – Disponível em: http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Junho/eleicoes-2018-tse-e-partidos-firmam-acordo-de-nao-proliferacao-de-noticias-falsas. Acesso em 10 de junho de 2020.
2 – Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/coronavirus/a-queda-do-paywall-em-tempos-de-pandemia-o-valor-da-informacao/. Acessado em: 10 de junho de 2020.