No Brasil, ninguém é mesmo obrigado a produzir prova contra si?
Por Jorge Coutinho Paschoal – 15/09/2016
O direito ao silêncio está previsto no artigo 5.º, inc. LXIII. Embora o enunciado constitucional diga respeito ao imputado preso, prescrevendo-lhe o direito de ficar calado, tal direito, por uma interpretação lógica e abrangente, se aplica a todos os que estão submetidos, de algum modo, à persecução, estejam ele presos ou soltos.
Aliás, o direito em comento não se refere apenas às pessoas formalmente acusadas, podendo a testemunha – caso tenha que dizer algo que venha a incriminá-la – usar esse direito, sendo legítimo recusar a falar.
O direito ao silêncio, apesar de autônomo, decorre, também, do direito de defesa, mais propriamente da modalidade autodefesa, que pode, ou não, ser exercida pelo acusado; também está conectado à garantia da presunção de inocência, já que, sendo o imputado inocente até decisão condenatória transitada em julgada, ele não tem qualquer dever (ou melhor, ônus) em contribuir com as investigações.
É totalmente legítimo, pelo nosso ordenamento jurídico, que, em assim preferindo, o suspeito, imputado ou acusado se mantenha mudo.
Em alguns sistemas legais, se a pessoa decidir falar, haveria uma obrigação de dizer a verdade (EUA); entre nós, contudo, entende-se que, em prol de uma interpretação ampla do direito ao silêncio, seria admissível até mentir, ressalvada a hipótese de o acusado ser um delator.
A mentira, a nosso sentir, não pode ser tratada como um direito, pois parece estranho discorrer sobre um “direito à mentira”, como querem alguns; seja como for, caso o imputado minta, trata-se – via de regra – de um irrelevante jurídico, sem quaisquer conseqüências penais, a não ser que se minta acusando outra pessoa quando se sabe ser esta inocente, hipótese de denunciação caluniosa.
Decorrência também do direito ao silêncio é a impossibilidade de se adotarem medidas que visem a medir o grau de colaboração do sujeito, entre elas a aplicação de substâncias químicas que causem certo grau de inibição, ou soros da verdade, bem como detectores de mentira, os quais, além de implicarem violação ao direito ao silêncio, acarretam tratamento humilhante, vedado pela Carta Magna.
Do uso do direito ao silêncio não podem decorrer prejuízos ao suspeito ou imputado, caso contrário não haveria que se falar em um direito, mas em verdadeira armadilha, como bem aduz Maria Elizabeth Queijo.
Seja como for, juridicamente, está vedada qualquer interpretação prejudicial quanto ao seu uso, sendo causa de nulidade absoluta a apreciação negativa do uso do silêncio. Na prática, contudo, não é incomum autoridades fazerem juízo de valor desse direito, ainda que o magistrado não expresse isso na decisão.
Por lógica, o uso do direito ao silêncio não poder ser lido, ou interpretado, como crime de desacato ou desobediência, já que se trata do exercício regular de um direito. Embora prevista a condução coercitiva, é estranho que alguém tenha que ser obrigado a comparecer (sob vara) a interrogatório apenas para dizer que fará uso do silêncio.
Fernando da Costa Tourinho Filho reputa que o dispositivo teria certa utilidade quando for necessária a qualificação do imputado, na medida em que, com relação a esses dados, não se admitiria o uso silêncio, ou a mentira. Ora, não havendo qualquer questionamento quanto à identificação do sujeito, a melhor interpretação é que ninguém pode ser compelido (ou coagido) a comparecer a audiência ou ao ato de seu interrogatório, já que a pessoa detém o direito ao silêncio.
Por fim, em sentido amplo, o direito ao silêncio, decorrência do princípio do nemo tenetur se detegere, implica que o imputado, em tese, não tem dever de produzir provas contra si mesmo. Nesse sentido, teoricamente, não se poderia compelir o investigado a entregar documentos que o incriminem. Outrossim, a pessoa não poderia ser obrigada a participar da reconstituição dos fatos ou a fazer um exame grafotécnico. Para tanto, aliás, medida mais eficaz, legalmente prevista, será requerer aos órgãos públicos que encaminhem amostras da caligrafia.
Igualmente, o sujeito não é obrigado a se submeter ao bafômetro (etilômetro), sendo que, dessa negativa, para fins penais, não se pode inferir qualquer tipo de prejuízo, ou inversão do ônus da prova, como ocorre, por exemplo, em seara cível e administrativa.
Com relação a medidas menos invasivas – por exemplo, o comparecimento a um ato de reconhecimento -, não há, a nosso juízo, problemas na condução do suspeito para o ato. Quando não for necessária conduta ativa da pessoa, sendo necessária somente sua sujeição ao reconhecimento (uma conduta mais passiva), mostra-se obrigatório o comparecimento da pessoa. Contudo, não se pode compeli-la a falar, ou a fazer gestos, caretas ou mesmo – se estiver com o rosto baixo – a levantá-lo, pois se estaria diante de uma conduta ativa, vedada pelo direito ao silêncio.
No mesmo sentido, há o entendimento de que a pessoa não pode usar o direito ao silêncio para se submeter a um exame de Raio X, conduta passiva.
O STJ, aliás, foi além, já tendo oportunidade de se manifestar pela própria legalidade da ingestão de laxante, sob o argumento de que “é sabido que a ingestão de cápsulas de cocaína causa risco de morte, motivo pelo qual a constatação do transporte da droga no organismo humano, com o posterior procedimento apto a expeli-la, traduz em verdadeira intervenção estatal em favor da integridade física e, mais ainda, da vida, bens jurídicos estes largamente tutelados pelo ordenamento. 4. Mesmo não fossem realizadas as radiografias abdominais, o próprio organismo, se o pior não ocorresse, expeliria naturalmente as cápsulas ingeridas, de forma a permitir a comprovação da ocorrência do crime de tráfico de entorpecentes” (STJ, HC 149.146/SP, Rel. Min. OG FERNANDES, 6 Turma, julgado em 05/04/2011, DJe 19/04/2011)
Igualmente questionáveis medidas impostas a visitantes de presídios, como no caso de mulheres de presos, obrigadas a se submeterem a medidas vexatórias, a fim de se verificar se não estariam com drogas ou outros objetos em suas partes íntimas.
Diferentemente de outros sistemas, em que o direito ao silêncio diz respeito apenas às palavras, e não a medidas invasivas ao corpo (assim ocorre nos EUA, e, em regra, nos países europeus, que admitem intervenção corporal), sempre se interpretou, entre nós (ao menos teoricamente), que o corpo seria uma espécie de terreno sagrado.
Na Alemanha, só para se ter um exemplo, tamanha é a admissibilidade de medidas invasivas, que há notícia de aplicação de um instrumento chamado “falômetro”, a fim de se medir o grau de ereção peniana em suspeitos de crime pedofilia (há notícias, inclusive, de aplicação desse instrumento em homossexuais, na Europa, a fim de averiguar essa orientação, em casos de pedidos de asilos políticos de imigrantes perseguidos por isso).
Hoje, em nosso sistema, vem se mitigando a proscrição de qualquer intervenção corporal, admitindo-se a retirada compulsória de material genético, conforme reforma legal de 2012 nas regras quanto à Identificação Criminal e à Execução Criminal.
Embora antes, como regra, não se tolerasse que alguém fosse compelido a realizar uma prova mais invasiva, como a retirada do sangue para exame de DNA, ainda que à força, o panorama se alterou, com a lei 12.654/2012.
É possível, mediante ordem do juiz, compelir uma pessoa a fornecer o seu material genético. O mesmo ocorre em sede de execução penal, sendo uma medida, aliás, de cunho obrigatório, caso o sujeito seja condenado, definitivamente, a crime hediondo ou a lesão corporal grave contra a pessoa.
O assunto ainda não foi objeto de maior discussão quanto à sua constitucionalidade, sobretudo nos tribunais. Contudo, modernamente, com a adoção cada vez mais crescente da proporcionalidade, na vertente de Robert Alexy, é altamente provável que se considere constitucional esta legislação.
Questão interessante, no que tange ao direito ao silêncio, se refere à Lei de Crime Organizado no que diz respeito à possibilidade de infiltração de agentes, na medida em que o investigado é instado a falar e a revelar o crime (ele até mesmo é estimulado, mediante instigação da autoridade infiltrada), sem saber, entretanto, que está sendo investigado.
Há uma série de críticas a isso, entre elas o fato da própria indefinição quanto ao que seria uma organização criminosa e à dificuldade da incidência da Lei, asseverando-se que a possibilidade de infiltração de agentes feriria o direito ao silêncio.
Levada ao extremo, também a interceptação telefônica feriria o direito ao silêncio, ou não? Trata-se, contudo, de uma medida prevista na Constituição, não sendo possível, a nosso ver, suscitar eventual inconstitucionalidade, a não ser que se admita a teoria das normas constitucionais inconstitucionais.
Em se tratando de outras medidas não expressamente previstas na Constituição, será fatalmente feito uso (ou abuso) (d)o recurso da proporcionalidade, tal qual ocorre na legitimação da infiltração de agentes, ou na discussão quanto à regularidade de uma gravação clandestina e mediante escuta.
Um dos problemas da utilização do direito ao silêncio, como reconhece Maria Elizabeth Queijo, em sua clássica obra, é que pode implicar, na prática, tanto para o leigo (como ao jurado, no caso do Júri, daí a proscrição de se usar esse argumento, pela acusação) quanto para o juiz togado, um juízo ou indício de culpa. É a invocação do adágio de que quem não deve, não teme.
Por esta razão, a autora entende que o interrogatório deveria, de lege ferenda, ser um ato facultativo, como era na Lei de Imprensa.
O direito ao silêncio suscita, ainda hoje, uma série de questionamentos.
Por exemplo, o direito ao silêncio abrange um suposto direito de “apagar provas”? Se sim, teremos que repensar todo o instituto da prisão processual.
Outro exemplo: uma pessoa que cometeu um delito de trânsito, em homenagem ao direito ao silêncio, poderia se recusar a socorrer o acidentado, tendo o direito de fugir do local, deixando-o morrer? Em uma análise mais fria, poder-se-ia responder que sim. Contudo, como um exercício de alteridade, na hipótese de a vítima ser uma pessoa próxima de qualquer de nós, a resposta não parece ser tão simples assim.
Quanto ao uso – ou não uso – da palavra, parece não haver muito dissenso acerca da sua aplicação, não obstante a previsão do dever do colaborador premiado em falar a verdade implique novos questionamentos; no que tange às intervenções corporais, e ao princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, há uma forte tendência, no Brasil, em se restringir esse direito, seguindo-se tradição do direito estadunidense e europeu. Por isso, quando se ouvir falar que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, deve-se interpretar com ponderações tal observação.
Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP).
Fonte: http://emporiododireito.com.br/