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Interpretação conforme em declaração positiva de constitucionalidade?

Por Lenio Luiz Streck
Na medida em que esta coluna faz parte do Observatório de Jurisdição Constitucional, parece indispensável insistir na discussão acerca das possibilidades de o Supremo Tribunal Federal, em sede de declaração positiva de constitucionalidade (Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC), lançar mão de uma sentença de rejeição (negativa) parcial qualitativa (interpretação conforme a Constituição – ICC). O papel do Observatório é construir constrangimentos epistemológicos, tanto internos (no que tange aos debates doutrina-doutrina) quanto externos (em relação às decisões consideradas equivocadas emanadas dos respectivos órgãos da administração judicial). É o que aqui já analisei como Fator Julia Roberts.
Com efeito, em artigo aqui na ConJur, sustentei a impossibilidade lógica de o STF aplicar a ICC no âmbito de uma ADC. Alguém poderá até argumentar que, em tese, uma ICC pode ser compatível em casos de declaração positiva (falo de declaração positiva porque no restante do mundo não existe ação similar à ADC). O que disse a respeito é que, no caso concreto das ADCs 43 e 44 — e Direito é sempre applicatio —, tal decisão não se mostra sustentável.
Expliquei no artigo que ADC e ADI são consideradas, na curta tradição brasileira, ações com sinais trocados. Pela Lei 9.868, uma ADI julgada improcedente se transforma em ADC, e uma ADC improcedente se transforma em ADI. Também expliquei que a ICC surgiu para “salvar” leis. Por isso é denominada de decisão de rejeição parcial qualitativa. Não é de acolhimento parcial. É de rejeição! Ela não é uma técnica pela qual se faz uma decisão de acolhimento parcial qualitativa. E isso faz a diferença. Se o Supremo vem confundindo os dois institutos, é um problema que não deve atrapalhar a análise correta que deve ser feita acerca do que é isto — a ICC.
Sigo. Lê-se no dispositivo do voto que pode ser considerado como condutor-da-maioria, que a ação a cautelar foi
julgada parcialmente procedente para dar interpretação conforme que afasta aquela conferida pelos autores nas iniciais dos presentes feitos segundo à qual referida norma impediria o início da execução da pena tão logo esgotadas as instâncias ordinárias, assentando que é coerente com a Constituição o principiar de execução criminal quando houver condenação confirmada em segundo grau, salvo atribuição expressa de efeito suspensivo ao recurso cabível.
Veja-se: se em sede de ADC se busca a constitucionalidade de uma lei e o STF diz que ação (cautelar) é procedente para dizer que essa lei (no caso, o artigo 283 do CPP) é, sim, constitucional… só que no sentido que afaste a interpretação que os autores exatamente queriam que o STF afirmasse, então temos uma contradição. Queria-se que o STF dissesse que o artigo 283 é condizente com a CF, isto é, mutatis mutandis, queria-se que o STF confirmasse que essa norma impede o início da execução da pena tão logo esgotadas as instâncias ordinárias. E não se pediu que o STF dissesse que permite. São os limites do pedido. E da resposta. Sei que o STF pode decidir de oficio, mas desse modo?
E por quê? Porque o artigo 283 diz que ninguém poderá ser preso senão em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado. A pergunta é: como explicar que os autores foram buscar uma afirmação de um dispositivo e, em resposta, o STF afirmar o dispositivo dizendo, entretanto, que o dispositivo diz o contrário do que dizem os autores, sem, todavia, inquiná-lo de inconstitucional? É esse o ponto.
O que faltou? Faltou o STF dizer quais eram as interpretações desconformescom a CF. O STF simplesmente disse que o artigo 283 não impede o início da execução da pena tão logo esgotadas as instâncias ordinárias. Mas para dizer isso deveria inquinar de inconstitucional a norma positiva. Mesmo que, ad argumentandum tantum, pudéssemos aceitar que uma ICC fosse possível em sede de ADC (o STF até então não havia cogitado disso), o STF teria que dizer, na especificidade, que o artigo 283 fere a Constituição em algum aspecto. Mas em qual aspecto o artigo 283 não impede o início da execução provisória?É isso que o STF não disse. E por uma razão simples: é impossível fatiar os sentidos do artigo 283. Ou ele permite execução de pena antes do trânsito em julgado (já, portanto, a partir do segundo grau) ou não permite. Tertius non datur. E, para registrar: não se trata de discutir a possibilidade de prisões cautelares, é óbvio. Isso é acaciano. E tampouco se trata de proibir que alguém, a partir do segundo grau, já comece o cumprimento da pena. Basta que estejam presentes os motivos ensejadores. Por exemplo, alguém que responde o processo preso e é condenado…
Rui Medeiros, no seu livro A decisão de inconstitucionalidade, deixa claro uma questão que aqui deve ser levada em conta: ainda que o interprete corrija a letra da lei — recusando, por exemplo, a aplicação da lei a hipóteses claramente abrangidas pelo seu sentido literal —, a função corretiva que o cânone da ICC pode desempenhar não deve servir para corrigir os “erros jurídico-políticos” do legislador ou para contrariar “o teor e o sentido da lei”. Perfeita a análise de Medeiros. E ele diz mais: a interpretação corretiva da lei em conformidade com a Constituição não se traduz, portanto, numa revisão da lei em conformidade com a lei constitucional. E, mais enfaticamente: a correção da lei significa apenas correção da letra da lei, não podendo ser realizada quando os sentidos literais correspondem a intenção do legislador ou quando o resultado que se pretende alcançar não se harmonize com a teleologia imanente à lei (grifos meus). Parece evidente que a ICC tem limites.
Sei — e sou insuspeito porque tenho escrito muito sobre isso — que contemporaneamente não se deve invocar a vontade do legislador ou do constituinte. De todo modo, os anais do congresso constituinte apontam (há vários textos sobre isso) para o sentido de que a prisão, efetivamente, só poderia vir a ser feita depois do trânsito em julgado, isto é, depois de esgotados todos os recursos (é a soma das garantias de não ser preso definitivamente senão por ordem judicial com a de que haja sentença com transito em julgado).
Já com relação à formatação do artigo 283, tudo fica mais claro ainda. Com efeito, as informações do parlamento mostram que a alteração do artigo 283 (e outros artigos) pela Lei 12403/2011 teve início no PL 4.208/2001 (proposto por FHC) e teve elaboração proposta por uma comissão de juristas nomeados pela Portaria 61/2000.
A mensagem 214/2001 que traz o PL diz que entre os diversos debates que originaram a proposta (PL), o ponto alto foi a III Jornada Brasileira de Direito Processual Penal (Brasília, ago/2000). Na alínea ‘d’ da mensagem estão destacadas as principais propostas do PL, entre elas: “impossibilidade de, antes da sentença condenatória transitada em julgado, haver prisão que não seja de natureza cautelar”. Não sou eu quem está dizendo. Mas tem mais: na mesma mensagem do presidente FHC, lê-se: Com isso revogam-se as disposições que permitiam a prisão em decorrência de decisão de pronuncia ou de sentença condenatória, objeto de crítica da doutrina porque representavam antecipação da pena, ofendendo o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º., LVII da Constituição Federal). A justificativa do Poder Executivo à época (2001) para o projeto também é clara[1]:
“Finalmente é necessário acentuar que a revogação, estabelecida no projeto, dos artigos 393, 594, 595 e dos parágrafos do artigo 408, todos do Código de Processo Penal, tem como propósito definir que toda prisão, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, terá sempre caráter cautelar. A denominada execução antecipada não se concilia com os princípios do Estado constitucional e democrático de direito[2].
Pronto. Depois de se ler o que está acima, indago: será absurdo dizer que trânsito em julgado e presunção da inocência são conceitos jurídicos e perfeitamente compreendidos pela comunidade jurídica? E que o Poder Executivo foi taxativo acerca do que queria ao remeter o projeto? Quase uma “lei interpretativa”, pois.
Portanto, dá para duvidar da sinonímia que se forma? Tudo está a indicar que existem elementos objetivos que demonstram o modo como esse fenômeno se formou, isto é, o modo como foram positivados os dispositivos que tratam da prisão decorrente de decisão transitada em julgado. Basta ver, nesse mesmo diapasão, que a própria LEP explicita a diferença entre condenado definitivo, e não definitivo. O ministro Toffoli deixou isso bem claro em seu voto. Aliás, antes da redação dada ao artigo 283 pela lei de 2011, o ministro Gilmar Mendes, em 2009, no julgamento do HC 84.078, fez uma verdadeira ode a vedação de cumprimento antecipado da pena baseado na dignidade da pessoa humana e na sua incompatibilidade constitucional com a presunção de não culpabilidade.
Claro que os ministros do STF podem mudar de ideia. O registro é feito, aqui, tão-somente para estabelecer no mínimo uma questão: a de que os defensores da constitucionalidade do artigo 283 CPP não estão trabalhando com ficções. E que, portanto, para dizer que esse dispositivo não é constitucional, a suprema corte deve(ria) dizer que ele é inconstitucional. Ou apontar em qual sentido ele seria contrário a Constituição. E que use a técnica correta e adequada à espécie. Que não parece ser a de fazer uma ICC em sede de ADC.
Não quero voltar aos velhos cânones interpretativos para invocar a vontade do legislador. Isso seria lançar mão de argumento ad hoc. Também não sou originalista. E bem sei que “norma” não tem vontade. Ela só tem “vontade” se for uma senhora (de nome Norma) que aceita convite para jantar. Bem sei que o espírito do legislador é uma ficção. E que não dá invocar “espíritos”. Sei de tudo isso. Mas sei também que essas ficções servem para afastar narrativas que negam a história institucional do instituto “presunção da inocência” no modelo constitucional e legal brasileiro. O que estou fazendo é apenas revolvendo o chão linguístico em que está assentada a tradição, para deixar que o fenômeno apareça como ele, de fato, é.
A violação da garantia da não surpresa?
Ainda uma questão que não foi levantada pela doutrina: no uso da ICC em sede de ADC, não teria havido a violação do artigo 10 do CPC, isto é, não teria sido violada a garantia da não surpresa? Também aqui poderemos ter problemas em relação à decisão. Na medida em que o STF até então jamais havia feito ICC em sede de ADC, os autores — falo pelo menos da ADC 44 — não foram surpreendidos com a nova posição do STF, que, desse modo, violou aquilo que parece ter ficado patente no RE 655.265/DF, em que o mesmo ministro Fachin falou em stare decisis exsurgente do novo CPC? Embora discutível a temática — e aqui utilizo o argumento a partir do próprio voto do ministro —, o STF poderia julgar desse modo sem explicitar o modo como passaria a fazer a partir desse momento? Afinal, havia uma tradição acerca de como se decidia em sede de ADC. Ou seja, o STF não estava “vinculado” a seu próprio modo de decidir? Não é razoável afirmar, assim, que os autores confiavam que o STF julgaria uma ação positiva de constitucionalidade a partir das regras do jogo estabelecidas até então? Se a corte decidiu alterar o “modelo de decisão”, não deveria obedecer ao artigo 10 do CPC? O STF não deveria explicar que, no caso, estava estabelecendo algo diferente do que vinha fazendo, dando oportunidade, nos termos do aludido dispositivo, de os autores se pronunciarem?
Política e moral: os predadores do Direito
Por fim, sempre se poderá dizer que a interpretação do STF foi política e que o STF fixa por último o sentido da Constituição e que, portanto, isso é assim mesmo. Pode-se dizer que o STF atendeu aos anseios da população (embora não existam dados empíricos que apontem para isso) e tenha agradado ao Poder Judiciário, à Polícia Federal e ao Ministério Público. Ou que a culpa (ou o mérito) foi da ponderação, da mutação ou motivo teleológico qualquer. Também sei disso. Mas, de minha parte, permito-me ser ortodoxo e dizer que política e moral não são “direito” (aliás, no “caso Demóstenes”, disse isso em 2012 aqui na ConJur). Direito se abebera na política e na moral. Mas depois nem a moral nem a política devem corrigir o direito. Há que se ter um grau de ortodoxia, aqui.
Numa palavra final, permito-me invocar uma lição do então professor Luis Roberto Barroso (hoje ministro do STF), no seu Curso de Direito Constitucional[3]: o STF não pode mais do que os limites semânticos do seu texto (grifei).
Pronto. Limites semânticos. Eis um bom elemento de caráter objetivo (sei que não é o único — e também sobre isso já muito escrevi) que estabelece a diferença entre um leão e um tigre. Como naquele episódio em que já relatei por aqui, em que, estando na Itália, uma professora, contestando minha posição sobre interpretação (eu defendia a frase de Gadamer de que, se queres dizer algo sobre um texto, deixe que o texto te diga algo), disse-me: “Ambos vemos um barco, mas cada um vê um barco diferente”. Ao que lhe disse: “Alvíssaras. Ambos vemos um barco. E não um avião ou um automóvel. Já começamos bem…”!
Diante de todo o exposto, podemos até dar por encerrada a discussão acerca da permissão de execução da sentença condenatória. Encerrada no plano político e/ou moral. Mas permito-me dizer: no plano do Direito, a discussão está longe de ter um fim. Porque Direito não é moral. Direito não é política. Direito se abebera na política e na moral. Mas depois nem a moral e nem a política devem corrigir o Direito. A tarefa da Teoria do Direito é construir barreiras contra a predação da autonomia conquistada pelo Direito nisso que chamamos de “Direito pós-bélico”.
No Estado Constitucional deve ser assim.


[1] Veja-se o belo texto de Pierpaolo Botini sobre o tema.
[2] Para ser mais fiel ainda, informo que a entrada do projeto foi em 13/12/2001, sendo que, entre comissões e retiradas de pauta, ida e volta do Senado, veio a ser aprovado em 7/4/2011.
[3] Ed. Saraiva, 2001, pp. 128-129.
Fonte: http://www.conjur.com.br/

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