Investigação criminal não pode selar compromisso com a verdade
Por Leonardo Marcondes Machado
Para que serve a investigação criminal e o processo penal? Qual a finalidade do sistema de justiça criminal? Os questionamentos são abertos; logo, as respostas deveriam ser as mais variadas possíveis. E, de fato, são mesmo plurais. Contudo, uma permanência é sempre possível observar na maior parte das argumentações em torno desse tema: a busca pela verdade.
Muitos ainda estão à procura de “a verdade”. Operam com o sistema jurídico de instrução – investigação e processo penal – em um cenário místico, supondo poderes sobrenaturais para a reconstrução do fato ocorrido na sua plenitude e com chancela de “absoluta certeza”. Esquecem, no entanto, que o objeto inicial é uma notícia crime; ou seja: algo que se diz a respeito de um suposto crime. Frise-se: nem da certeza de um crime se parte.
Segundo Maurício Stegemann Dieter, “destaca-se aqui a fome investigativa do estilo inquisitorial. O inquisidor, a partir de meras e infundadas suspeitas, tem o poder de desencadear uma insaciável busca pela verdade oculta, utilizando-se de um vasto repertório para a devassa da intimidade, lugar do segredo a ser desvelado”. E, assim, “seu apetite o faz trabalhar em um marco paranóide”.[1]
A jurisprudência e os manuais, em geral, insistem numa pretensa distinção entre “verdade real, material ou substancial” e “verdade processual, formal ou procedimental”. Sustentam, de maneira irresponsável, que ao processo civil bastaria uma verdade produzida nos limites do procedimento em contraditório enquanto que ao processo penal incumbiria a descoberta da verdade dos fatos. E finalizam a “explicação” – que nada explica, apenas confunde! – com a tese de que na seara criminal a gravidade da respectiva sanção, centrada na privação de liberdade, exigiria a produção da “realidade absoluta dos fatos” – seja lá o que isso signifique.
Ocorre que o sujeito não percebe ou não quer perceber que a investigação criminal, assim como o processo penal, não pode selar compromisso com “a verdade”. Não é este o seu objetivo. Mesmo porque “‘A’ verdade, no singular, será sempre incompleta, necessariamente contingente e dependente de referenciais (tempo, espaço e lugar)”.[2]
Explica o professor Jacinto Coutinho que, com “o predomínio da Filosofia da Linguagem sobre a Filosofia da Consciência”, é de se “admitir – em definitivo – a impossibilidade de, a partir de tal relação (sujeito-objeto) chegar-se em uma verdade Toda (e única) e sim tão-só em uma parte dela. A parte (daí a parcialidade que move dita relação, sempre), todavia, não é o Todo e, portanto, é de outra coisa que se trata”.[3]
De fato, o discurso de verdade real, apesar de manifestamente falacioso, foi e continua sendo utilizado na tentativa de legitimar abusos e justificar arbitrariedades. Alinha-se perfeitamente com uma lógica eficientista e cruel do tipo “os fins justificam os meios”. Não seria demais lembrar que a tortura, enquanto meio para a obtenção da confissão, sempre esteve ligada à noção de busca da verdade. Outras tantas ilegalidades – ainda hoje – são praticadas em seu nome.
Em que pese a firme resistência teórica que tem sido proposta por importantes estudiosos do sistema penal,[4] o mito da “verdade real” ainda sobrevive e informa (ou melhor: deforma!) a maioria das instruções criminais.
É necessário, contudo, superar a ambição inquisitorial de busca da verdade. Imperioso reconhecer, com Salah Hassan Khaled Junior,[5] que “a verdade será na melhor das hipóteses contingencial”. E deve ser tida como “uma verdade analogicamente produzida sob a forma narrativa, o que conforma um critério de verdade enquanto (re)produção analógica do passado e não enquanto correspondência – absoluta ou relativa – em relação a um evento que pertence a um tempo escoado.”
Com efeito, a impossibilidade de certeza na avaliação dos fatos não pode ser (nunca) desprezada! Pelo contrário, indispensável que algumas coisas ainda sejam ditas e assimiladas pelos diversos operadores do sistema…
i) o reconhecimento da óbvia parcialidade no processo de conhecimento humano deve nos conduzir à observância, cada vez maior, da cláusula dodue processo of law em toda a instrução criminal (inclusive na etapa preliminar), com irrestrito zelo pelos direitos e garantias fundamentais. Se conhecer o todo é algo do impossível, as regras do jogo são mais do que indispensáveis!
ii) Nada é tão óbvio que dispense a instrução probatória. Afinal de contas, a justiça criminal não pode ser vista como uma atividade clarividente. Até mesmo aquelas “certezas”, que parecem óbvias, necessitam de apuração prévia e posterior submissão ao contraditório pleno e ampla defesa. Isso inclui o auto de prisão em flagrante. É preciso colocar as coisas em seus devidos lugares. A prisão em flagrante é apenas uma espécie de notícia crime. Logo não afasta a necessidade de investigação criminal tampouco de processo penal. Sequer detém a capacidade de inverter a presunção de inocência em culpa. Imaginar o contrário significaria atuar num marco autoritário e paranoide — aquele tipo de coisa que não combina com a noção mais singela de Estado Democrático de Direito.
Fonte: www.conjur.com.br