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Massacre em presídio de Manaus é resultado do punitivismo do Estado

Por Marcos de Vasconcellos
O massacre do presídio em Manaus, que resultou na morte de 60 presos durante uma rebelião, não é um caso isolado nem pontual. É o resultado de uma política de Estado que acredita no encarceramento como fórmula mágica para enfrentar a criminalidade. Para os ministros Marco Aurélio e Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, juízes e advogados, as mortes têm como causa, em última instância, o punitivismo do Estado.
“Vão querer colocar a responsabilidade na guerra entre facções, o estado do Amazonas e a União vão se declarar vítimas de grupos criminosos organizados. Ninguém assumirá a responsabilidade pela bestialidade que impera no sistema prisional”, prevê o criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. E é verdade que os noticiários têm apontado as facções Família do Norte e Primeiro Comando da Capital como responsáveis pelos assassinatos, deixando em segundo plano o Estado que permitiu a tais facções o controle dos presídios, além da superlotação.
A tragédia desta segunda-feira (2/1), afirma a Associação Juízes para a Democracia, “somente ocorreu em razão de uma histórica política de Estado brasileira, consistente no tratamento dos problemas sociais de um dos países mais desiguais do mundo como caso de polícia”. A entidade descreve o episódio como “tragédia anunciada do punitivismo”.
O ministro do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Gilmar Mendes, que comandou um eficiente conjunto de ações no campo carcerário quando presidiu o Conselho Nacional de Justiça, afirma que os órgãos de controle da magistratura e do Ministério Público têm responsabilidade no caos instaurado. “O CNJ e o Conselho Nacional do Ministério Público passaram por um processo de desmobilização planejada. É uma ironia: Estado desorganizado, crime organizado. Talvez seja chegada a hora de se pensar em organização de forças-tarefas e buscar a federalização desses casos. É preciso encerrar a lenga lenga de que a questão é de competência estadual. É hora de atuação coordenada dos diversos organismos incumbidos de alguma forma do combate à criminalidade”, diz Gilmar Mendes.
Com a quarta maior população carcerária do mundo, o Brasil tem mais de 620 mil presos, sendo que 40% deles são provisórios. Ou seja, sequer foram julgados pelos crimes de que são acusados. Mas prender pessoas antes de seus processos chegarem ao fim não parece um problema para o Judiciário. Em 2016, o próprio Supremo definiu que réus podem ser presos antes do trânsito em julgado de suas condenações.
O ministro Marco Aurélio, do STF, é crítico da nova posição adotada pela corte. Para ele, o Estado precisa observar a Constituição Federal em relação ao princípio da não culpabilidade e à ordem natural do processo — “apurar, para, selada a culpa, prender, executando a pena”.
Questionado pela ConJur sobre o caso de Manaus, Marco Aurélio lembrou da ADPF 347, na qual a corte proibiu a União de contingenciar o dinheiro do Fundo Penitenciário Nacional: “[O Estado] deve atentar para a obrigação constitucional de preservar a integridade física e moral do preso que um dia voltará ao convívio social. É dele a responsabilidade pelo estado de coisas inconstitucional existente, como ressaltei em voto na ADPF da qual sou relator”. O ministro exige que a liminar seja cumprida o quanto antes, liberando as quotas do Fundo Penitenciário.
A mudança na jurisprudência sobre o trânsito em julgado foi apontada como uma resposta ao clamor popular e criticada por subverter a Constituição, segundo a qual ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado, e o Código de Processo Penal, que prevê que ninguém será preso até que se esgotem todos os recursos (fora as hipóteses clássicas de prisão provisória). Fábio Tofic Simantob, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa é direto, ao analisar a questão: “Para molhar o bico da opinião pública sedenta por prisões, o Supremo precisou expor uma insanidade jurídica”.
O “apelo popular” chegou ao juiz Luís Carlos Valois, de Manaus, que atuou na negociação entre presos e a polícia no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) para estancar o prolongamento da tragédia. Um internauta foi ao seu perfil no Facebook e disse que ele deveria pensar “positivo”, segundo noticiou a colunista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, afirmando: “São 50 a menos pra nos roubar, violentar nossas filhas ou esposas e levar pânico para as pessoas de bem!”. O juiz respondeu à altura: “Os que morreram eram bucha de canhão, os menores, os frágeis do sistema… O problema são os que mataram, que ficaram mais violentos, psicopatas, e um dia voltam para a rua”.
Valois, é conhecido e respeitado na comunidade jurídica como um juiz garantista. Já foi apelidado de “São Francisco de Assis do sistema penitenciário”. Mas sua conduta tem irritado o setor policial e do Ministério Público. Não por acaso, surgiram imediatamente “notícias” que tentam associar o juiz anti-punitivista ao crime organizado. O “patrulhamento ideológico travestido de investigação judicial” contra o juiz já foi alvo de críticas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
Essa noção de que presos ou criminosos devem ser tratados como “inimigos” não é novidade para o Judiciário. O juiz de Direito de Santa Catarina e colunista da ConJur, Alexandre Morais da Rosa já afirmou que a imensa maioria da magistratura e do Ministério Público trabalha com a noção amigo/inimigo, mesmo que como pano de fundo. O Judiciário, que deveria servir de limite, para a sanha punitiva, serve, segundo o juiz, muitas vezes, como aliado da Segurança Pública. No entanto, “Judiciário aliado da Segurança Pública não é Judiciário. É juiz-policial”, critica.
O ex-procurador-geral de São Paulo, Márcio Sotelo Felippe, define: “A premissa do punitivismo é a ideia tosca e fascista que contra a violência o Estado deve responder com a barbárie. O sistema prisional brasileiro funciona com essa mentalidade, que está na cabeça de juízes, promotores, do Executivo e de parte da opinião pública. Esse círculo sem virtude alguma produz acontecimentos como o de Manaus”.
Ao analisar o massacre de Manaus, Kakay pede: “Que a sociedade volte os olhos para o massacre diário no sistema prisional brasileiro e que o Judiciário deixe de ser cúmplice deste massacre. A prisão antecipada é em boa parte responsável por esta barbárie. A vulgarização da prisão preventiva só alimenta este estado de coisa inconstitucional”.
Voltar os olhos para o massacre está mais fácil do que nunca. Vídeos que circulam nas redes sociais mostram os presos do Compaj decapitando os corpos de seus colegas de cárcere, fazendo piadas com as cabeças dos mortos e empilhando partes de seus corpos, em poças de sangue, como pedaços de carne em um matadouro. Esse é o retrato fiel do Direito Penal do Inimigo, que tem o condão de dividir a sociedade em duas partes: Uma delas possuidora de uma tendência inata para o crime; a outra parte constituiria o lado “sadio”, os autoproclamados “cidadãos de bem”.
Domina nesta parte da “sociedade de bem” a mentalidade de que bandido bom é bandido morto, e que cadeias terem condições degradantes é um efeito colateral tolerável. A própria imprensa, que faz críticas estridentes quando flagra presos que têm “privilégios” como um aparelho de televisão na cela ou que fazem churrascos na cadeia, é muito mais tímida quando o alvo é a situação desumana do sistema prisional.
Leia a Nota Pública da Associação Juízes para a Democracia

As mortes em Manaus configuram a tragédia anunciada do punitivismo
A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre suas finalidades o respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, diante das dezenas de mortes ocorridas no privatizado Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) de Manaus, em 2 de janeiro de 2017, vem a público manifestar-se nos seguintes termos:
O massacre sucedido na capital do Amazonas somente ocorreu em razão de uma histórica política de Estado brasileira, consistente no tratamento dos problemas sociais de um dos países mais desiguais do mundo como caso de polícia. É assim que se deve entender o crescente processo de encarceramento em massa, que inseriu o Brasil à posição de quarta maior população carcerária do mundo, formada basicamente pelos excluídos dos mercados de trabalho e de consumo, jogados, em abandono, para as redes de organizações criminosas que comandam estabelecimentos penitenciários que se assemelham a masmorras medievais.
A tragédia do Compaj corrobora a necessidade da sociedade e do Estado brasileiro refletirem sobre tal política punitivista. É necessário desvencilhar-se da crença no Direito Penal como solução de problemas estruturais, como a violência decorrente da pobreza e das desigualdades. É necessário também cessar a irracional “guerra contra as drogas”, que vem causando a morte de milhares de pessoas socialmente excluídas em todo o mundo, o que, a propósito, tem levado a seu paulatino abandono até mesmo nos países que mais a incentivaram. 
A tragédia do Compaj corrobora, ainda, a importância do respeito à independência de juízas e juízes, como imperativo democrático. É o caso da fundamental atuação do Juiz da Vara de Execução Penal de Manaus, Luis Carlos Valois, que, coerentemente com o que defende em sua carreira acadêmica e conforme se espera de um magistrado no Estado de Direito, exerce controle rigoroso sobre o poder punitivo oficial, priorizando as liberdades públicas sobre o encarceramento: por tal motivo, desagrada os donos do poder, acomodados com o tratamento prevalentemente repressivo dos problemas sociais do país.
Por tudo isso, a AJD reitera sua histórica crítica ao crescimento do punitivismo estatal e clama para que a sociedade e o Estado brasileiro atentem que velhos problemas sociais do país não se resolvem com o encarceramento ou com a intimidação de juízas e juízes que exercem seu dever funcional de controlar o aparelho repressivo oficial.
Do contrário, a tragédia de Manaus continuará a não ser caso isolado.
São Paulo, 3 de janeiro de 2017. 
A Associação Juízes para a Democracia”.

Leia a carta enviada por Antônio Carlos de Almeida Castro à ConJur:

Vão querer colocar a responsabilidade na guerra entre facções, o estado do Amazonas e a União vão se declarar vítimas de grupos criminosos organizados. Ninguém assumirá a responsabilidade pela bestialidade que impera no sistema prisional. No nosso Judiciário, o Supremo já afastou a presunção de inocência e determinou a prisão antes do trânsito em julgado. “Que se danem os pretos, pobres, desassistidos, que entulham as cadeias brasileiras”, dizem, nas entrelinhas.
É necessário, numa visão tacanha e desumana de parte do Judiciário, “dar uma satisfação à sociedade”, e para responder parte da mídia que quer a prisão de 20 empresários da “lava jato”, mandam para a prisão milhares de pessoas sem culpa formada.
Quantos presos provisórios estão dentre estes mortos? Mas nenhum será destaque e manchete individual nos telejornais, pois são presos sem rosto, sem nome… Mas suas famílias existem e merecem nosso respeito. Que a sociedade volte os olhos para o massacre diário no sistema prisional brasileiro e que o Judiciário deixe de ser cúmplice deste massacre. A prisão antecipada é em boa parte responsável por esta barbárie. A vulgarização da prisão preventiva só alimenta este estado de coisa inconstitucional”.

*Texto alterado às 18h11 do dia 3 de janeiro de 2017 para acréscimos.
Fonte: http://www.conjur.com.br/

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