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“In dubio pro societate é um mito no processo penal brasileiro”

Por Marcos de Vasconcellos
O Brasil prende muito, e prende mal. A frase é repetida constantemente para descrever o sistema do país, onde 40% dos mais de 600 mil presos são provisórios. E a nova interpretação do Supremo Tribunal Federal, que permite a prisão antes do trânsito em julgado, pode diminuir o percentual de prisões classificadas como processuais, mas servirá apenas para maquiar as estatísticas e a sensação de impunidade, segundo os advogados Fabrício de Oliveira Campose Conceição Aparecida Giori.
À frente do escritório Oliveira Campos e Giori Advogados, com sede em Vitória, no Espírito Santo, e em Brasília, desde 2007, os dois têm uma visão pouco otimista sobre o momento pelo qual passa a Justiça do país. “O Supremo Tribunal Federal sempre foi considerado o guardião da Constituição. Agora, parece ter se tornado o redator da Constituição”, critica Conceição.
O chamado ativismo judicial, afirmam, é mais um reflexo de como o Direito Penal do Inimigo tem sido seguido no Brasil. É essa doutrina que incute ideias como o in dubio pro societate, segundo a qual, na dúvida, deve-se interpretar a norma a favor da sociedade. Em tese, pode parecer bonito, mas, ao decidir dessa maneira, o juiz estará dizendo que o réu não é parte da sociedade. Ou seja: um inimigo. E Fabrício Campos afirma que nem a Constituição nem qualquer lei fixa esse princípio, apesar de ser aplicado em decisões.
Para Campos, o punitivismo que faz o Legislativo tipificar novos crimes, aprovar penas cada vez maiores e novos agravantes vem da busca dos agentes do Estado por capital político. “É sempre muito confortável dizer que o crime está tomando conta do país, de maneira meramente empírica e sem nenhum tipo de análise mais aprofundada sobre as consequências reais de determinados fatores de violência. As leis penais são o produto vendido para resolver o problema dessa sensação de insegurança”, afirmou, Campos, em entrevista à ConJur.
Apesar de citarem com frequência exemplos de casos de outros países para falar das mazelas nacionais, os criminalistas afirmam que o Direito Comparado é usado de maneira tortuosa no país, importando soluções de problemas diferentes dos nossos.
No histórico de casos do escritório, Fabrício e Conceição têm diversas operações que estamparam as manchetes de jornais — como Monte Líbano,furacão, Romênia e entre irmãos. Agora, acompanham de fora a operação “lava jato”, preocupados com os reflexos dela no resto do Judiciário.
Leia a entrevista:
ConJur – Ao atuar também no Espírito Santo, o que vocês notam que tem acontecido fora do eixo São Paulo-Rio-Brasília?
Fabrício Campos –
Há um protagonismo do Supremo Tribunal Federal e das cortes superiores com relação à interpretação das normas penais. O reflexo é praticamente imediato em todas as esferas. O fenômeno agora em voga é o do cumprimento imediato e obrigatório da pena a partir do julgamento de segundo grau. Isso teve uma repercussão enorme no estado do Espírito Santo, onde, por engano, houve até a decretação de prisão em virtude de uma condenação em segundo grau que já havia prescrito.
ConJur – Estava prescrito e mandaram prender?
Fabrício Campos –
É, mas corrigiram antes de o réu ser preso. O interessante é que houve esse impulso de cumprimento imediato da pena independentemente dos recursos para as instâncias superiores.
Conceição Aparecida Giori –  Só que o tribunal tinha esquecido que a própria corte tinha reduzido a pena.
ConJur –  Vocês avaliam que esse novo posicionamento do Supremo sobre o cumprimento de pena vai se manter por muito tempo?
Fabrício Campos –
 Sempre temos a esperança de que a situação seja revertida. Entretanto, analisando o teor do acórdão do Habeas Corpus 126.292 e os fundamentos que foram empregados, considero difícil haver mudança. Pode até acontecer, mas a forma como os ministros votaram deixa a ideia de que será complicado reverter esse pensamento.
ConJur – O ministro Barroso, ao comentar essa mudança, fala que representa uma melhoria, porque mais de 40% dos presos no Brasil são provisórios, e agora, a partir da condenação em segunda instância, deixarão de ser considerados provisórios. É uma melhoria?
Conceição Aparecida Giori – 
 Na verdade, tornará mais confortável para os julgadores o discurso de que o número excessivo de presos não se deve mais a prisões erradas, mas a decisões confirmadas.
ConJur –  Como uma muleta para dizer que não prendemos mal, mas continuar prendendo mal?
Conceição Aparecida Giori – 
 Sim.
Fabrício Campos – Se eu coloco uma embalagem de um pedaço de filet mignon e escrevo ossobuco na etiqueta, aquilo não vai se tornar ossobuco. O fato de eu transformar esses presos que são “provisórios” em presos “presos” por força de uma alteração jurisprudencial a respeito do início de eficácia do início do cumprimento da pena é trocar uma nomenclatura e dizer que o problema será resolvido. Na verdade, isso tende a criar mais problemas.
ConJur – Vocês acreditam que essa decisão, ao citar exemplos de outros países, mostra um exagero no uso do Direito Comparado?
Fabrício Campos –
Há que se levar a sério a maneira como outros países respondem aos problemas que eles precisam enfrentar. Então não é só dizer que “o código do país X diz isso e o nosso código diz aquilo”. Há uma história por trás das soluções criadas no país X e há uma história detrás das nossas soluções. É um fato que nos Estados Unidos há a eficácia mais rápida possível das penas que são aplicadas, de modo que, salvo exceções, os recursos são processados como a decisão já sendo implementada. Mas é preciso olhar para todo o resto. Estamos vendo um pouco de protagonismo do Supremo, que está fazendo uma reforma de cima para baixo.
É preciso pensar em como os recursos estão sendo manejados, na eficácia dos recursos, no número de recursos… Precisamos pensar como funciona a base do processo penal brasileiro. Na base do processo penal brasileiro não se tem quase nenhuma discussão sobre o que será levado a julgamento. Não há um filtro sobre os fatos que serão conduzidos a julgamento, quais são as provas ou elementos relativos àqueles fatos etc. Essas filtragens sobre a admissibilidade da acusação acabam se perdendo para o juiz receber ou não receber a denúncia. Nos Estados Unidos existe uma parte do processo que é separada com essa finalidade. Aqui o Ministério Público denuncia todo mundo e cada um que se vire no curso do processo. Faz um emaranhado de acusações e isso é alinhado no processo. Mas nós não temos uma etapa processual no Brasil para poder delinear isso.
ConJur –  Não seria a etapa de instrução?
Fabrício Campos –
O novo Código de Processo Penal fala do chamado juiz de garantias, que vai ser um juiz para cuidar de todas as etapas de investigação. Seria algo muito interessante se o modelo que se pretende no novo código fosse um pouco mais sofisticado, ao ponto de permitir etapas preliminares – mais ou menos como acontece no júri – com um outro magistrado, que vai discutir a admissibilidade da acusação e as provas que serão levadas para o julgamento mais à frente.
ConJur –  Não só no júri, mas em qualquer ação penal?
Fabrício Campos –
Em qualquer ação penal; ou pelo menos nas ações penais mais graves. Seria o ideal que tratássemos desse modelo, do qual Ferrajolli fala em Direito e Razão. Na prática, se implementarmos o juiz de garantias, nós podemos ter, em muitas varas, juízes que serão verdadeiros apêndices do Ministério Público. O Ministério Público vai chegar com uma demanda, o juiz vai acolher a demanda do Ministério Público, porque não vai ter a obrigação de fazer a oitiva de outra parte.
ConJur – Os brasileiros têm confundido a figura do juiz com a do Ministério Público?
Fabrício Campos –
Com certeza. O senso comum, lamentavelmente, tem essa ideia de que o juiz criminal é sobretudo uma espécie de investigador. Mas ele é uma figura que precisa ser provocada, que está inerte para poder observar a consistência ou inconsistência de uma acusação ou defesa.
ConJur –  O ativismo tem feito os tribunais legislarem?
Conceição Aparecida Giori –
O juiz não é, sob nenhum aspecto, obrigado a achar solução ou a agir fora dos limites do que a lei diz. Se eu considero a lei injusta, há um meio de consertá-la, que é através do processo legislativo pertinente, mas enquanto ela vige, a obrigação é segui-la.
Fabrício Campos –  E através do mecanismo de controle de constitucionalidade, quando fere a Constituição.
Conceição Aparecida Giori – O Supremo Tribunal Federal sempre foi considerado o guardião da Constituição. Agora parece ter se tornado o redator da Constituição.
ConJur –  O ativismo do STF não é resultado de um Legislativo em crise ou um Executivo que não consegue passar nada?
Conceição Aparecida Giori –
Nesse caso, quem quiser exercer a tarefa de outros poderes deve abdicar da atividade de ministro e candidatar-se. O Supremo pulou a cerca para ocupar aquele espaço deixado pelos outros poderes.
Fabrício Campos –  Existem alguns trabalhos na área sociológica e filosófica demonstrando que, durante o período da ditadura militar, tínhamos um discurso de segurança nacional,. O Estado dizia que a segurança nacional estava ameaçada para ganhar capital político. Com a redemocratização, perde essa fonte de capital político e troca esse tema pelo discurso da segurança pública. Todos estão em pânico, porque todos estão sendo assaltados, a violência está alta demais. O Estado passa a vender esse outro produto: a lei penal.
ConJur – O que ganham os interessados em vender esse produto?
Fabrício Campos – 
 É um produto para que aqueles que querem angariar seu capital político. É sempre muito confortável dizer que o crime está tomando conta do país, de maneira meramente empírica e sem nenhum tipo de análise mais aprofundada sobre as consequências reais de determinados fatores de violência. As leis penais são o produto vendido para resolver o problema dessa sensação de insegurança.
ConJur –  O Brasil faz lei de acordo com o que saiu no jornal ontem?
Fabrício Campos –  
Faz. Alguém aparece dizendo que “temos um problema muito sério relacionado à situação X” e, em minutos, temos um deputado com uma lei sobre a situação X. Mas não precisava de uma lei nova para resolver o problema. È a ideia de fazer uma lei para mandar cumprir uma lei.
ConJur –  O Direito Penal do Inimigo se tornou a regra no país? Passamos a tratar o criminoso como um terrorista, como um ser fora da nossa sociedade?
Fabrício Campos – 
 Isso está aumentando. Essa ideia de que o acusado é o inimigo aparece de forma até bastante sutil na própria doutrina e no discurso dos operadores do Direito, quando, no curso do processo, há acusações absurdas, mas o juiz aceita a denúncia citando o princípio in dubio pro societate. Essa ideia é um mito que existe no processo penal brasileiro e que aparece de lugar nenhum, pois não está na Constituição, não está na lei, não está em nada.
ConJur –  O in dubio pro reo está previsto expressamente?
Fabrício Campos – 
 Está previsto expressamente. Ele parte do princípio da presunção de inocência, da presunção de não culpabilidade da Constituição, no processo penal, em que o ônus da prova é do Ministério Público. Isso mostra como o Direito Penal do Inimigo se instalou, porque quando se diz no processo que vai decidir in dubio pro societate, é porque o acusado não faz parte da sociedade. Ele, naquele momento, foi excluído da sociedade.
ConJur –  Uma dos soluções que são apresentadas de vez em quando é aumentar o prazo para prescrição. A prescrição trabalha em prol da impunidade?
Conceição Aparecida Giori –
Não. Trabalha em favor do direito de qualquer pessoa de apagar algo que tenha sido cometido, mas que não tenha sido investigado a contento ou a tempo. Nós poderíamos tratar da prescrição no Direito Penal como uma segunda chance de a pessoa retornar ao seu estado inicial. A aplicação de uma pena se justifica para a maioria das pessoas para um alívio de consciência e a possibilidade de ressocializar. Deveria ressocializar porque o indivíduo teve tempo suficiente de lidar com os seus próprios assombros e as consequências de seus atos. A prescrição tem a mesma finalidade, porque, quando o indivíduo responde a uma ação penal, sendo culpado ou não, ele tem todas as possibilidades que lhe oferecem para debruçar-se e estar de frente com todos os seus assombros e os seus fantasmas, os seus equívocos; e ela tem certamente a mesma finalidade da pena. Por que a pena é permitida? Porque ressocializa. E por que a prescrição é permitida? Porque também ressocializa.
ConJur –  Não é uma punição ao Estado, por não ter agido no tempo em que deveria?
Conceição Aparecida Giori –
Não. É um limite. Assim como há uma limitação da pena.
Fabrício Campos –  Nos Estados Unidos, por exemplo, há uma discricionariedade a respeito de quem será ou não será processado. Aqui no Brasil existe a obrigatoriedade da ação penal. Para falar que a prescrição aumenta a impunidade, a gente precisaria pensar na impunidade como desvalor. Pode acontecer de que aquela não existência de punição tenha um significado social às vezes mais relevante. Não estamos falando sempre de um genocida que deixou de ser punido. Há outros casos no mundo. Um empresário do setor de mármores e granitos que faz exploração mineral de uma determinada área um mês antes de ter resolvido todos os trâmites burocráticos. Tecnicamente, é crime. E aí prescreve. A prescrição disso tem que significado negativo para a sociedade?
ConJur – O fim da obrigatoriedade da persecução penal seria um jeito de tirar esse caráter pejorativo da prescrição?
Conceição Aparecida Giori –
Entendo que esse resultado virá quando o Estado começar a filtrar o que é o ilícito. Não há essa preocupação.
ConJur –  Como vocês têm enxergado a operação “lava jato”?
Fabrício Campos – 
 A “lava jato” é a expressão maior de como a Justiça criminal no Brasil está trabalhando por sinédoques. Veremos, depois, comportamentos judiciais de diversos atores em processos que não são da “lava jato” espelhados no que ocorre nesta operação. O fato de termos aí um protagonismo midiático cria uma situação bastante perigosa.
ConJur –  Quais são as possíveis repercussões?
Fabrício Campos – 
 O aumento dos casos criminais que terminam com essa barganha. Nos Estados Unidos, o promotor diz para o réu que ele pode ser condenado a tantos anos de cadeia, mas se confessar e aceitar uma pena menor nem entra no processo. E isso se torna 90% daquilo que é o processo. Logo, as pessoas que têm menos chances de se defender são mais vítimas disso. A “lava jato” deverá ter como reflexo o mau uso das delações ou a vulgarização da sistemática de delação num futuro próximo.
ConJur –  A delação permite negociar direitos indisponíveis?
Fabrício Campos – 
 Com certeza. Vejo o processo penal brasileiro como um sistema ainda por se formar, que não se separou totalmente do viés autoritário de 1941, que precisa passar por uma reformulação radical.
ConJur –  Há um uso excessivo da imprensa na “lava jato”?
Fabrício Campos – 
 No Brasil, discute-se pouco a influência da excessiva divulgação pela mídia dos processos e de como isso às vezes soterra o andamento do caso. Enterra-se o causado sob os escombros dos jornais e pouca gente questiona o direito a um julgamento justo diante de uma situação de exposição excessiva.
ConJur –  Há casos em que isso gera até nulidade…
Fabrício Campos – 
 O famosíssimo caso Sheppard, nos Estados Unidos, que foi acusado de ter matado a esposa. O primeiro julgamento dele foi anulado — Sheppard vs Maxwell —  por conta da excessiva publicidade dada ao caso do médico. Ele é condenado à morte no primeiro processo, que acaba sendo anulado. Ele é absolvido no segundo julgamento. A razão foi a que não se pode presumir um processo justo quando todo o julgamento foi superexposto pela mídia.
Fonte: www.conjur.com.br

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