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Inquietações nada filosóficas sobre o Projeto de Lei n. 1904/2024 – Criminalização do aborto

Marcelo Bareato*

Quando parece que já vimos de tudo um pouco, o Congresso parece nos surpreender e mostrar que nada é tão ruim, que não possa piorar. É o que acontece atualmente com a discussão sobre a criminalização do aborto.

Com essa primeira ideia, é importante destacar que os debates sobre a criminalização, nosso tema de hoje, remontam aos estudos preliminares do Código Penal e, como tal, devem acompanhar o dinamismo do direito, para que possamos ter uma legislação que esteja à altura das necessidades de cada cidadão, no seu momento histórico.

Não é por menos que a discussão sobre o aborto envolve acalorados debates de cunho moral, ético, social e religioso, mas a verdade escondida por detrás dos contenda é que, ainda buscamos, mesmo em 2024, disciplinar as condutas sexuais e reprodutivas das mulheres, sem nunca abandonar a famosa fórmula da “moral e bons costumes”, que permeia uma sociedade extremamente machista e castradora.

Tal qual o Código Penal de 1890 (arts. 300, 301 e 302), e todos aqueles que se debruçaram a comenta-lo, como por exemplo Bento Antônio de Faria (Annotações Theorico-Praticas), Oscar de Macedo Soares (Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil), João Vieira de Araújo (autor do Projeto de codificação de 1893 e do Código Penal Interpretado de 1901), Galdino Siqueira (Direito Penal Brazileiro), Nelson Hungria (Compendio de Direito Penal), o crime de aborto não costumava ser do interesse da polícia ou do Poder Judiciário, caso ficasse entre quatro paredes ou não saísse da residência em que foi praticado.

Para ganhar atenção, era necessário que a mulher passasse mal ou morresse e tal condição fosse levada a público, por exemplo, que ela fosse encaminhada a um hospital, condições que forçavam o Estado a investigar o ocorrido para salvaguardar a honra do varão e de sua família. Se fosse cometido dentro de casa, deveria ser resolvido em segredo, pois o que de fato importava, como já dissemos, não era a mulher ou o feto, como fica evidente nas investigações e processos da época (que podem ser acessados via biblioteca nacional), os quais evidenciam nossa escrita, assim como as pesquisas nos autores que escreviam sobre o tema e deixavam subentender que a punição era uma preocupação mais teórica do que prática.

Nesse passo, Hungria citava o médico francês Klotz-Forest que na obra De L’avortement: est-ce um crime?, Paris, Éd. Victoria, 1919, era contra a criminalização do aborto sob o fundamento de que a mulher deveria ter o direito de dispor livremente de seu corpo, de recusar a maternidade, além de considerar o feto como parte das entranhas da gestante. Para o médico francês, dois argumentos eram fundamentais para embasar seu pensamento: a impotência da pena para coibir a frequência com que esses crimes são cometidos e o fato de que apenas as mulheres menos abastadas sofrem os rigores da lei penal quando se trata de crime de aborto (1937, p. 274).

Com o Código Penal de 1940 (arts. 124, 125, 126, 127 e 128) e vigente até os dias atuais, aparentemente a preocupação deslocou-se para além da moral e bons costumes, tendendo a preservação da vida da gestante e do feto, quando, então, a objetividade jurídica passou a ser a vida humana intrauterina, independente da expulsão do feto. Para a consumação do crime, tornou-se suficiente a morte do feto, que deve ocorrer por qualquer forma de execução.

Inserido no rol dos crimes dolosos contra a vida, trouxe em seu artigo 128, as causas excludentes de ilicitude: I – quando não há outro meio para salvar a vida da gestante; II – quando a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Posteriormente, com a conclusão do julgamento da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 54, em 2012, o STF garantiu, também, o direito ao abortamento de feto anencéfalo, ficando vencidos, naquele momento, os ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso (a composição da Corte para o julgamento era, além dos ministros citados, Marco Aurélio – relator, Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ayres Britto, Gilmar Mendes e Celso de Mello).   

Desta feita, nos dias atuais, integramos, juntamente com Afeganistão, Angola, Camboja, Chile, Colômbia, Costa do Marfim, Filipinas, Guatemala, Haiti, Honduras, Iêmen, Indonésia, Irã, Irlanda, Laos, Líbano, Líbia, Mauritânia, México, Moçambique, Nicarágua, Nigéria, Paraguai, Quênia, República Dominicana, Síria, Sri Lanka, Sudão, Tanzânia, Venezuela e Zaire, o rol dos países que ainda punem o crime de aborto, excepcionado algumas figuras, das quais se permitem a alegação de excludentes da ilicitude, obrigando que o processo seja levado a efeito para constatação do delito e, ao final, reconhecimento de que o agente se valeu de uma das figuras expressas no artigo 23 do Código Penal – estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de um direito.

A contrário sensu, a África do Sul, Albânia, Austrália, Áustria, Bangladesh, Bélgica, Bulgária, Canadá, China, Cingapura, Coréia do Norte, Cuba, Dinamarca, Eslováquia, Estados Unidos, Finlândia, França, Holanda, Hungria, Índia, Itália, Iugoslávia, Japão, Noruega, República Tcheca, Romênia, Rússia, Taiwan, Tunísia, Turquia, Vietnã e Zâmbia, perfazem o rol dos países que permitem a prática do aborto.  

Com os esclarecimentos preliminares, ao permitir que a gestante aborte no caso de estupro, a ideia é garantir que a gravidez indesejada, derivada de ato sexual forçado, não traumatize ainda mais a vítima, mas, cabe desde logo, a indicação de que o aborto nestes casos não é uma obrigação; caso aquela mulher se sinta em condições de levar adiante a gestação e criar o filho que adveio da situação traumática, poderá fazê-lo sem qualquer constrangimento.

Contudo, fixemos nosso olhar na mulher que sofreu tamanha violência e foi obrigada a gestar. Com o nascimento da criança indesejada, a convivência poderá desencadear um sofrimento ainda maior, ao ter que olhar e dividir seus dias com o fruto do ato sexual forçado, relembrando, a todo instante, o ocorrido. Por sua vez, nestas condições, que tipo de infância ou relacionamento teria o filho com essa mãe, ao saber que nunca foi estimado a ponto de pertencer àquele lugar e, em que cidadão se transformaria depois de experimentar tamanha exclusão? Essas são perguntas relevantes e que norteiam diversas leis já editadas, todas com o fito de salvaguardar as mulheres e, talvez, proporcioná-las uma vida mais digna, como no caso da Lei Maria da Penha (11.340/2006), Carolina Dieckmann (12.737/2012), etc.

Não por menos, a decisão pelo abortamento, no caso de violência sexual, é um direito que demanda decisão a ser tomada pela vítima da violência após profunda reflexão sobre o ocorrido e as perspectivas futuras, o que nos faz indicar que o correto seria fornecer este serviço pelo sistema público de saúde, após acompanhamento da gestante por equipe multidisciplinar (médicos, psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais), como ocorre em países onde a prática é lícita, por período não inferior à dois ou três meses, quando então, poderíamos dissuadi-la da decisão anterior auxiliando na gestação e parto, ou promover o abortamento minimizando suas consequências.

De toda sorte, o Código Penal, acompanhando a legislação, vem sendo atualizado no sentido de não permitir que a vítima de violência sexual seja revitimizada, por exemplo, ou que seja possível ao homicida que comete crime contra mulher, alegar como motivação qualquer elemento que desqualifique a vítima ou indique legitima defesa da honra, como ocorre com a Lei n.º 14.321/2022 e a decisão unânime do STF, que declarou inconstitucional o uso da tese da legítima defesa da honra em crimes de feminicídio ou de agressão contra mulheres – ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 779, em agosto de 2023. 

  É interessante observar que esse amadurecimento é fruto de grandes esforços e minúsculas conquistas obtidas pelas mulheres, indicando que a cada pequeno passo dado em direção a proteção dos direitos do gênero feminino em condição de vulnerabilidade, longos quilômetros percorremos no sentido de retirar-lhes o espaço de fala e vida com dignidade, como se a era do patriarcado nos assombrasse todos os dias, no apagar das luzes.

A evidência está na discussão sobre o novo Projeto de Lei n.º 1904/2024, que tramita pelo Congresso Nacional, fruto das péssimas escolhas que fazemos ao eleger representantes sem qualquer capacidade para legislar e da mediocridade daqueles que são alçados a tamanho direito, como resta claro, ao menos neste caso, quando se pretende criminalizar o aborto, agora elevando-o a categoria de homicídio.

Este famigerado projeto propõe a equiparação do aborto realizado após 22 semanas de gestação, ao crime de homicídio simples, mesmo em casos de gravidez resultante de estupro, o que obrigaria a profundas reformas no Código Penal, na legislação extravagante e na Carta Magna, forçando a revisão de diversos mecanismos de proteção para pior, além de possibilitar o encarceramento de crianças e adolescentes (em um primeiro plano), até que estudos maiores fossem travados para readequação.

Trata-se de enorme retrocesso, ao prescrever uma medida desproporcional, misógina e racista, que afronta normas internacionais de direitos humanos, nossa própria Constituição Federal e, se levado a efeito, terá como ponto final o tratamento dispensado aqueles que cometem crime de homicídio simples ou a obrigação de gerar e conviver com o filho de seu estuprador; sem adentrarmos as demais possibilidades relativas à pensão alimentícia e ao direito de visita. Em síntese, a mulher estuprada poderá ter pena maior (homicídio simples – artigo 121: pena de 6 a 20 anos de reclusão), que a aplicada ao estuprador (estupro – artigo 213: pena de 6 a 10 anos de reclusão para vítimas adultas e de 8 a 12 anos para vítimas menores de 14 anos).

Essa aberração, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL/RJ) e da bancada evangélica, aniquila direitos conquistados a duras penas e, por obvio, não discutimos aqui qualquer forma de religião, mas apenas direitos e garantias fundamentais amparados internacionalmente como forma de impedir o retrocesso que, neste caso, nos devolveria a 1890 e faria com que o médico francês Klotz-Forest revirasse no túmulo ao imaginar tamanha ignorância e desconhecimento das agruras do ser humano e sua eterna luta pelo reconhecimento enquanto pessoa dotada de direitos e proteção.

Oxalá, meu Caro Leitor, vale a pena registrar nossos votos para que possamos, em algum momento dessa conturbada página da recente história brasileira, recobrar nossa inquietude sobre os caminhos que aqueles aos quais concedemos a honra de nos representar na feitura de leis e escolher os caminhos que nossos descendentes vão trilhar no futuro, para debruçar nosso precioso tempo nos estudos sobre a estrada que recebemos daqueles que nos antecederam, por meio de tanta luta e derramamento de sangue, filosofando sobre o que queremos ser quando crescer.   

*O autor é Advogado Criminalista com ênfase no Direito Penal Econômico, doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, Vice Presidente da ABRACRIM/GO – Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Secção Goiânia/GO, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, membro da Coordenação de Política Penitenciária  da OAB/Nacional gestão (2022/2025), Coordenador da subcomissão de Direitos Humanos para o Sistema Prisional  da OAB/Goiás (gestão 2022/2024) e Coordenador da Comissão Interestadual de Acompanhamento da Saúde no Sistema Prisional junto ao Conselho Municipal de Saúde de Aparecida de Goiânia/GO, Membro do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura/GO, Membro do FOCCO – Fórum Permanente de Combate à Corrupção do Estado de Goiás, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).

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