Legitimar a pronunciação democrática pode aprofundar a insegurança jurídica
Por Emerson Leônidas
Com vênias aos entendimentos em contrário, pretende-se discutir aqui a impossibilidade de relator, em sede de análise de mérito das razões jurídicas de recursos especial ou até mesmo de extraordinário, ou depois de admitir o agravo e convertê-los em tais — já que na prática esses recursos quase sempre tem seguimento negado na origem —, decidir monocraticamente o caso, sobrepondo-se ao convencionalmente admitido princípio da colegialidade e, com isso, impedindo-se o direito de ampla defesa, já que a tramitação regular de tais recursos garante ao recorrente, por sua defesa técnica, o direito de sustentação oral.
Indo direito ao ponto, eis o que diz o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, quanto às atribuições do relator:
Art. 34. São atribuições do relator: VII – decidir o agravo interposto de decisão que inadmitir recurso especial;
XVI – determinar a autuação do agravo como recurso especial.
Assim sendo, da análise deste artigo se dispõe que compete ao relator do Agravo da decisão que inadmitir Recurso Especial a decisão sobre sua procedibilidade e autuação, tão somente.
Já quanto às atribuições do colegiado, o artigo 13 do mesmo Regimento Interno dispõe expressamente que compete privativamente às turmas o julgamento do Recurso Especial:
“Art. 13. Compete às Turmas:
IV – julgar, em recurso especial, as causas decididas em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados (…)”.
No caso, a figura do Agravo em Recurso Especial obedece a uma tramitação mista, visto como compete ao relator singular fazer um juízo de procedência do Agravo, seja para não conhecê-lo, ou, conhecendo-o, adotar alguma das alíneas constantes do artigo 253, II deste mesmo RI STJ:
“Art. 253. O agravo interposto de decisão que não admitiu o recurso especial obedecerá, no Tribunal de origem, às normas da legislação processual vigente.
(…)
II – conhecer do agravo para: (Redação dada pela Emenda Regimental n. 22, de 2016)
a) não conhecer do recurso especial inadmissível, prejudicado ou daquele que não tenha impugnado especificamente todos os fundamentos da decisão recorrida; (Redação dada pela Emenda Regimental n. 22, de 2016)
b) negar provimento ao recurso especial que for contrário a tese fixada em julgamento de recurso repetitivo ou de repercussão geral, a entendimento firmado em incidente de assunção de competência, a súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça ou, ainda, a jurisprudência dominante acerca do tema; (Redação dada pela Emenda Regimental n. 22, de 2016)
c) dar provimento ao recurso especial se o acórdão recorrido for contrário a tese fixada em julgamento de recurso repetitivo ou de repercussão geral, a entendimento firmado em incidente de assunção de competência, a súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça ou, ainda, a jurisprudência dominante acerca do tema. (Redação dada pela Emenda Regimental n. 22, de 2016)
d) determinar sua autuação como recurso especial quando não verificada qualquer das hipóteses previstas nas alíneas b e c, observando-se, daí em diante, o procedimento relativo a esse recurso”.
Com efeito, após decidir em conhecer do Recurso Especial ou do Agravo em Recurso Especial, o relator, salvo as hipóteses previstas nas alíneas “a”, “b” e “c” acima mencionadas, não poderá, monocraticamente, adentrar no mérito do recurso nobre interposto, o que se conclui pela leitura do Regimento Interno, posto que o rito específico de processamento destes recursos se infere a partir do jusconstruído princípio da colegialidade, estritamente ligado ao princípio do duplo grau de jurisdição — expressamente disposto no Pacto de San José da Costa Rica (artigo 8, item 2, h), que o Brasil é signatário. Aí se garante ao recorrente uma série de direitos subjetivos e objetivos, tais como o de ter uma decisão colegiada e de ter direito à sustentação oral.
Dessa forma, se o relator julga monocraticamente o mérito de Recurso Especial ou de Agravo convertido em Recurso Especial em situação que não se incorpora às outras alíneas do referido artigo, prejudica o direito de defesa ao cercear dois direitos defensivos regimentalmente e constitucionalmente assegurados ao recorrente: o direito de que seu recurso seja julgado perante o competente órgão colegiado; e o direito à ampla defesa assegurada pela sustentação oral com previsão no RISTJ, que garante ao recorrente a possibilidade de ter a sua situação de fato e de direito apresentada oralmente e em sessão aos demais ministros que compõem a turma, cuja negativa configura dano ao princípio da ampla defesa.
Demais disto, a infringência ao Princípio da Colegialidade se encontra reflexo no próprio regimento interno, pois a análise de cabimento recursal se torna de competência da turma no momento em que o relator decidiu em converter o Agravo em Recurso Especial em Recurso Especial. É o que dispõe o artigo 257, RISTJ:
“Art. 257. No julgamento do recurso especial, verificar-se-á, preliminarmente, se o recurso é cabível. Decidida a preliminar pela negativa, a Turma não conhecerá do recurso; se pela afirmativa, julgará a causa, aplicando o direito à espécie”.
Destaque-se que a imposição desse regramento específico ao RESP ou ao convertido Agravo em Recurso Especial vem de garantias que decorrem implicitamente do grau recursal, tais como o Princípio da Colegiabilidade, de forma que os casos submetidos à superior instância sejam analisados e discutidos em grupo, garantindo, pelo menos em tese, uma decisão mais acurada.
Bem se sabe que a legislação brasileira, principalmente no que pese aos regimentos internos dos tribunais locais, preveem a possibilidade de o relator, em decisão monocrática, negar seguimento a um recurso.Entretanto, os dispositivos que autorizam essas decisões devem ser aplicados de forma restritiva, para não prejudicar a ampla defesa.
Consoante entendimento doutrinário, o Princípio da Colegiabilidade está umbilicalmente ligado ao princípio do duplo grau de jurisdição, este que, ainda que não absoluto, decorre da própria estrutura do poder judiciário do Brasil, por isso entendido como implícito, bem como de expressa disposição do Pacto de San José da Costa Rica (artigo 8, item 2, h) — o que o torna, em verdade, explícito.
Infelizmente, entretanto, tem se aumentado vertiginosamente o número de decisões monocráticas que, em busca de uma suposta celeridade para combater o aumento de litígios no Brasil, tem se escanteado as decisões colegiadas para a adoção do julgamento monocrático de mérito na seara penal.
Ocorre que por muitas vezes tratarem de bens jurídicos de maior relevo,não cabe transmitir às discussões penais o mesmo tratamento que é dado às de origem civil, posto que as hipóteses que excluem o julgamento colegiado devem ser interpretadas de forma restritiva naquele, levando-se em consideração princípios constitucionalmente e convencionalmente (com força constitucional) opostos, como o da ampla defesa (irradiando-se o direito de sustentação oral) e o próprio princípio da colegialidade, que decorre do duplo grau recursal.
Como já muito bem exposto pelo ministro Rogério Schietti Cruz, na relatoria do Resp 942.407-SP, o fato de existir a possibilidade de recurso contra a decisão monocrática a ser analisada pelo órgão colegiado não afasta a violação à ampla defesa: “Nem se diga que a simples possibilidade de a decisão ser apreciada pelo colegiado por meio de agravo interno, por si só, supriria tal violação, porquanto esse recurso restringiria, como de fato restringe, a possibilidade de defesa ampla (inviabilidade de sustentação oral, julgamento independente de pauta etc), inerente ao recurso ou à ação originária e, portanto, acabaria por vulnerar, injustificadamente, este princípio de matiz constitucional”.
Ocorre que muitas matérias penais debatidas no âmbito do recurso nobres — inadmitido na origem — agravado — com agravo conhecido e provido, consequentemente sendo convertido em Recurso Especial, não comportam a possibilidade de já ter havido exaustivo debate prévio, ou até solidez no enfrentamento do tema, em razão da necessidade de se adentrar na casuística peculiar destes fatos, por se tratar de análise da legalidade das circunstâncias judiciais caso a caso, as vezes em situações capazes de serem corrigidas até de ofício.
Isso torna imperativo as garantias constitucionais, tais como o direito à sustentação oral, bem como que a matéria seja analisada pelo colegiado da corte, criando inclusive possibilidade de aprimoramento da análise de temas não discutidos cuja relevância seja de âmbito nacional, até porque a liberdade não é, e nem poderia ser neste caso, bem disponível passível de que a análise seja deixada de lado para que se atenda ao sistema de metas de celeridade processual. Ao contrário do sistema processual civil, em que as discussões legais se tornam cada vez mais sistemáticas e aritméticas, a seara penal, entretanto, por impor a violência estatal legitimada acaba por necessitar de uma análise casuística mais acurada, sem que se imponham óbices cada vez mais formais que apenas cerceiam o direito de defesa daqueles que já se encontram submissos ao arbítrio estatal.
Nesse caso, cabe ressaltar o mantra-motiz do processo penal: forma é garantia. E qualquer afronta à forma legalmente instituída imporá franco prejuízo ao exercício defensivo do acusado penal, adquirindo o processo tons de autoritarismo e fascismo não condizentes com espírito democrático e constitucionalista do Estado de Direito brasileiro.
Acerca da indisponibilidade do bem jurídico penal, atraímos entendimento da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal que pôs em debate o princípio da colegialidade e a decisão monocrática, que fora registrada no informe de 9/12/08:
“A Turma indeferiu habeas corpus impetrado contra decisão de Ministro do STJ que denegara pedido de liminar formulado em idêntica medida, no qual arguida ilegalidade da manutenção de adolescente em medida sócio-educativa de internação, por prazo indeterminado, pela prática de ato infracional equiparado ao delito previsto no art.157, § 2º, I e II, do CP. A impetração requeria, na espécie, a substituição da medida de internação pela de liberdade assistida, por reputá-la mais adequada. Contudo, por se vislumbrar ofensa ao princípio da colegialidade, concedeu-se a ordem de ofício para haver o julgamento do mérito pelo colegiado do STJ. Entendeu-se que, não obstante seja possível ao relator, em decisão monocrática, negar seguimento a habeas corpus manifestamente incabível, improcedente ou que contrariar, nas questões predominantemente de direito, Súmula do respectivo tribunal (Lei 8.038/90, art. 38), no caso, não caberia ao relator naquela Corte apreciar o mérito do tema posto para negar seguimento ao writ. HC 96073/MT, rel. min. Cármen Lúcia, 9.12.2008. (HC-96073)’’.
Assim sendo, a adoção desse tipo de medida — decisão monocrática de mérito — nos casos penais que demandam uma análise casuística dos atos judiciais que compõem os autos terminam por potencializar erros judiciários, esvaziando o sentido de existência do órgão colegiado. A medida, quando adotada, termina por afetar de maneira direta o direito defensivo do recorrente, pois sobrepuja o caráter coletivo das decisões e faz prosperar o florescimento de ‘superjuízes’, que tomam, muitas vezes através de um decisionismo que em nada perde ao realismo norte-americano, decisões praticamente irrecorríveis (vez que destes recursos são afastados vários direitos inerentes à ampla defesa, tais como o da sustentação oral) epretensamente insuscetíveis de controle pelo colegiado que integram (fato comprovado estatisticamente, ante a minoritária parcela de processos com retomada de decisões após agravos regimentais, onde não se permite a sustentação oral).
Da mesma forma, o pretenso argumento de se legitimar a pronunciação monocrática por meio do suposto ganho de celeridade do processo perde o seu rumo no momento em que torna propensa uma profunda insegurança jurídica, pois é absolutamente impossível, na maioria dos casos de matéria penal, de se ver analisado o processo que muitas vezes vale a vida de um cidadão em um mero juízo aritmético de proposições lógicas — favorecendo a existência de erros judiciários que irão danificar de maneira irreparável bens jurídicos valiosíssimos ao jurisdicionado, tais como a própria liberdade, visto como os recurso nobres possuem elevado cunho político de pacificação das querelas jurídicas que irradiem sobre o ordenamento, os mesmos devem ser capazes de ambientar e assegurar a proteção dos direitos humanos no plano concreto por meio de uma teia de garantias forjadas em uma interpretação ampliadora de seus significantes endonormativos, dado o fenômeno autopoiético que é o Direito.
Fonte: www.conjur.com.br