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H(À) LUTA: A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E O RECENTE CASO DO ESTUPRO DE VULNERÁVEL DA PARTURIENTE NO HOSPITAL CARIOCA

Carolina Gevaerd Luiz1

É século XXI. O ano é 2022. Mas a luta das mulheres ainda sequer chegou na metade.

Diariamente, nós mulheres precisamos viver sob alerta. Ir ao mercado, entrar e sair no carro, trabalhar, estudar, fazer exercício físico, ir a um bar para esfriar a cabeça após um dia cansativo de trabalho, passear com o cachorro… qualquer atividade, hoje, na vida da mulher, clama por alerta vinte e quatro horas por dia.

Mas dar à luz em um respeitado hospital – Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti/RJ – foi, para muitos e muitas, uma circunstância inesperada e ainda mais chocante.

No dia 11 de julho de 2022, chegou ao conhecimento público que um médico anestesista teria sido preso em flagrante acusado de estuprar uma mulher durante a sua própria cesariana.

O que ocorreu foi que enfermeiras e técnicas do hospital passaram a desconfiar do comportamento do médico devido justamente à quantia de sedativo utilizado: as mulheres que receberam analgesia do médico ficaram, todas as vezes, muito dopadas, já que teriam recebido aparentemente sete

dosagens do medicamento. Segundo as enfermeiras, em cesarianas é altamente recomendado que a mulher esteja acordada e consciente durante a cirurgia, uma vez que a sedação também pode afetar o bebê.

Portanto, diante da fundada suspeita, o corpo de enfermeiras se uniu para alterar a sala de parto de última hora e conseguiram filmar com uma câmera escondida o momento em que o médico teria abusado sexualmente da parturiente.

Lavrado o Auto de Prisão em Flagrante por estupro de vulnerável (artigo 217-A, § 1º, do Código Penal2), o médico anestesista foi preso em flagrante-delito, que restou convertido em prisão preventiva. O CREMERJ informou que suspendeu o médico do quadro de médicos. Com isso, ele fica impedido de exercer a medicina em todo o país, até o fim do processo que pode cassar o registro em definitivo. O flagrante foi convertido em Inquérito Policial pela Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM) de São João de Meriti/RJ, no qual o anestesista teria sido investigado por outros quarenta possíveis casos de estupro, o que inclui duas possíveis vítimas que tiveram filhos no mesmo dia do flagrante. Após, o Ministério Público carioca apresentou denúncia em desfavor do anestesista, e fora deflagrada a competente Ação Penal por suposta transgressão ao artigo 217-A, § 1º, do Código Penal.

A doutrina e a jurisprudência definem como sendo diversos os tipos de violência contra as mulheres. O conceito definido na Convenção de Belém do Pará (1994) 3 aponta para esta amplitude, definindo violência contra as mulheres como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento

físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado” (artigo 1°)4.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde – OMS –, violência sexual é “todo ato sexual, tentativa de consumar um ato sexual ou insinuações sexuais indesejadas; ou ações para comercializar ou usar de qualquer outro modo a sexualidade de uma pessoa por meio da coerção por outra pessoa, independentemente da relação desta com a vítima, em qualquer âmbito, incluindo o lar e o local de trabalho5.

Segundo o organismo das Nações Unidas, a coerção pode ocorrer de diversas formas e por meio de diferentes graus de força, intimidação psicológica, extorsão e ameaças. A violência sexual também pode acontecer se a pessoa não estiver em condições de dar seu consentimento, em caso de estar sob efeito do álcool e outras drogas, dormindo ou mentalmente incapacitada, entre outros casos6.

Já no que diz respeito à violência obstétrica, essa atinge diretamente as mulheres e pode ocorrer durante a gestação, parto e pós-parto. É o desrespeito à mulher, à sua autonomia, ao seu corpo e aos seus processos reprodutivos, podendo manifestar-se por meio de violência verbal, física ou sexual e pela adoção de intervenções e procedimentos desnecessários e/ou sem evidências científicas. Afeta negativamente a qualidade de vida das mulheres, ocasionando abalos emocionais, traumas, depressão, dificuldades na vida sexual, entre outros7.

Segundo levantamento realizado pelo The Intercept, foram registrados 1.734 casos de violência sexual em hospitais de nove estados brasileiros, entre 2014 e 2019. São 1.239 registros de estupros e 495 de casos de assédio sexual, violação sexual mediante fraude, atentado violento ao pudor e importunação ofensiva ao pudor. Os números reais de casos de violência sexual em hospitais são imensuráveis, considerando a ausência de dados dos 18 estados restantes e de um histórico de subnotificações 8.

No caso aqui analisado, ao que se apurou, uma série de violências atravessaram a vítima no momento de dar à luz: estar sem o acompanhante de maneira integral durante o parto; o excesso de anestesia utilizada no procedimento; e o dito estupro de vulnerável (ao que parece, ato distinto da conjunção carnal, figurando ato libidinoso), crime com pena de 8 a 15 anos de reclusão. Além disso, a imagem da parturiente circulou em diversos veículos de comunicação, expondo o corpo feminino a mais esse tipo de violência.

Ou seja: sim, a mulher não tem paz nem para dar à luz, em pleno século XXI. Não tem acolhimento e segurança nem para gerar uma vida humana.

Aquele momento que deveria ser marcado por lágrimas de felicidade diante do nascimento de seu filho, é marcado por lágrimas de tristeza por receber sua irmã, ainda deitada na maca para se recompor de uma invasiva cirurgia, dizendo “você foi abusada pelo anestesista”. As feridas ficarão marcadas, por meio de cicatrizes – não em sua pele, mas em sua alma. E sempre serão lembradas ao mostrar o álbum de nascimento de seu filho para seus familiares e amigos, a cada página que passar. A cada noite em que dormir. A cada segundo em que viver.

Mas enquanto mulher e Advogada, muito me orgulha e me chama a atenção a atitude e a coragem das enfermeiras do hospital carioca. Foi graças a elas que a apontada atitude criminosa do médico anestesista foi descoberta, e que diversas outras futuras mães foram poupadas de se tornarem vítimas ao darem à luz a seus filhos naquele hospital.

De mãos dadas, unidas, foram corajosas e deram um basta às diversas violências contra a mulher lá praticadas. De mãos dadas, unidas, protegeram uma semelhante e tantas outras que estariam por vir futuramente.

De mãos dadas, unidas, fizeram jus à anciã e eterna luta feminina e mostraram que, no Brasil, verás que uma filha tua [também] não foge à luta.

Há luta. À luta.

1 Graduada no curso de Direito da Faculdade CESUSC. Advogada Criminalista. Pós-graduada no curso de Ciências Criminais da Faculdade CESUSC. Membro da AACRIMESC e da ABRACRIM. Membro da Comissão de Tribunal do Júri, da Comissão de Direito Penal Econômico, da Comissão de Direito Penal e da Advocacia Criminal e da Comissão de Assuntos Prisionais, todas da OAB/SC. Membro do Grupo de Estudos em Direito Penal Econômico da UFSC/UNIVALI. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Pós-graduanda em Direito Penal Econômico na PUC Minas. Vice-Presidente da Comissão de Prerrogativas da 29ª Subseção da OAB/SC (2021). Secretária-adjunta da Comissão de Assuntos Prisionais da OAB/SC (2021/2022). Secretária da Comissão de Direito Penal Econômico da OAB/SC (2021/2022). Vice-Presidente da Comissão de Direitos Humanos da 29ª Subseção da OAB/SC (2022-2024). Presidente da Comissão de Direito Penal Econômico da 29ª Subseção da OAB/SC (2022/2024). Endereço eletrônico para contato: gevaerdcarolina@gmail.com.

2 Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência […]

3 Primeiro tratado internacional de proteção aos direitos humanos das mulheres a reconhecer expressamente a violência contra a mulher como um problema generalizado na sociedade.

4 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/d1973.htm>. Acesso em: 21 de agosto de 2022.

5 Disponível em: <https://brasil.un.org/pt-br/80616-oms-aborda-consequencias-da-violencia- sexual-para-saude-das-mulheres>. Acesso em: 21 de agosto de 2022.

6 Idem, ibidem.

7 Governo do Estado do Mato Grosso do Sul. Secretaria de Estado de Saúde.

8 Disponível em: <https://lunetas.com.br/cultura-do-estupro-parto/>. Acesso em: 21 de agosto de 2022.

9 Hino brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/hino.htm>. Acesso em: 21 de agosto de 2022.

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