Skip links

JUSTIÇA PODE AFASTAR POLICIAL CIVIL DO TRABALHO E TAMBÉM SUSPENDER SEU SALÁRIO?

As medidas cautelares possuem atributos intrínsecos que merecem ser destacados, principalmente no que diz respeito à sua necessidade de tutelar a ação penal e/ou a investigação, consoante dispõe o art. 282, inciso I, do Código de Processo Penal (CPP).

A partir disso, a doutrina ainda dispõe que elas possuem características próprias, consoante destaca o professor Renato Brasileiro, quais sejam: a) acessoriedade; b) preventividade; c) instrumentalidade hipotética e qualificada; d) provisoriedade; e) revogabilidade; f) não definitividade; g) referibilidade; h) jurisdicionalidade; e, i) sumariedade. [1]

Partindo desses pressupostos, torna-se notório que a medida cautelar, antes de ser deferida pela justiça, tem que observar tudo isso, além de claro respeitar o princípio da legalidade.

Isso porque, apesar das cautelares diversas da prisão serem mais brandas que a pena corporal, de certo modo, aquelas são também uma forma de restrição de direitos, motivo pelo qual o legislador tratou delas em rol taxativo no art. 319 do CPP, o qual deve ser estritamente respeitado pelo Poder Judiciário.

Confira-se o dispositivo legal:

Art. 319.  São medidas cautelares diversas da prisão:

I – comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;

II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações

III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;         

IV – proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;

V – recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;

VI – suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;        

VII – internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração;             

VIII – fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;

IX – monitoração eletrônica.

Como medida provisória contra o servidor público que responde a processo criminal, a legislação concede ao juízo, dentre outras opções, a suspensão do exercício da função. Todavia, o fato de o agente ser suspenso de suas atividades transitoriamente, não implica, por consequência, a suspensão de sua remuneração no mesmo período.

É que o servidor público estável goza de garantias legais, notadamente, a irredutibilidade de vencimentos, além da presunção de inocência, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF). [2]

Em razão dessas disposições, a suspensão da remuneração, em sede de cautelar, é claramente uma medida não prevista pelo legislador, razão pela qual configura evidente constrangimento ilegal, por desrespeito aos princípios da legalidade, da irredutibilidade salarial e da presunção de inocência.

Esse tipo de decisão (judicial ou até mesmo administrativa) deve ser combatida por meio de Habeas Corpus e, por óbvio, com substrato em decisões já proferidas pelas Cortes Superiores, a exemplo do Superior Tribunal de Justiça (STJ):

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. PREVARICAÇÃO. COAÇÃO NO CURSO DO PROCESSO. GUARDA CIVIL. MEDIDAS CAUTELARES. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. […] 4. Ademais, o afastamento da função pública vigora sem prejuízo da remuneração do agente, o que torna menos oneroso o cumprimento da cautelar pelo paciente, não havendo desproporcionalidade flagrante. 5. Ordem denegada. (STJ, 6ª Turma, Habeas Corpus n. 538.273/SP, rel. Min. Antônio Saldanha Palheiro, j em 4/2/2020).

E também pelas Cortes Estaduais, como é o caso do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJSC):

HABEAS CORPUS. PACIENTE DENUNCIADO PELOS CRIMES DE CORRUPÇÃO PASSIVA (ART. 317, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL) E ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA (ART. 288, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL). AVENTADO CONSTRANGIMENTO ILEGAL NO DECISUM CAUTELAR QUE AFASTOU O PACIENTE DO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO PÚBLICA DE POLICIAL CIVIL E SUSPENDEU SUA REMUNERAÇÃO. ALEGAÇÃO DE DECISÃO ULTRA PETITA. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. ÓRGÃO JULGADOR PROVOCADO. DISCRICIONARIEDADE NA FIXAÇÃO DE MEDIDAS CAUTELARES AO FEITO. SUSCITADO O RESTABELECIMENTO DA REMUNERAÇÃO DO PACIENTE BEM COMO O RETORNO ÀS ATIVIDADES ADMINISTRATIVAS DA POLÍCIA CIVIL. […] PROVENTOS BÁSICOS, TODAVIA, QUE DEVEM SER RESTABELECIDOS, ENQUANTO A FUNÇÃO PERMANECER CAUTELARMENTE SUSPENSA. CARGO PÚBLICO EFETIVO ESTÁVEL E DE DEDICAÇÃO EXCLUSIVA. PREVALÊNCIA DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. SUBSISTÊNCIA PREJUDICADA. ORDEM CONHECIDA E PARCIALMENTE CONCEDIDA. […] 3. Tratando-se de cargo público efetivo de dedicação exclusiva (policial civil), a medida cautelar de afastamento das funções (art. 319, inciso VI, do Código de Processo Penal), salvo hipóteses excepcionais devidamente comprovadas, possui melhor interpretação à luz dos princípios constitucionais da presunção da não culpabilidade (art. 5º, LVII, CF) e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), de que deve ser efetivada sem prejuízo da remuneração básica do agente público, enquanto tiver vigor a natureza provisória da decisão. (TJSC, 1ª Câm. Crim., Habeas Corpus n. 5045181-27.2022.8.24.0000, rel. Des. Paulo Roberto Sartorato, j. em 8/9/2022).

Resumidamente, portanto, “o servidor público impedido de exercer suas funções, provisória ou cautelarmente, não pode perder quaisquer de seus direitos, à exceção das vantagens que desaparecem quando cessa a atividade, em razão da garantia da irredutibilidade de vencimentos e do princípio da presunção de não-culpabilidade. […]”. (RMS n. 47.799/RJ, Quinta Turma, Rel. Min. Leopoldo de Arruda Raposo (Desembargador Convocado do TJ/PE), j. em 08/09/2015). O mesmo raciocínio também vale para os casos administrativos, sendo possível o agente ser afastado do seu trabalho, sem prejuízo, no entanto, da sua remuneração.

O corte dos vencimentos só pode ocorrer após a demissão, que se dá por meio de decisão judicial transitada em julgado (que não cabe mais recurso) ou pela via administrativa, após regular processo administrativo disciplinar.

Essa obrigatoriedade de manter o agente na folha de pagamento, mesmo suspenso da função, é ainda mais evidente, por exemplo, no caso de Policial Civil, dada a dedicação exclusiva, em que é vedada inclusive a prestação de serviços ao setor privado. No âmbito da Polícia Civil de Santa Catarina, a dedicação integral está prevista na Lei Estadual n. 6.843/1986 (Estatuto da Polícia Civil), Anexo IV.

Imagine-se o Policial Civil ser afastado do trabalho provisoriamente, com prejuízo da remuneração. Nesse caso, como ele ainda mantém seu vínculo com a Administração Pública, está impossibilitado de exercer qualquer função na iniciativa privada (por conta da dedicação exclusiva) e, em contrapartida, também não recebe a remuneração na condição de servidor público. Com isso, está obstado totalmente o seu meio de sobrevivência, o que fere, inclusive, a razoabilidade e o princípio da dignidade humana.

Assim, se a suspensão de Policial Civil decorrente de decisão precária, por si só, já deve ser vista com ressalvas (até porque muitas vezes só agrava a falta de efetivo), quem dirá o corte da remuneração, que só pode ocorrer após demissão, nunca por meio de decisão provisória.

LUCAS RODRIGUES ALVES [1]

Advogado na Baratieri Advogados

MAICON JOSÉ ANTUNES [2]

Advogado na Baratieri Advogados

[1] (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, 8. ed. Salvador: JusPODIVM, 2020, p. 945)

[2] (STF, RE n. 1104607, de São Paulo, rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. em 17/8/2018).


[1] Sócio da Baratieri Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pós-graduando em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Membro Consultivo da Comissão de Direito Penal e da Advocacia Criminal OAB/SC. Membro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM). Ex-estagiário na 16ª Procuradoria de Justiça Criminal do Ministério Público do Estado de Santa Catarina e na 6ª Delegacia de Polícia de Capital (SC) – Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMI).

[2] Sócio da Baratieri Advogados. Bacharel em Direito pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina – CESUSC/Florianópolis. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo Complexo Damásio de Jesus. Membro da Comissão de Direito Militar da OAB/SC, da Comissão de Direito do Servidor Público e da Comissão de Direito Previdenciário – regime próprio. Membro do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina – IDASC. Professor dos cursos de atualização e aperfeiçoamento do Portal Gestão Pública Online, na área de Licitações e Contratos Administrativos, de Servidor Público e de Processo Legislativo.

X