Feminicídio – Lei 14.994 de 2024 – Inquietações preliminares
Por Marcelo Bareato
A análise da nova legislação pertinente ao feminicídio revela uma série de ajustes significativos que visam tanto fortalecer as penalidades quanto modificar as condições de cumprimento das penas impostas aos condenados por este crime específico. Dentre outros pontos destacam-se o aumento da pena de reclusão, que agora varia entre 20 a 40 anos. Além disso, a lei especifica que antes de ter direito à progressão para o regime semiaberto, o condenado deve cumprir pelo menos 55% do tempo no regime fechado. Outro aspecto é a caracterização do feminicídio como um tipo penal independente, o que elimina a necessidade de qualificação adicional para aplicar a pena aumentada.
Por outro lado, existem potenciais desafios associados à implementação da nova lei. Primeiramente, embora a lei seja rigorosa em termos de pena, ela poderia enfrentar desafios no que se refere à sua efetiva aplicabilidade e à rapidez nas investigações. A nova lei visa acelerar as investigações, mas não há detalhes substantivos sobre como isso será efetivamente garantido. Adicionalmente, enquanto a lei busca reforçar a responsabilização dos agressores por meio de efeitos penais complementares, como a proibição de assumir cargos públicos, pode haver controvérsias sobre a proporcionalidade e eficácia de tais medidas em prevenir o crime.
Como crime autônomo, a nova legislação passou a prever expressamente a comunicação, entre coautores e partícipes, das elementares de caráter pessoal do crime (art.121-A, § 3.º, CP), assim como trouxe, como efeito da condenação, alteração no art. 92, II, CP e a determinação de que os condenados por esse tipo de delito, cometido contra mulher em razão da condição do sexo feminino, não serão nomeados, designados ou diplomados em qualquer cargo, função ou mandato eletivo no período que compreende o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e o término efetivo do cumprimento da pena.
Com relação aos crimes de lesão corporal praticados contra mulher, onde o agente se vale da condição do sexo feminino, a pena foi elevada para 2 a 5 anos de reclusão (art. 129, § 13.º), condição semelhante a modificação trazida com relação a ameaça, prevista no art. 147, §§ 1.º e 2.º, CP, cuja pena será aplicada em dobro quando cometido contra mulher, em razão do sexo feminino e a ação penal será pública incondicionada.
Já no campo das contravenções penais, Decreto Lei 3.688/41, o art. 21, que trazia a pena de prisão simples de 15 dias a 3 meses, ou multa, agora quando praticada contra mulher em razão da condição do sexo feminino, terá a pena triplicada.
Outro aspecto digno de nota é que a pena para o crime de descumprimento de medida protetiva, na Lei Maria da Penha (art. 24-A), passa a ser de 2 a 5 anos de reclusão e multa.
Dentre os pontos sensíveis na Lei de Execução Penal, estão o uso obrigatório de tornozeleira eletrônica em caso de saída do estabelecimento prisional (art. 146-E da LEP), a proibição de visita íntima ou conjugal no estabelecimento prisional (art. 41, § 2.º da LEP), a transferência para estabelecimento prisional distante do local da residência da vítima, para aqueles que, sendo condenado ou preso provisório, por crimes dessa natureza, ameaçar ou praticar violência contra a vítima ou seus familiares durante o cumprimento da pena (art. 86, § 4.º da LEP), além da expressa vedação ao livramento condicional.
Não menos tormentosa é a questão verificada na obrigação do cumprimento de 55% da pena imposta para progressão de regime. Neste caso, contrariando o que determinam os estatutos que tutelam a dignidade humana e os direitos humanos, o condenado passará preso 80% da pena imposta, para que possa ser colocado no regime aberto.
Vejamos o caso em que o agente recebe a pena máxima de 40 anos, por exemplo. Para progredir, do regime fechado para o semiaberto, precisará, levando em conta a não incidência de nenhuma falta grave ou novo crime dentro do sistema prisional, em média 22 anos. Do restante da pena, 18 anos, será necessário mais 55% para a progressão para o aberto, o que equivaleria a quase 10 anos, totalizando um período médio de 32 anos de cumprimento efetivo da pena imposta dentro do sistema e mais 8 anos em sistema de liberdade vigiada, no regime aberto. A regra vale, inclusive para réus primários.
Já com relação ao processo penal, os casos que envolvem a nova legislação terão prioridade de tramitação em todas as instâncias (art. 394-A, CPP) e, sendo o caso de crime doloso contra a vida, restará a questão referente ao Plenário do Júri, o qual, no tocante a quesitação, forçará a interpretação do magistrado sem qualquer baliza prevista na atual legislação.
Assim, o art. 121-A do CP, apresenta problema nas duas fases, a pré-júri e a plenária. A decisão que leva a pronúncia traz, em si, os pontos a serem tratados no plenário, sob pena de nulidade absoluta, no caso de qualquer inclusão que não tenha sido objeto daquela decisão, com todas as qualificadoras e causa de aumento de pena. Neste aspecto, as qualificadoras do feminicídio são, em regra, diferentes daquelas indicadas para o homicídio. Imagine o caso onde os jurados respondem sim para morte, mas negam o crime praticado em razão do sexo feminino. Se a decisão de pronúncia estabelecer qualificadoras específicas, não previstas para o homicídio qualificado, por exemplo, os jurados terão que condenar o agente apenas por homicídio simples? Seria o caso de absolvição? Ou, a quesitação terá que ser mudada sem que exista uma previsão expressa? As respostas acontecerão ao longo dos julgamentos a partir de agora, com a advertência de que será possível as 3 interpretações, por falta de regramento expresso na norma.
Dito de outra forma, a decisão pela criação de um novo tipo penal (art. 121-A, CP) foi acertada ou deveria ter sido mantida a forma mais gravosa para o crime de homicídio, como já estava previsto no art. 121 do CP?
Incontroverso é o fato de que se trata de lei mais gravosa, o que impede que seja utilizada de forma retroativa, ou seja, não alcança os casos anteriores a sua entrada em vigor em 10 de outubro de 2024.
Destarte, e para que nosso artigo não fique por demais extenso, também, sem a pretensão de esgotar o tema ou trazer todos os pontos nevrálgicos da nova legislação, nossa anotação final para esta primeira forma de inquietação, é no sentido de que a lei sobre feminicídio tenta dar uma resposta mais rigorosa a esse tipo de crime, elevando penas e especificando medidas punitivas. No entanto, a exemplo do que já acontece com o legislador brasileiro ao longo dos últimos anos quando, sistematicamente, cria tipos para que os casos peculiares sejam acomodados pela jurisprudência, sua eficácia na prática dependerá da implementação efetiva das medidas propostas e da agilidade, precisão das investigações relacionadas e perspicácia do aplicador da lei, somados a jurisprudência que, vez ou outra, terá que ser unificada nos tribunais superiores para acompanhar a necessidade de cada julgamento, elevando, por força da simplicidade com que foi colocada em vigor, o que se chama de insegurança jurídica, na medida em que propiciará julgamentos baseados na moral e bons costumes, quando o correto seria interpretar os princípios constitucionais a luz do caso concreto.
O autor é Doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial, Direito Internacional Público, Relações Humanas, Criminologia e Execução Penal na PUC/GO e na EBPÓS – Escola Brasileira de Pós Graduação, Conferencista, Parecerista, Advogado Criminalista, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, Vice Presidente da ABRACRIM/GO – Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Seccional Goiás, Membro da Comissão de Direitos Humanos da Seccional OAB/GO, Membro da Coordenação de Política Penitenciária da OAB/Nacional, Membro do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura/GO, Coordenador da Comissão Intersetorial de Acompanhamento da Saúde no Sistema Prisional/GO, Membro do FOCCO – Fórum Permanente de Combate à Corrupção do Estado de Goiás, Membro da ABA – Associação Brasileira dos Advogados, Membro da AASP – Associação dos Advogados do Estado de São Paulo/SP, Membro do IBCcrim – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).