Skip links

Mulheres, advocacia e o sistema de justiça criminal

Carla Cristina Martins[1]

Em 1789, o ciclo conhecido como Revolução Francesa, teve início a partir do inconformismo burguês que contou com a participação popular, em razão da crise de precariedades enfrentada no país. Essa revolução é considerada um marco importante da história da humanidade, justamente por ter contribuído decisivamente na universalização dos direitos sociais e das liberdades individuais por meio da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que resultou na conquista de valores que primaram pela liberdade, igualdade e fraternidade[2].

A ascensão do sistema republicano orientado pela representatividade popular, hoje conhecido como democracia representativa também é resultado da Revolução Francesa, que sabidamente foi impactada pela difusão do Iluminismo[3].

Nesse cenário, não se pode perder de vista a contribuição das mulheres na Revolução Francesa, visto que organizaram protestos e marchas contra a limitação de alimentos, o poder do soberano. Sim, as mulheres foram para as filas conseguir pão, além de terem enfrentado riscos nos campos de guerra, tendo sido decisivas na escrita de cartas e petições que questionavam as políticas governamentais da época[4].

Ao passo em que a Revolução Francesa foi avançando e tomando um contorno mais radical, mulheres de influência na alta sociedade parisiense, as denominadas salonnières passaram a organizar reuniões que visavam influenciar na política e diplomacia da época.

Uma das salonnières mais destacada foi Marie Gouze, que escreveu sob o pseudônimo de Olympe de Gouges a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, ou seja, uma versão própria da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que se inicia com o seguinte texto[5]:

“Mães, filhas, irmãs, mulheres representantes da nação reivindicam constituir-se em uma assembleia nacional. Considerando que a ignorância, o menosprezo e a ofensa aos direitos da mulher são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção no governo, resolvem expor em uma declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados da mulher. Assim, que esta declaração possa lembrar sempre, a todos os membros do corpo social seus direitos e seus deveres; que, para gozar de confiança, ao ser comparado com o fim de toda e qualquer instituição política, os atos de poder de homens e de mulheres devem ser inteiramente respeitados; e, que, para serem fundamentadas, doravante, em princípios simples e incontestáveis, as reivindicações das cidadãs devem sempre respeitar a constituição, os bons costumes e o bem-estar geral. Em consequência, o sexo que é superior em beleza, como em coragem, em meio aos sofrimentos maternais, reconhece e declara, em presença, e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos da mulher e da cidadã: 

Artigo 1º – A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem. As distinções sociais só podem ser baseadas no interesse comum.”

A visibilidade e influência de Olympe de Gouges, culminou em sua implacável perseguição e, no dia 3 de novembro de 1793, ela foi decapitada na guilhotina por Robespierre[6].

Referidos fatos históricos sugerem que mulheres influentes e atuação social pagaram e ainda pagam o preço por escrever o destino que desejam seguir. A matriz de envolvimento feminino na Revolução Francesa pode ser percebida na luta diária e incansável das mulheres na Era contemporânea. Os desafios da atualidade são outros, mas os obstáculos têm a mesma raiz: a expropriação e a pauperização com o permanente ataque contra as mulheres[7].

A força pertencente às mulheres da contemporaneidade não pode perder de vista a gravidade da perseguição e massacre ocorrido desde a fase medieval (séculos XIV- XVIII), por meio da caça às “bruxas” realizada pela Inquisição, que foi responsável por incontáveis fogueiras que vitimaram mulheres por toda a Europa. Em referido período da humanidade as mulheres eram proibidas de expressar seus talentos ou saciar seus desejos mais íntimos e a qualquer manifestação era punida[8].

O presente texto busca trazer à tona uma reflexão sobre mulheres que no século XXI atuam como advogadas, em especial no sistema de justiça criminal e optaram pela busca por meio de seu exercício profissional de direitos e garantias como a liberdade, igualdade e fraternidade de cidadãos que lhe confiam o exercício de defesa.

Ao direcionar o campo de atuação, como especialista no sistema de justiça criminal, a advogada terá duas certezas inafastáveis: a vida e liberdade de pessoas dependerá do resultado de seu trabalho e o resultado de seu trabalho poderá lhe garantir independentemente do proveito financeiro, fama ou status, sentido para a sua própria existência.

A rotina que envolve a defesa de direitos e garantias assegurados pelo giro democrático apregoado pela CRFB/1988, frente ao sistema de justiça criminal, apresenta uma realidade que exige firmeza, conhecimento técnico/teórico aprofundado e humanidade, que permitem o destaque de mulheres que conquistaram e conquistam posições de respeito no meio jurídico.

Cada vez mais, o exercício da advocacia tem exigido o conhecimento relacionado às questões políticas, sociais, tecnológicas e culturais que refletem na visão ampla, atualizada e especializada na condução de estratégias defensivas capitaneadas por mulheres.

No acompanhamento de seus clientes em delegacias, fóruns ou tribunais de justiça, a mulher advogada deve ter a tranquilidade, firmeza e certeza que poderá garantir a plena defesa de seus clientes, em face da igualdade de atuação que jamais poderá lhe ser negada. O conhecimento técnico e diplomacia, na condução de situações dramáticas, permitem que resultados positivos sejam obtidos e, que a profissional seja conhecida e reconhecida com igualdade, que lhe é devida.

Desde a caça às “bruxas” e a Revolução Francesa, o destaque de mulheres inconformadas com o estado das coisas tem contribuído para estimular a atuação de mulheres e profissionais que desempenham uma multiplicidade de papéis, seja na vida pessoal ou profissional, com peculiar maestria, delicadeza e firmeza, sendo, pois, o exercício da advocacia no sistema de justiça criminal um desafio com inúmeras dificuldades, mas que fatalmente proporcionará genuína satisfação.

Palavras-chave: mulheres; advocacia; sistema de justiça criminal.


[1] Advogada criminalista há 16 anos, especialista em Processo Penal pela ABDConst e mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa (UAL).  E-mail: carla@cristinamartins.adv.br

[2] “HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções: 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 105.”

[3] Idem, p. 119.

[4] Mulheres de luta. Disponível em: https://www.mulheresdeluta.com.br/as-mulheres-na-revolucao-francesa/

[5] Idem.

[6] Idem.

[7] FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Título original: Caliban and the Witch: Women, the Body and Primitive Accmulation. Tradução: coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017. ISBN 978-85.93115-04-5.

[8] Idem.

X