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LÊNIO STRECK – Projeto de lei quer institucionalizar indigência mental nas sentenças

O meteoro vem. Há um emburrecimento programado e cuidadosamente planejado. Cientistas mostram, claramente, o declínio da espécie humana.


Machado de Assis sabia disso. O nosso Flaubert vaticinou. Vários livros e contos de Machado mostram a inexorabilidade da vitória da idiotice.

Um dos contos é Teoria do Medalhão. Nele, o pai do jovem Janjão, às vésperas de seus 21 anos, ensina-lhe as artes e a metodologia para ser um medalhão.

O primeiro e principal atributo Janjão tinha: inópia mental. Assim iria longe. E um dos conselhos do pai: não leia nada complicado. Não frequente livrarias. Diga só platitudes. Em vez de um tratado sobre os carneiros, compre um e asse. E convide os amigos. Sucesso na certa.

Poderia citar as confirmações da tese de Machado. São muitas. Umberto Eco carimbou: com as redes sociais os idiotas perderam a timidez. Nelson Rodrigues falava da vitória dos idiotas.

Mauro Mendes Dias e Carlo Cippola denunciam isso, fazendo uma espécie de “epistemologia da imbecilidade”. Escrevi sobre isso.

O que os filósofos diriam dos néscios? Voltaire detestava néscios. Referia-se aos linóstolos e pastóforos, no livro O Ingênuo. Platão escreveu o Mito da Caverna contra os néscios.

É isso. Poderia ter feito um texto sofisticado mostrando que um projeto de lei — institucionalizando uma linguagem “simplória” e atécnica nas decisões judiciais — apresentada por um deputado do PTB (ver aqui) é um negacionismo epistemológico. Sim: o projeto pretende institucionalizar linguagem coloquial.

Como seria se o projeto fosse aprovado? Talvez desenhando a sentença. Fulano está condenado a cinco anos. Aparece uma grade, o desenho do réu e uma mão cheia para mostrar o número cinco. Como seria dizer que uma lei é inconstitucional? Hum, hum. Talvez desenhar um boneco com os dizeres “lei número tal” dando uma rasteira em outro boneco, com a camiseta “Constituição”. Isso dentro de uma área de campo de futebol. Foi pênalti, quer dizer, foi inconstitucional… O Brasil é um país criativo. Logo seriam lançados livros facilitando a facilitação. Workshops com coach para explicar como se diz que “houve usucapião”, “provimento de agravo” e “indefiro os embargos de declaração”.

Será o triunfo do “stultus homo” — o contrário do sapiens. Fechemos todos os cursos jurídicos. E atiremos fora todos os livros (quer dizer, alguns podem, mesmo…).

Sigo. Para dizer que eu poderia mostrar que o Direito, como qualquer discurso próprio de uma área do conhecimento, possui especificidades. Paulo de Barros Carvalho tem um antigo exemplo: se uma lei diz que três pessoas disputarão uma cadeira no Senado, não será um móvel do parlamento que estará na disputa… Aliás, já escrevi vários livros sobre isso. Eros Grau fala da alografia do Direito. Porque ele não é autográfico (problema: como os simplificadores entenderão isso que estou dizendo?).

Poderia dizer também que o projeto representa um retrocesso, etc, etc. E mais um etc. Poderia fazer xingamentos. Lançar impropérios. Poderia dizer que não tem nada a ver a busca de uma comunicação mais adequada… com o esvaziamento da linguagem científica.

Poderia trazer a velha piada sobre Einstein. Ele contou sua teoria e ninguém entendeu. Uma senhora pediu para ele simplificar. Ele o fez. Uma, duas e, na décima, a senhora disse: ufa, agora entendi. Ao que Einstein respondeu: pois é. Só que agora o que eu falei já não tem nada a ver com minha teoria.

Poderia escrever muito sobre isso. Mas decidi fazer ironia e sarcasmo. Falando de Machado. E de filósofos. Que detestavam néscios e nesciedade.

Portanto, se eu sofisticasse, o próprio autor do projeto não entenderia. Como fazer uma crítica a um projeto que goteja inópia usando uma linguagem facilitadinha?

Certamente cairia em um paradoxo: “todos os textos devem ser simplórios; como fazer uma crítica não simplória?” Eu estaria violando o projeto.

Tal qual o paradoxo do mentiroso: todos os cretenses mentem; quem disse a frase é um cretense. Pois é. O contrário da mentira é a verdade… Logo…

Só estocando alimentos. Mas o deputado não está só. Há dezenas de livros e vídeos feitos em linguagem simplesinha, resumidinha e facilitadinha.

O edil apenas pegou a ideia. Há precedentes…!

é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Artigo publicado no Conjur, 01/02/2022.

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