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Homicídio causado por motorista embriagado: Aplicação do dolo eventual ou culpa consciente

Wallace Martins Queiros*

RESUMO

Os institutos do dolo eventual e da culpa consciente possuem uma linha tênue que os diferencia, o que gera muita controvérsia, seja na doutrina ou jurisprudência, quando da aplicação ao caso concreto, haja vista que, no ponto em comum dos institutos esta a previsão do resultado que lesiona o bem juridicamente tutelado.

O dolo eventual, o agente não se importa na ocorrência do resultado, anuindo com este, assumindo o risco. Do contrário é a culpa consciente, na qual o agente acredita que poderá evitar o resultado, confiando na sua habilidade, não concordando com a sua ocorrência.

O presente trabalho de conclusão de curso de pós-graduação tem como objetivo analisar a aplicação dos institutos do dolo eventual e da culpa consciente diante de homicídio ocorrido no trânsito, na qual o motorista causador do dano esteja sobre o efeito de bebida alcoólica.

Palavras-chave: Dolo; Dolo eventual; Culpa consciente;

INTRODUÇÃO

Este tema foi objeto de pesquisa no Trabalho de Conclusão de Curso da graduação e aqui prossigo no seu estudo.

Os institutos dolo eventual e culpa consciente possui uma linha tênue na aplicação, pois aquele, o agente prevê o resultado como possível, não se importa se vier a ocorrer e prossegue com a ação. Já do contrário, na culpa consciente, o agente prevê que o resultado possa ocorrer, não o aceita como possível, prossegue na ação, pois acredita que com a sua habilidade evitará o resultado, porém o resultado vem a ocorrer.

O presente trabalho tem o objetivo de debater o homicídio causado no trânsito, na qual o motorista está sobre o efeito de bebida alcoólica, fato recorrente na sociedade e diversas vezes noticiado em telejornais, gerando revolta social, seja pelo ato em si, bem como pela sensação de que o autor não é punido adequadamente.

          A discussão no presente trabalho é se o autor do fato deve ser denunciado por dolo eventual e por consequência aplicando-se o artigo 121 do Código Penal Brasileiro (CPB) ou, deve ser responsabilizado pelo artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), sendo este um crime culposo, na modalidade de culpa consciente.

          O tema é pertinente e é fato que há vários casos da junção de embriaguez, direção de veículo automotor e vítima fatal. Sendo assim, seja por um clamor social ou não, o Ministério Público tem oferecido denúncia em diversos casos como o citado, imputando a conduta de homicídio com dolo eventual, principalmente se além daquelas condições citadas, o autor esteja em excesso de velocidade e pela contramão de direção.

          No Poder Judiciário o tema apresenta divergência, tendo em vista que há decisões reconhecendo o dolo eventual e consequentemente pronunciado o autor para que seja julgado pelo Tribunal do Júri, bem como há decisões que não pronuncia ou que desclassifica em sede recursal ou modifica a decisão para pronunciar o agente ao Tribunal do Júri.

          Diante do exposto, o tema em debate é a aplicação do dolo eventual ou culpa consciente, quando ocorre homicídio na direção de veículo automotor, na qual o autor está sob o efeito de bebida alcoólica.

DESENVOLVIMENTO

Artigo 18 do CPB: “Diz-se o crime”: I – “doloso, quando o agente quis o resultado ou assumi o risco de produzi-lo”.

A primeira parte do inciso I revela o dolo direto, seja de primeiro ou segundo grau. Já a segunda parte revela o dolo eventual.

O autor Cezar Bitencourt define dolo da seguinte forma: “Dolo é a consciência e a vontade de realização da conduta descrita em um tipo penal”. (BITENCOURT, 2015, p. 355). Já o autor Flávio Augusto Monteiro de Barros diz: “Podemos, portanto, definir o dolo, sob o aspecto naturalista, como a vontade consciente de realizar o fato criminoso”. (Manual de Direito Penal – Parte geral e Especial, p. 273).

No dolo eventual, o agente prevê o resultado como possível e embora não o queira, não se importa com a sua ocorrência, não deixa de agir, assumindo o risco de produzir lesão a um bem jurídico. O autor Rogério Greco cita Francisco Muñoz Conde que diz:

“No dolo eventual, o sujeito representa o resultado como de produção provável e, embora não queira produzi-lo, continua agindo e admitindo a sua eventual produção. O sujeito não quer o resultado, mas conta com ele, admite sua produção, assumi o risco etc”. (GRECO, 2010, p.184).

Já o autor Alberto Silva Franco, citado por Bitencourt, expõe a seguinte lição: “Tolerar o resultado, consentir em sua provocação, estar a ele conforme, assumir o risco de produzi-lo não passam de formas diversas de expressar um único momento, o de aprovar o resultado alcançado, enfim, o de querê-lo”. (BITENCOURT, 2015, p. 363).

Quanto ao crime culposo, o inciso II do artigo 18 do CPB diz: II “culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”.

A doutrina majoritária apresenta diversos elementos que caracterizam o crime culposo, sendo eles a conduta humana voluntária; ação e omissão; inobservância de um dever objetivo de cuidado por imprudência, imperícia e negligência; resultado lesivo não querido e tampouco assumido pelo agente; nexo de causalidade entre a conduta e o resultado; previsibilidade e tipicidade. 

Bitencourt ao tratar do crime culposo diz que culpa é a inobservância do dever objetivo de cuidado, na qual produz um resultado não desejado, mas que poderia ter sido previsto e assim diz:

“O conteúdo estrutural do tipo de injusto culposo é diferente do tipo de injusto doloso: neste, é punida a conduta dirigida a um fim ilícito, enquanto no injusto culposo pune-se a conduta mal dirigida, normalmente destinada a um fim irrelevante, quase sempre lícita”. (BITENCOURT, 2015, p. 371).

          Após tratar brevemente sobre o delito culposo, passo a tratar sobre a culpa consciente em razão da pertinência temática ao presente artigo de TCC.

De início cito que o dolo eventual e a culpa consciente possuem aplicação e requisitos de linha tênue, isto é, em um caso concreto a aplicação de um ou outro instituto não é das tarefas mais fáceis. Por isso, Cezar Bitencourt cita que: “os limites fronteiriços entre o dolo eventual e culpa consciente constituem um dos problemas mais tormentosos da Teoria do Delito. Há entre ambos um traço comum: a previsão do resultado proibido”. (BITENCOURT, 2015, p. 385).

O citado autor continua a explicar que, o dolo eventual o agente anui com resultado, ou seja, concorda, assumindo assim o risco de sua produção ao invés de não praticar a ação. Do contrário ocorre na culpa consciente, de forma que, o agente prevê como possível o resultado, mas confia que não ocorrerá, no entanto avalia mal, age e ocorre o resultado.

Nos jornais são relatados vários casos em que motorista após ingerir bebida alcoólica e muitas das vezes em excesso de velocidade, causa acidente de trânsito com resultado morte, o que gera revolta social.

Por sua vez, o Ministério Público em diversos casos apresenta denúncia imputando ao autor homicídio doloso por dolo eventual, tendo como cerne da denúncia à narrativa de que o agente por influência de bebida alcoólica e em excesso de velocidade causou a morte da vítima.

O autor Rogério Greco afirma que a questão não é tão simples assim e diz:

“Essa fórmula criada, ou seja, embriaguez + velocidade excessiva = dolo eventual, não pode prosperar. Não se pode partir do princípio de que todos aqueles que dirigem embriagados e com velocidade excessiva não se importam em causar a morte ou mesmo lesões em outras pessoas”. (GRECO, 2010, p. 200).

Os autores Klaus Negri Costa et al. ensinam:

“Em suma, em ambos os institutos há previsão do resultado (…), porém, quem atua com culpa consciente prevê o resultado, mas acredita que ele não irá ocorrer, geralmente confiando em sua habilidade; já quem atua com dolo eventual prevê o resultado e assume o risco de sua ocorrência, agindo com indiferença para com bem jurídico envolvido. Nota-se, portanto, uma linha diminuta no que diz respeito aos homicídios de trânsito (…)”. (Curso de Legislação Criminal Especial, p. 338).

A aplicação do dolo eventual ou culpa consciente não é tarefa das mais fáceis, pois há uma linha tênue que separa os institutos. Além do mais, uma leitura na segunda parte do inciso I do artigo 18 do CPB, quando diz: “assume o risco de produzir o resultado”, pode induzir o leitor a entender que o autor precisa assumir que era indiferente ao resultado, o que, convenhamos, não possui qualquer lógica ou aplicação pratica, pois nenhum autor, após a ocorrência do acidente de trânsito com resultado morte vai assumir a indiferença quanto ao resultado.

A seguir o ensinamento dos autores supramencionados, muito embora longa, porém necessária, que assim aduzem:

“(…). A pessoa que se embriaga e dirige em velocidade excessiva na sequência pode, ou não, agir com dolo eventual. Tudo dependerá da analise do caso concreto. E isso – pouco explorado pela doutrina – é de suma importância, pois o dolo eventual não é extraído da “mente do agente” (o que seria impossível), mas, sim, das circunstâncias do fato, da forma como o crime ocorreu concretamente (STJ, AgRg no AREsp n° 1.166.037/PB, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 17.12.19). Ex.: excesso de velocidade + ingestão prévia de álcool + desrespeito ao semáforo vermelho + tráfego na contramão + colisão = resultado morte. Todos esses elementos são indicativos (e não comprobatórios) de dolo eventual. Consoante o Superior Tribunal de Justiça, “a embriaguez do agente condutor do automóvel, por si só, não pode servir de premissa bastante para a afirmação do dolo eventual em acidente de trânsito com resultado morte” (REsp n° 1.689.173/SC, rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 21.11.17). Desta forma, não é que todo homicídio praticado na condução de veículo automotor será culposo, como também não é que todo homicídio praticado com excesso de velocidade ou após ingestão de álcool que será doloso. Os elementos do caso concreto deverão ser, sempre, bem analisados, a fim de permitir a melhor conclusão ao aplicador da lei”. (Curso de Legislação Criminal Especial, p. 339).

Do citado acima, duas observações pertinentes, a primeira, o tema é pouco explorado e estudado na doutrina brasileira. A segunda, o dolo eventual não é extraído da mente do agente, algo impossível.

O autor Márcio Schlee Gomes escreveu sobre dolo no livro: “Dolo: cognição e risco: avanços teóricos”, aprofundando a discussão sobre o dolo.

Já na introdução do citado livro, o autor faz uma crítica e pontua que o querer ou não querer, desejar um resultado ou não é uma concepção simplista e generalista e ensina:

“A equivalência do significado de dolo com “intenção” ou “vontade”, numa concepção e linguagem do cotidiano, traz a ideia de que só haveria dolo sob o aspecto psicológico. A essencial diferença de um crime doloso para um crime culposo, assim, estaria no querer ou não querer, desejar um resultado ou não. Entretanto, essa concepção simplista ou generalista, por óbvio, é incapaz de responder as mais diversas situações que surgem dos casos concretos e, também, que podem ensejar um grande número de decisões injustas, seja com punições excessivas, seja com a total impunidade”. (Dolo: cognição e risco: avanços teóricos, p. 25).

Ao tratar da concepção psicológica do dolo, o mencionado autor cita Roxin:

“nesse aspecto, pondera que “O dolo não esta na cabeça do autor, mas sim na cabeça do juiz”, evidenciando uma linha normativa, que afasta a ideia de uma concepção psicológica de dolo, e parte da valoração da conduta do agente”. (Obra supracitada, p. 26).

Márcio Schlee afirma que a aplicação do dolo eventual e da culpa consciente tem pontos obscuros diante da dificuldade em fixar critérios fidedignos que diferencia os institutos, sendo colocados os critérios existentes em uma equação simples, mas de pouco resultado prático, merecendo um aprofundamento e discussão sobre a aplicação da teoria da vontade que inclui a teoria do consentimento.

Quanto ao estudo da teoria da vontade e a ausência de aprofundamento pela doutrina brasileira, Márcio Schlee Gomes aduz:

“Enquanto a doutrina brasileira pouco tratou do tema além daquilo que já havia sido sedimentado pelas décadas de 30 a 50 do século passado, a doutrina alemã, com Frisch, Herzberg, Schmidhauser, Roxin, Jakobs, Kindhauser, Puppe, Kaufmann e dentre tantos outros, questionava a aplicação apenas de um critério psicológico ou volitivo para definição de dolo”. (Obra supracitada, p. 28).

Márcio Schlee diz que com a conduta do agente, não importa qual a sua vontade, mas, sim, o juízo de valor que será lançado para verificar se essa conduta foi dolosa ou culposa. O que importa é a análise de quem vai julgar e não o que o autor da conduta diz, concluindo que:

“A questão, então, não é uma simples dificuldade probatória, conforme explicação doutrinária por alguns, porém uma situação ontológica, conceitual e fundamental”.

“A discussão não é da área do processo penal, no campo da prova (direta ou indiciária), mas é do Direito Penal e diz respeito ao âmago do conceito de dolo. Cabe estudar e verificar se o critério puramente psicológico proposto na legislação, em tese, merece ser considerado o único para a explicação do dolo. E, por certo, esse é o ponto que merece ser devidamente explorado no presente trabalho”. (Dolo: cognição e risco: avanços teóricos, p. 29).

          A doutrina alemã, que muito influencia o direito brasileiro, sustenta três tipos de dolo: O dolo direto de primeiro grau, o dolo direto de segundo grau e o dolo eventual, sendo este último de interesse para o presente trabalho e cito o autor Márcio Schlee que assim o explica:

“o dolo eventual caracteriza-se pela conduta geradora de um perigo sério e concreto ao bem jurídico tutelado pela norma penal, pela qual se verifica que o agente assumiu o risco de produzir o resultado”. (Dolo: cognição e risco: avanços teóricos, p. 45).

“O avanço da matéria, portanto, no direito alemão, como se pode ver, é contundente, com várias vertentes, mas com a sua grande maioria afastando-se por completo de uma concepção psicológica, buscando amparar-se na possibilidade, probabilidade, criação do perigo, risco e conduta arriscada direcionada ao bem jurídico”. (Obra supracitada, p. 46).

Na Alemanha o estudo do dolo evoluiu, sobretudo quanto ao dolo eventual, de modo a se analisar a possibilidade, probabilidade, criação do perigo, risco e conduta arriscada direcionada ao bem jurídico, afastando-se da análise do psicológico do autor, até porque não há como invadir a sua mente, a fim de extrair a presença ou não dolo.

CONCLUSÃO

No ano de 2017, para concluir a graduação em Direito, o autor deste artigo realizou pesquisa científica sobre o mesmo tema aqui pesquisado, decidindo assim continuar a pesquisa.

Quando da pesquisa para conclusão da graduação, um dos pontos em que achei tormentoso é exatamente a produção de prova no que se refere ao assumir o risco do resultado, demonstrar o elemento psicológico do dolo eventual, o que, convenhamos é prova de difícil produção.

Após estudar o livro do Márcio Schlee e do Klaus Negrini Costa et al., os autores citam a evolução do estudo do dolo pela doutrina internacional, mais especificamente a alemã, cuja conclusão é de que o ponto central não é o psicológico do agente ou o que ele disser, mas a análise do caso concreto, ou seja, da conduta, não importando qual era a sua vontade.

O direito penal não pode ficar a depender da colaboração do autor do fato para que seja aplicado dolo eventual ou culpa consciente, pois se assim fosse, acredito que todos os homicídios na direção de veículo automotor por influência de embriaguez não seriam por dolo eventual, afinal, quem vai assumir o risco de ser condenado a uma pena de 06 a 20 ou 12 a 30 anos, quando no homicídio culposo a pena é de 05 a 08 anos.

Penso que não há uma regra geral ou fórmula matemática para caracterizar o dolo eventual como em muitos casos se vê, pois demandará análise do caso concreto.

Os critérios apresentados pela doutrina alemã, cujos são: a possibilidade; probabilidade, que não é matemática; criação do perigo; risco e conduta arriscada direcionada ao bem jurídico soam como razoável e ainda que não torne a tarefa fácil, mas, pelo menos são critérios mais palpáveis e de melhor visualização, ao invés do critério psicológico do autor, cujo é impenetrável.

REFERÊNCIAS

BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual de direito penal: parte geral e especial. 2. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Juspodvim, 2022.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 21. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015.

COSTA, Klaus Negri. Curso de Legislação Criminal Especial / Klaus Negri Costa, Fábio Roque Araújo e Nestor Távora. São Paulo: Editora Juspodvim, 2022.

GOMES, Márcio Schlee. Dolo: cognição e risco: avanços teóricos. 2. ed. 2. tir. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 12. ed. rev. ampl. e atual. Niterói: Impetus, 2010.  

QUEIROS, Wallace Martins. MORTE CAUSADA POR EMBRIAGUEZ AO VOLANTE: Aplicação do dolo eventual ou culpa consciente. 2017. Monografia. 48 folhas. Direito – Fundação Pedro Leopoldo, Pedro Leopoldo/MG, 2017. 

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