Lei 13.491/2017 fez muito mais do que retirar os militares do tribunal do júri
Por Aury Lopes Jr
Foi com bastante perplexidade que a comunidade jurídica recebeu a Lei 13.491/2017, recentemente sancionada e que amplia a competência da Justiça Militar Federal e, como veremos, também da Justiça Militar estadual.
Indo de encontro a toda uma tendência de esvaziamento da jurisdição militar (inclusive, em muitos estados, é recorrente a polêmica sobre a extinção da Justiça Militar estadual[1]) para que ela se ocupe apenas daqueles crimes em que existe uma real afetação do interesse militar. Há décadas a jurisprudência consagrou que não basta ser crime militar, praticado por militar e em alguma das situações do artigo 9º do CPM, é preciso que exista a “efetiva violação de dever militar ou afetação direta de bens jurídicos das forças armadas”[2] ou uma “situação de interesse militar”[3]. Sem dúvida tal critério deverá ser revisto, diante da ampliação da competência a seguir explicado.
Nessa mesma perspectiva, em 1996, a Lei 9.296 — posteriormente incorporada no artigo 125, parágrafo 4º da Constituição —, atendendo a um reclame de organismos nacionais e internacionais de defesa de direitos humanos, altera o CPM para que os crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis fossem julgados pelo tribunal do júri. A nova lei expressamente determina:
Art. 9º
II. (…)
§ 1º Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri.
§ 2º Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto:
I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa;
II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou
III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais:
(…)
Significa dizer que a lei cria um tratamento diferenciado conforme o militar seja estadual ou membro das Forças Armadas. O policial militar estadual — em atividade — que cometa crime doloso contra a vida de civil segue sendo julgado no tribunal do júri. A nova lei atinge apenas os militares do Exército, Marinha e Aeronáutica que, nas chamadas “missões de garantia da lei e da ordem” (as conhecidas ocupações nas favelas cariocas e outras missões de “segurança pública”) cometam crimes dolosos contra a vida de civis. Nesse caso, eles serão julgados na Justiça Militar Federal, e não no tribunal do júri. É verdade que parte da doutrina e inclusive da jurisprudência do STM já sustentava que a competência do júri só se aplicaria à Justiça Militar estadual, fazendo uma leitura literal e restritiva do artigo 125, parágrafo 4º da Constituição. Contudo, também é verdade que esse desvio de função das Forças Armadas, para exercerem um policiamento urbano “a la carte”, é algo novo, posterior à mudança do texto constitucional. A aplicação por analogia (ou interpretação extensiva se preferir) do artigo 125, parágrafo 4º da CF aos militares das Forças Armadas, diante dessa nova situação, também seria plenamente sustentável.
Mas, agora, a nova lei veio para enfrentar o problema e tomar uma clara posição (na contramão do caminho já construído, repetimos) no sentido de que o militar das Forças Armadas que, nas operações de garantia da lei e da ordem (leia-se: cláusula genérica, vaga e imprecisa), cometer crime doloso contra a vida de civil será processado e julgado na Justiça Militar Federal. Já o policial militar estadual permanece sendo julgado no tribunal do júri. Eis aqui mais um ponto polêmico: cria-se uma clara diferenciação no tratamento dos militares agindo em idêntica situação. E se, em uma operação conjunta, um policial militar estadual e um membro das Forças Armadas cometerem um crime doloso contra a vida de um civil em uma abordagem, como ficará o processo e julgamento? Haverá cisão, pois o militar estadual será julgado na Justiça comum estadual, no tribunal do júri; e o militar das Forças Armadas será julgado na Justiça Militar Federal.
Sigamos.
A tendência de limitação da competência das Justiças militares é estancada, e rompido o paradigma vigente, com uma completa inversão do tratamento legal. Iniciou-se uma perigosa “militarização da segurança pública”, como muito bem definiu e explicou Leonardo Marcondes Machado, com as Forças Armadas sendo chamadas de forma cada vez mais rotineira (e por maior tempo) para exercer efetivo policiamento urbano e repressão (seletiva) de crimes, desnaturando completamente sua natureza e missão. Sob o pretexto de atuação excepcional e para “garantia da lei e da ordem”, o que temos assistindo é a utilização das Forças Armadas em verdadeiro desvio de função, numa tentativa desesperada da União (e dos estados que solicitam) de enfrentar a violência urbana crescente (que, como se sabe, decorre de fatores complexos em que, além da repressão, é imprescindível uma anamnese séria das causas), especialmente por causa de uma política antidrogas que se mostra equivocada.
Noutra dimensão, os tribunais militares tampouco se justificam em tempo de paz, devendo ter sua atuação realmente limitada aos crimes militares, quando praticados por militares e diante de um real e peculiar interesse militar. Do contrário, é violação do juiz natural.
Mas, na contramão de tudo isso, vem a Lei 13.491/2017, que inicia por retirar do tribunal do júri o julgamento dos crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militares das Forças Armadas em situações de verdadeiro “policiamento urbano” (situações previstas no parágrafo 2º, incisos I, II e III do artigo 9º do CPM). Mas a nova lei vai muito além: há uma outra modificação muito preocupante e que não está sendo repercutida, que é a nova redação do inciso II do artigo 9º do CPM. Antes, o artigo 9º, II do CPM assim dispunha:
II. os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados: (…).
Com essa redação, o legislador determinava que a Justiça Militar julgaria os militares (nas situações de atividade ou interesse militar definidos nas alíneas “a” a “f”) pela prática dos crimes previstos no CPM, “embora também o sejam com igual definição na lei penal comum”. Com isso, estavam afastados da competência da Justiça Militar os crimes previstos em leis penais especiais e, portanto, não contemplados no CPM. Eram os clássicos exemplos dos crimes de abuso de autoridade, tortura, associação para o tráfico, organização criminosa etc., todos crimes não previstos no CPM, mas apenas em leis penais extravagantes e que eram julgados na Justiça comum. Se houvesse conexão entre um crime militar e outro previsto em lei especial, haveria uma cisão: o crime militar seria julgado pela Justiça castrense, e o crime não previsto no CPM seria julgado na Justiça comum (estadual ou federal, conforme o caso).
Agora, a nova redação do inciso II é muito mais ampla:
II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados.
Significa dizer que a Justiça Militar (federal ou estadual) agora poderá julgar os crimes previstos no CPM e na legislação penal (comum e especial/extravagante). Dessa forma, há uma ampliação significativa da competência das Justiças militares estaduais e federal, que passarão a julgar crimes não previstos no CPM, tais como os anteriormente citados. Já existe, inclusive, quem sustente que os crimes previstos na Lei Maria da Penha, quando praticados por militar, também estariam submetidos à Justiça Militar. Isso, a nosso ver, é um exagero, na medida em que esbarra na absoluta falta de interesse militar, afetação de bens militares ou aderência à atividade militar.
Existiu, portanto, um gravíssimo retrocesso. Não só pela falta de estrutura e condições de investigar e julgar tantos crimes, mas também porque alcança crimes não afetos diretamente às atividades militares. Também cria o risco de efetivo corporativismo, especialmente em relação a crimes como abuso de autoridade e tortura, onde em geral existe uma percepção e valoração por parte dos militares que é completamente distinta da população civil acerca da gravidade e tipificação dessas condutas. Há o risco concreto de um entulhamento das Justiças militares para julgar crimes que não deveriam a ela ser afetos, inclusive com o agravante de que isso vai se operar de forma imediata. Não podemos esquecer que a lei processual penal no tempo é regida pelo princípio da imediatidade, de modo que muitos processos atualmente em andamento na Justiça comum poderão (ou melhor, deverão!) ser imediatamente enviados para a respectiva Justiça Militar.
Dessarte, também está superada a Súmula 172 do STJ, que dispunha que “compete à justiça comum processar e julgar militar por crime de abuso de autoridade, ainda que praticado em serviço”. Perdeu sentido.
Enfim, a nova lei vai muito além da questão da competência do júri. Representa uma significativa ampliação da competência das Justiças militares da União e dos estados, que agora terão de dar conta de uma imensa demanda para a qual não estão preparadas e tampouco foram criadas. Esse entulhamento exigirá um sustancial investimento na estrutura das Justiças militares e também na própria investigação preliminar no âmbito militar, o que dificilmente ocorrerá a médio prazo. Como se trata de lei processual penal, com aplicação imediata — inclusive para os processos em curso, repita-se —, é evidente que esse deságue inesperado de processos irá gerar grande impacto na administração da Justiça Militar.
Como consequência, é previsível a (de)mora processual e o aumento da sensação de impunidade/corporativismo. Particularmente, pensamos que, no âmbito dos crimes contra a vida, o julgamento no tribunal do júri seria até mais favorável aos militares do que a Justiça castrense. Contudo, no que tange aos demais tipos penais — especialmente o abuso de autoridade, tortura, porte ilegal de armas e outros próprios do ofício —, talvez o tratamento não corresponda ao que se espera em termos de efetividade, por uma questão de percepção diferenciada da tipicidade e dos limites das causas de exclusão da ilicitude.
De qualquer forma, em linhas gerais, entendemos que essa ampliação da competência representa um retrocesso, além de desnecessária e completamente inadequada para o nível de evolução democrática que se atingiu (ou se imaginou ter atingido…).
[2] Expressão usada Elmir Duclerc, Curso básico de Direito Processual Penal, Lumen Juris, 2006, v.2, p. 12.
[3] Sobre a competência em matéria penal e um aprofundamento da temática, remetemos o leitor para nossa obra Direito Processual Penal, 14ª edição, Editora Saraiva, 2017.
Fonte: www.conjur.com.br