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Infiltração policial – Por Ricardo Antonio Andreucci

Por Ricardo Antonio Andreucci – 15/09/2016
Definindo organização criminosa como “a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional”, a Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013, dispôs, também, sobre a investigação criminal e sobre os meios de obtenção de prova dos delitos a ela relacionados, revogando expressamente a Lei nº 9.034, de 03 de maio de 1995.
Dentre os meios de obtenção de prova para apuração de infrações penais praticadas por organizações criminosas, a citada lei destaca, no art. 3º, VII, a infiltração, por policiais, em atividades de investigação.
A infiltração não é figura nova em nosso ordenamento jurídico, já tendo sido prevista na redação originária do art. 2º, inciso I, da Lei nº 9.034/95, dispositivo esse que recebeu, à época, veto presidencial. O inciso I, vetado pelo Presidente da República, referia-se à “infiltração de agentes da polícia especializada em quadrilhas ou bandos, vedada qualquer coparticipação delituosa, exceção feita ao disposto no art. 288 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, de cuja ação se preexclui, no caso, a antijuridicidade”.
Nas razões do veto, o Presidente da República reportou-se à manifestação do Ministério da Justiça, sustentando que o dispositivo, nos termos em que tinha sido aprovado, contrariava o interesse público, uma vez que permitia que o agente policial, independentemente de autorização do Poder Judiciário, se infiltrasse em quadrilhas ou bandos para a investigação de crime organizado.
Baseava-se o veto, portanto, claramente, na ausência de autorização judicial para a infiltração policial, ressaltando, ainda, a polêmica preexclusão da antijuridicidade do crime cometido pelo agente infiltrado.
Posteriormente, a infiltração foi acrescentada ao art. 2º da Lei nº 9.034/95 pela Lei nº 10.217/2001, “mediante circunstanciada autorização judicial”.
Dispositivo semelhante também já havia sido introduzido na antiga Lei de Entorpecentes (Lei nº 10.409/2002), no art. 33, I, e reproduzido pela atual Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) no art. 53, I.
Na sistemática anterior, o “agente de polícia ou de inteligência” (na redação do art. 2º, V, da Lei nº 9.034/95, com a redação dada pela Lei nº 10.217/01) atuaria com a identidade encoberta, tentando cultivar a confiança dos criminosos. Entretanto, diferentemente do agente provocador, estaria o infiltrado autorizado pelo juiz a participar da organização, ouvido, previamente, o Ministério Público.
Assim, o controle judicial da providência investigatória retiraria da autoridade policial o pleno poder discricionário de investigar, minimizando eventual hipótese de arbitrariedade.
Certamente que a infiltração de agentes, nos moldes em que foi prevista na lei anterior, não os autorizava, por si só, à prática delituosa, o que gerou interessante celeuma na doutrina e jurisprudência pátrias.
Poderia o agente infiltrado, para granjear a confiança dos demais integrantes da organização criminosa e não levantar suspeitas acerca de sua real situação, praticar ou participar de crimes? Nesse caso, seria responsabilizado penalmente pelos crimes que praticou?
Parcela da doutrina pátria, à qual nos filiamos, já sustentava que a resposta a essas indagações estaria no Princípio da Proporcionalidade Constitucional (“Verhaltnismaßigkeitsgrundsatz”, na doutrina alemã), segundo o qual, numa situação real de conflito entre dois princípios constitucionais, deve-se decidir por aquele de maior peso. Assim, entre dois princípios constitucionais aparentemente de igual peso, prevalecerá aquele de maior valor. Nesse sentido, não se justificaria, por exemplo, o sacrifício de uma vida em favor da infiltração do agente.
Assim, para que efetivamente ocorresse a isenção de responsabilidade penal do agente infiltrado, deveriam concorrer algumas exigências: a) a atuação do agente infiltrado precisaria ser judicialmente autorizada; b) a atuação do agente infiltrado que cometesse a infração penal deveria ser consequência necessária e indispensável para o desenvolvimento da investigação, além de ser proporcional à finalidade perseguida, de modo a evitar ou coibir abusos ou excessos; c) o agente infiltrado não poderia induzir ou instigar os membros da organização criminosa a cometer o crime.
Na Lei nº 12.850/13, entretanto, a infiltração recebeu tratamento um pouco diferente, estando restrita a “agentes de polícia” (e não mais “de polícia ou de inteligência” da redação anterior), mantendo-se, entretanto, a necessidade de “circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial”.
Na nova sistemática, a infiltração poderá ser representada pelo Delegado de Polícia ou requerida pelo MP, quando houver indícios de infração penal praticada por organização criminosa e quando a prova não puder ser produzida por outros meios disponíveis. A infiltração será autorizada pelo prazo inicial de até 6 (seis) meses, podendo ser renovada, desde que comprovada sua necessidade, apresentando o infiltrado, ou a autoridade a quem estiver subordinado, relatório circunstanciado de tudo o que for apurado.
Explicitando ainda mais a operacionalização da infiltração, precioso instrumento de combate ao crime organizado, a lei exige que o requerimento do MP ou a representação do Delegado de Polícia contenham, dentre outros elementos, “o alcance das tarefas dos agentes”, a fim de que possa o juiz, ao autorizar a operação, estabelecer os “seus limites”, como expressamente dispõe a parte final do art. 10.
Prevê expressamente a nova lei, ainda, a obrigatoriedade de o agente infiltrado guardar, em sua atuação, “a devida proporcionalidade com a finalidade da investigação”, respondendo pelos excessos praticados.
Nesse aspecto, sempre sustentamos (vide nosso “Legislação Penal Especial”, 11ª edição, Saraiva, 2016), ainda sob a égide da Lei nº 9.034/95, que a melhor solução seria considerar-se a eventual conduta criminosa praticada pelo agente infiltrado (muitas vezes necessária aos propósitos da infiltração e visando obter a confiança dos demais integrantes da organização criminosa) acobertada por uma causa de preexclusão da antijuridicidade consistente na infiltração propriamente dita, autorizada judicialmente, atendido o Princípio da Proporcionalidade Constitucional.
Curioso notar, entretanto, que a nova lei, a par de se alinhar ao Princípio da Proporcionalidade Constitucional no “caput” do art. 13, estabelece, no parágrafo único, que “não é punível, no âmbito da infiltração, a prática de crime pelo agente infiltrado no curso da investigação, quando inexigível conduta diversa”, estabelecendo expressamente causa excludente de culpabilidade, consistente na inexigibilidade de conduta diversa (conforme o Direito), a acobertar eventuais ilicitudes praticadas pelo infiltrado, isentando-o de responsabilidade.
Essa não nos pareceu a melhor solução, até porque coloca o agente infiltrado em delicadíssima posição de ter que avaliar, muitas vezes em situação concreta de perigo durante o desenrolar da infiltração, a inexigibilidade de conduta diversa em sua atuação, a qual será posteriormente reavaliada e até mesmo rechaçada pelas autoridades, acarretando-lhe a eventual responsabilização pelos “excessos praticados”. Melhor seria tivesse a Lei nº 12.850/13 ousado mais e erigido a infiltração propriamente dita em causa de preexclusão de antijuridicidade.
Vale citar, ainda, que o art. 14 do novo diploma previu expressamente alguns direitos do agente infiltrado, o qual poderá recusar ou fazer cessar a atuação infiltrada, ter a sua identidade alterada, ter seu nome, sua qualificação, sua imagem, sua voz e demais informações pessoais preservadas durante a investigação e o processo criminal, além de não ter sua identidade revelada, não ser fotografado ou filmado pelos meios de comunicação, sem sua prévia autorização por escrito.
Por fim, forçoso concluir que a infiltração, nos moldes em que foi prevista, tem suas regras razoavelmente definidas, conferindo ao policial infiltrado garantias necessárias ao adequado desempenho de sua missão, e à sociedade a certeza de saber que toda a operação está sendo minuciosamente acompanhada e fiscalizada pelo Poder Judiciário e pelo MP.
Não obstante as críticas que a lei vem recebendo e mesmo que se entenda ainda serem insuficientes à contenção da criminalidade organizada os mecanismos por ela disciplinados, é inegável que houve notável avanço legislativo no trato da matéria, dotando-se a polícia, o MP e o Poder Judiciário de preciosos mecanismos de combate às organizações criminosas.
Ricardo Antonio Andreucci é Procurador de Justiça Criminal do Ministério Público de São Paulo. Doutor e Mestre em Direito. Pós-doutor pela Universidade Federal de Messina – Itália. Coordenador pedagógico do COMPLEXO DE ENSINO ANDREUCCI. Professor universitário de cursos preparatórios para ingresso nas Carreiras Jurídicas e OAB. Autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva. Articulista e palestrante.

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