No sistema brasileiro, delação premiada é como uma cuíca numa orquestra sinfônica
Por Sérgio Rodas
O instrumento da colaboração premiada foi importado do Direito norte-americano sem que fosse devidamente adaptado ao Brasil. Assim, no sistema penal nacional, a delação “é como uma cuíca numa orquestra sinfônica ou um violoncelo numa bateria de escola de samba”, afirma o criminalista Diogo Malan, sócio do escritório Mirza & Malan Advogados.
Segundo ele, o mecanismo ficou desbalanceado em favor da acusação no país. Para equilibrar o jogo, avalia, seria preciso aumentar as garantias do acusado. Nesse sentido, a norma que regula a cooperação premiada, a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013) deveria ser reformada para exigir que o Ministério Público mostre ao suspeito todos os elementos incriminadores que tem contra ele e estabelecer critérios que assegurem a voluntariedade da decisão do investigado de colaborar com as autoridades.
Alguns ministros do Supremo Tribunal Federal mostraram, nesta quinta-feira (22/6), que têm visão semelhante à de Malan. Ao analisarem se, em órgão colegiado, acordo de colaboração premiada deveria ser homologado por todos os magistrados ou apenas pelo relator do caso — opinião que vem prevalecendo —, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes opinaram que o Plenário deve poder revisar as cláusulas do compromisso quando for julgar a ação penal.
A banalização da prisão provisória na operação “lava jato”, avalizada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (PR, SC e RS), também é criticada por Malan. A seu ver, é “abusiva e ilegal” a detenção feita para coagir um acusado a firmar acordo de delação premiada.
Mas a elevação da prisão preventiva ao posto de primeira e, em muitos casos, única opção de medida cautelar não afeta apenas políticos e empresários. Pelo contrário: a medida tem um efeito dramático no superlotado sistema carcerário brasileiro. Para reverter esse cenário, o advogado – que é integrante do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – defende medidas de desencarceramento. Entre elas, a fixação de um prazo máximo de duração dessa forma de prisão provisória.
Professor de Direito Processual Penal da UFRJ e da Uerj, Malan lamenta que esta instituição tenha chegado ao seu atual estado, com aulas e salários atrasados. Ele torce para que a universidade seja preservada, ressaltando que a Faculdade de Direito da Uerj já formou grandes nomes da área, como os ministros do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux e Luís Roberto Barroso.
O advogado é filho de Pedro Malan, ministro da Fazenda no governo Fernando Henrique Cardoso. O economista que participou da elaboração do Plano Real não teve grande influência na escolha de Diogo pela área criminal. “Desconfio que ele preferia que eu trilhasse por outra especialidade na advocacia”, conta. Mesmo assim, o pai eventualmente o ajuda a entender as estruturas e modos de funcionamento de crimes econômicos e financeiros.
Em entrevista à ConJur, concedida em seu escritório, no Centro do Rio de Janeiro, Malan ainda atacou o desvirtuamento da condução coercitiva, sugeriu medidas para evitar a espetacularização de processos penais e declarou ser favorável a uma dramática redução do rol de autoridades com foro por prerrogativa de função.
Leia a entrevista:
ConJur — Que outras medidas o senhor acha que podiam estar no plano de desencarceramento?
Diogo Malan — Algumas medidas imprescindíveis são a fixação de um prazo máximo de duração da prisão preventiva, que hoje não existe, e a necessidade de o juiz criminal reavaliar periodicamente a necessidade de manutenção da prisão preventiva, entre outras.
ConJur — As grandes operações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, como a “lava jato”, estão rebaixando o direito de defesa e criminalizando a advocacia?
Diogo Malan — Existem hoje algumas ameaças às prerrogativas profissionais dos advogados. A principal dessas ameaças é uma certa tendência contemporânea à tentativa de criminalização do próprio exercício dessa atividade profissional. Essa tentativa se dá por três vias diferentes. A primeira delas é a imputação do crime de lavagem de dinheiro ao advogado que recebe honorários de origem supostamente maculada. A principal crítica que pode ser feita a essa tentativa é que o ato de auferir honorários advocatícios se situa no horizonte daquilo que o professor Luís Greco chama de “ações neutras ou cotidianas”.Ou seja, são ações praticadas no exercício de atividades profissionais cotidianas e lícitas, com uma finalidade própria e independente da vontade do autor do ilícito principal. Desde que o advogado cumpra as obrigações tributárias principais e acessórias, que decorrem da percepção de honorários, como emissão de nota fiscal e recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação, não me parece razoável querer criminalizar a sua atividade dessa maneira.
Uma segunda via é a imputação do crime de embaraço à investigação sobre organizações criminosas em razão de um concerto de versões entre dois investigados pelos mesmos fatos, ou um concerto de versões entre os seus respectivos advogados. Recentemente, o ministro Gilmar Mendes, ao conceder liminar no Habeas Corpus 141.478, ressalvou que o Supremo Tribunal Federal até hoje não deu uma resposta definitiva sobre a natureza lícita ou não desse tipo de acordo de versões. A crítica que pode ser feita é que o direito ao silêncio, consagrado na Constituição, sugere que esse tipo de concerto de versões integraria a estrutura normativa dessa garantia fundamental. Se o investigado pode mentir, silenciar ou omitir fatos que o incriminem, me parece plausível o argumento de que ele também poderia, no contexto do exercício da autodefesa, ajustar sua versão dos fatos com outro investigado. O fato de o Supremo Tribunal Federal até hoje não ter dado uma resposta definitiva sobre esse problema é negativo, porque gera insegurança jurídica e expõe o advogado criminalista a uma situação de risco.
E a terceira e última via é a violação do sigilo das comunicações telefônicas entre o advogado e seu cliente a pretexto de que se o alvo da interceptação telefônica é o cliente, as conversas com o advogado seriam interceptadas de maneira fortuita e, portanto, essa prova não seria ilícita. Esse é o entendimento adotado atualmente pelo Superior Tribunal de Justiça a partir do julgamento do Habeas Corpus 66.368.A principal crítica que pode ser feita a essa orientação jurisprudencial é que se o fundamento da inviolabilidade dessas comunicações telefônicas é o dever de sigilo do profissional da advocacia, pouco importa se o alvo original da interceptação é o advogado ou seu cliente— a prova será sempre ilícita. A única exceção a essa regra geral é quando o advogado atuar como co-autor ou partícipe de crimes praticados pelo seu cliente.
ConJur — As conduções coercitivas viraram uma prática comum nessas grandes operações. No entanto, há ações no STF questionando a constitucionalidade dessa prática. A seu ver, as condições coercitivas estão sendo desvirtuadas?
Diogo Malan — O Código de Processo Penal, no seu artigo 260, permite a condição coercitiva, por determinação da autoridade judiciária, do acusado que não atender a intimação para interrogatório, reconhecimento pessoal ou qualquer outro ato que sem ele não pode ser realizado. O fundamento dessa previsão normativa é que o Código de Processo Penal tem um DNA extremamente autoritário. Ele foi enjambrado no Estado Novo varguista, inspirado no código fascista italiano, tratando o acusado como um mero objeto do poder punitivo e o interrogatório como meio de prova. E hoje se constata um uso massificado do instituto da condução coercitiva. Mas diversas críticas podem ser feitas a essa prática.
Em primeiro lugar, a própria lei estabelece como requisito da condução coercitiva a prévia tentativa de intimação formal do investigado, que não atende a essa intimação de maneira não justificada. O outro aspecto relevante é que o interrogatório hoje é visto não como um meio de prova, mas essencialmente como um meio de autodefesa do interrogando. Por isso, seu comparecimento ao interrogatório não deve ser visto como um dever, passível de sanção. Pelo contrário: é um direito renunciável pelo seu titular. A esperança que eu tenho é que o Supremo Tribunal Federal faça, ao julgar as Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental 395 e 444, uma interpretação conforme a Constituição desse artigo, excluindo a possibilidade de condução coercitiva do acusado para fins de interrogatório e mantendo as demais hipóteses previstas em lei.
ConJur — A operação “lava jato” vem ajudando a espetacularizar a Justiça Criminal?
Diogo Malan — A Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) deixa claro que o preso condenado e o preso provisório tem direito à proteção contra qualquer forma de sensacionalismo. Isso se aplica especialmente àquele preso que sequer foi julgado e, portanto, é titular do direito a ser tratado como se fosse inocente. No geral, me parece correta a ideia de que a publicidade do julgamento criminal é algo benéfico por permitir um controle popular e democrático sobre o sistema de administração da Justiça Criminal. O problema ocorre quando essa publicidade do julgamento passa a ser tão sistemática, maciça e prejudicial ao acusado que ela compromete e a serenidade e o respeito à garantia do julgamento justo, ou fair trial.
Existe um documentário, que eu sempre recomendo aos meus alunos, chamado Espetáculo: O Julgamento de Pamela Smart, que mostra claramente o efeito desse tipo de publicidade opressiva no julgamento. Há uma tese importante da professora Simone Schreiber que defende que, nessas situações de publicidade opressiva, o juiz criminal possa adotar algumas medidas para garantir o julgamento justo, como a suspensão do processo criminal e da fluência da prescrição criminal até que diminua o interesse da imprensa pelo caso; a inadmissibilidade de elementos produzidos pela mídia como prova e a abertura de direito de resposta ao acusado com relação à cobertura do seu próprio julgamento. Mas essa é uma questão de difícil solução, porque, em última análise, envolve um conflito entre dois valores democráticos extremamente relevantes:a liberdade de imprensa e o direito do acusado de ter um julgamento justo.
ConJur — Tivemos alguns episódios na “lava jato”, primeiro com o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado e políticos do PMDB, depois com o sócio da JBS Joesley Batista e Michel Temer e Aécio Neves, nos quais um interessado em fazer acordo de delação premiada grava conversa sobre possíveis crimes. Essa é uma medida legítima?
Diogo Malan —Falando em tese, o Supremo Tribunal Federal hoje considera que é lícita a prova que consiste na gravação ambiental de sinais acústicos feita por um dos interlocutores, ainda que sem conhecimento do outro. O ponto relevante é que o Estado e os seus agentes não podem instigar ou induzir o suspeito a cometer crime usando para tanto de um agente provocador. Isso configura o que a doutrina chama de meio enganoso de obtenção de prova, e viola o direito do investigado ao devido processo legal. Esse, inclusive, foi o entendimento adotado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos quando julgou o caso Teixeira Castro contra Portugal em 1998.
No Brasil, o STF editou a Súmula 145, que considera que o flagrante provocado, ou seja, aquele no qual o Estado induz o suspeito a cometer crime, é ilegal por haver crime impossível. Pelo que se noticia na imprensa, há situações práticas em que o Estado está adotando três métodos ocultos de investigação simultaneamente: colaboração premiada, ação controlada e captação ambiental de sinais acústicos. Isso desafia uma série de questionamentos: É legítimo o uso cumulado de métodos ocultos de investigação? Há previsão normativa para tanto? Há violação à proibição de excesso? Deve haver autorização judicial prévia e discriminada para cada método oculto de investigação empregado no caso concreto? A decisão judicial que autoriza o emprego desses métodos ocultos de investigação deve estar baseada em elementos mínimos de autoria e materialidade? O Estado pode, de maneira legítima, utilizar-se de um terceiro, que já celebrou um acordo de colaboração premiada ou almeja fazê-lo, como agente provocador? São questões ainda em aberto sobre as quais a doutrina e as cortes brasileiras terão que se debruçar muito em breve.
ConJur — A seu ver, quais que são os limites entre uma ação controlada e o flagrante provocado?
Diogo Malan — A ação controlada é um meio de investigação de organizações criminosas que consiste na obtenção de uma autorização judicial para que a Polícia Judiciária possa adotar medidas de monitoramento da atividade criminosa e adiamento da sua intervenção ostensiva. Por exemplo, adia-se uma prisão em flagrante até um momento considerado mais vantajoso na perspectiva da coleta de informações e provas.
O grande problema hoje é que o procedimento probatório regulado pela Lei 12.850/2013 tem lacunas, o que gera uma grande insegurança jurídica. É muito pertinente a sugestão feita pela professora Fernanda Villares de que esse procedimento deve ser aperfeiçoado, em primeiro lugar, pela exigência de um plano estratégico, que deve ser apresentado pela Polícia Judiciária ao Poder Judiciário, esclarecendo quais são os elementos informativos de autoria e materialidade do crime que já possui; quais são os fatos criminosos que estão sendo investigados; quais são os métodos ocultos de investigação que serão empregados durante a ação controlada e quais são os resultados práticos que se pretende obter com essa medida.
O segundo aperfeiçoamento seria fixar um limite temporal qualitativo, no sentido de que a ação controlada, embora não ficasse sujeita a um prazo temporal rígido, deveria cessar tão logo o Estado conseguisse obter elementos informativos mínimos para o oferecimento de denúncia contra o investigado. E, por fim, a ação controlada deveria sofrer um controle judicial mais intenso através da previsão de um dever de que a autoridade policial envie ao juiz relatórios periódicos sobre o andamento do processo.
ConJur — Afinal, o foro por prerrogativa de função é responsável por essa tão alardeada impunidade de políticos no Brasil?
Diogo Malan — O foro especial buscou inspiração na cultura jurídica do constitucionalismo ibérico, e é uma tradição do constitucionalismo brasileiro desde a Carta Imperial de 1824. O que se observa é que o catálogo de servidores públicos titulares do foro especial sofreu um processo contínuo e ininterrupto de expansão ao longo dos sucessivos regimes constitucionais brasileiros, hoje somando dezenas de milhares de servidores. E a principal crítica que hoje é feita é que os tribunais já se encontram sobrecarregados de recursos, e não tem condição de fazer instrução probatória e valoração de provas, como evidenciou o julgamento da Ação Penal 470, que trancou a pauta do Supremo Tribunal Federal durante várias semanas. Então, a solução possível é limitar o catálogo constitucional dos titulares do foro especial somente aos agentes políticos mais relevantes da República, como os chefes dos três Poderes e o Procurador-Geral da República, e mesmo assim apenas com relação a fatos praticados durante o exercício da função pública e em razão dela.
ConJur — Em ação que julga possíveis crimes de um político fluminense no STF, o ministro Roberto Barroso votou por restringir o foro privilegiado aos crimes cometidos no exercício da função. O STF tem poder para fazer essa mudança ou está invadindo a esfera do Congresso e legislando indevidamente?
Diogo Malan — A modificação dos cargos públicos titulares do foro especial é matéria reservada ao Poder Constituinte derivado. Portanto, trata-se de matéria que teria que ser objeto de emenda constitucional. Por outro lado, cabe ao Supremo Tribunal Federal interpretar a estrutura normativa e o alcance das normas que regem o foro especial. Então, existem argumentos jurídicos plausíveis a sustentar o argumento de que o STF pode, sim, fazer essa mudança.
ConJur — O ministro Gilmar Mendes indicou recentemente que o STF pode voltar a mudar a interpretação sobre a antecipação da execução da pena, de forma a só autorizá-la após condenação no STJ. A possível atual do STF e a ideia de Gilmar não contrariam expressamente a regra constitucional de que “ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória”?
Diogo Malan — A ruptura paradigmática que envolveu uma guinada de 180 graus na jurisprudência consolidada do próprio STF, a partir do julgamento do Habeas Corpus 126.292 e depois veio a ser confirmada durante o julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44, no ano passado, é passível de críticas. A primeira delas é que o texto constitucional, ao afirmar que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, impõe um importante limite semântico ao intérprete. Isso porque o Direito tem categorias conceituais consolidadas, e trânsito em julgado implica exaurimento de todas as instâncias recursais possíveis, inclusive as extraordinárias. Não se pode estabelecer o marco zero de sentido da expressão “trânsito em julgado”, contrária à tradição do Direito.
Outra crítica que pode ser feita é que a presunção de inocência tem uma carga genética e política importante, que envolve o repúdio a práticas autoritárias e abusivas das monarquias absolutistas francesas, que não só presumiam o acusado culpado como permitiam a aplicação de uma pena extraordinária se ao final do julgamento os juízes tivessem dúvida sobre a culpa ou inocência dele, e a suspensão do processo criminal até que o Estado conseguisse reunir provas suficientes para a condenação. A Revolução Francesa, de 1789, representa um movimento político de repúdio a esse tipo de abuso no exercício do poder punitivo do Estado, algo que não pode ser desprezado na interpretação da garantia da presunção de inocência.
Outro ponto importante é que quando o legislador constituinte de 1988 optou pela primazia do direito fundamental individual à presunção de inocência em detrimento de questões relativas à efetividade do poder punitivo do Estado, ele já fez um juízo de ponderação. Portanto, não cabe ao intérprete fazer um juízo de ponderação em sentido diverso. Outro ponto é que essa ruptura paradigmática acabou gerando uma grande insegurança jurídica. Até hoje há uma série de questões relevantes em aberto. Por exemplo, a prisão em segunda instância é automática? Se ela não é automática, quais são os seus pressupostos legais? São os mesmos pressupostos da prisão processual decretada em qualquer fase do procedimento? Se sim, essa alteração é irrelevante, porque o juiz sempre pôde, presentes razões cautelares para tanto, decretar a prisão do acusado em qualquer fase do procedimento e, logo, essa afirmação do STF seria redundante. Se os fundamentos da prisão decorrentes do acórdão condenatório de segunda instância são diversos e, portanto, não têm natureza cautelar, caberia ao STF esclarecer quais são os pressupostos dessa prisão. O fato é que a situação atual gera uma grande insegurança jurídica causada por decisões que, muitas vezes, têm natureza casuística e são pautadas por golpes de decisionismo judicial.
O caminho escolhido pela Suprema Corte no julgamento do HC 126.292 não foi o melhor, e torço para que a composição renovada da corte reveja o atual entendimento.
ConJur— Qual é o impacto dessa virada no entendimento do STF sobre execução da pena para o sistema penitenciário?
Diogo Malan — A situação atual do sistema penitenciário brasileiro, com base em levantamento feito pelo Ministério da Justiça em 2014, é a existência de mais de 620 mil presos, o que coloca o Brasil na 4ª posição mundial no ranking de encarceramento após EUA, China e Rússia. Se considerarmos os mandados de prisão pendentes de cumprimento, que são mais de 370 mil, a nossa população carcerária saltaria para cerca de 1 milhão de pessoas, ao mesmo tempo há um déficit de 354 mil vagas no sistema carcerário. No sistema penitenciário federal, segundo estimativa do Departamento Penitenciário Nacional, cada preso custa quase R$ 3 mil por mês. Ao mesmo tempo, hoje há um consenso que o sistema é brutalmente desumano. Tanto que o Supremo Tribunal Federal declarou um estado de coisas inconstitucional no âmbito do nosso sistema penitenciário ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, em decorrência de um quadro de violações sistêmicas, maciças e reiteradas aos mais básicos e comezinhos direitos fundamentais dos presos.
Hoje, há praticamente um consenso entre os estudiosos do tema que o sistema penitenciário brasileiro não permite a capacitação e a ressocialização dos presos, e provavelmente é um fator que aumenta os índices de criminalidade, ao permitir que presos sejam aliciados pelas facções criminosas que dominam o sistema. O sistema penitenciário brasileiro é caríssimo, desumano, disfuncional e criminógeno. E essa conjuntura de crise sistêmica do sistema penitenciário representa um problema social altamente complexo, com diversas dimensões, administrativa, cultural, legislativa, orçamentária, agravada por discursos autofágicos de terceirização de responsabilidade, principalmente entre os poderes Executivo e Judiciário.
O enfrentamento desse problema da superpopulação carcerária não comporta soluções simplistas. É preciso ousar, implementando uma agenda pública de políticas de desencarceramento, sob pena de um agravamento ainda maior do quadro atual, que já é caótico, e novas condenações do Estado brasileiro por parte da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Um caminho imprescindível é o debate sobre a adoção de uma pauta de políticas públicas de desencarceramento. Evidentemente que não se está a falar de um desencarceramento feito de maneira apressada, não criteriosa, mas um desencarceramento que seja feito de maneira prudente e seletiva.
ConJur — 28% dos presos no Brasil são acusados de terem praticado tráfico de drogas. É possível combater a crise carcerária e a superlotação do sistema sem pensar em alguma forma de descriminalização das drogas?
Diogo Malan — Um problema grave da legislação penal brasileira é que ela confere um grau de discricionariedade excessivo aos atores do sistema de administração da Justiça Criminal para definir o enquadramento típico do caso em posse ou tráfico de drogas. Problema que é agravado pelo fato de que os respectivos tipos penais possuem verbos sobrepostos. Um caminho seria adotar uma melhor diferenciação dos respectivos tipos penais de tráfico e de uso. E talvez até mesmo a criação de um tipo penal intermediário, que abarcaria a conduta dos pequenos traficantes de drogas.
ConJur — Que outras medidas o senhor acha que podiam estar nesse plano de desencarceramento?
Diogo Malan — Algumas medidas imprescindíveis são a fixação de um prazo máximo de duração da prisão preventiva, que hoje não existe e a necessidade de o juiz criminal reavaliar periodicamente a necessidade de manutenção da prisão preventiva, entre outras medidas.
ConJur — Como a regulamentação da delação premiada no Brasil, com a Lei 12.850/2013, mudou as investigações de organizações criminosas?
Diogo Malan — A adoção desse paradigma de Justiça Criminal negociada pela Lei 12.850/2013 é um reflexo direto da influência da cultura jurídica norte-americana no resto do mundo. O grande problema é que não houve uma preocupação de se verificar previamente a questão da compatibilidade entre o instituto da colaboração premiada e algumas características estruturais do processo penal brasileiro, como, por exemplo, o princípio da indisponibilidade da ação penal condenatória. Tratando-se de um instituto que é originário da família jurídica da common law — portanto, de uma família jurídica diversa da nossa romano-germânica — esse cuidado na importação da colaboração premiada deveria ter sido redobrado.
Duas principais críticas acadêmicas podem ser feitas ao instituto da colaboração premiada. Em primeiro lugar, o fato de que a liberdade do ser humano é um bem considerado fora do comércio, sobre o qual o Poder Judiciário, o Ministério Público e o defensor técnico do acusado não dispõem. Como o sistema de administração da Justiça Criminal não é um mercado persa, e a liberdade do acusado não é uma espécie de tapete, aberto a negociação, é no mínimo questionável a compatibilidade entre esse instituto e valores axiológicos que devem pautar o Estado, como, por exemplo, os princípios da legalidade e da moralidade.
Outro ponto que eu gostaria de salientar é que a natureza supostamente voluntária da adesão a um acordo dessa natureza, por parte do investigado, é comprometida pela coação resultante de uma ameaça, explícita ou velada, de aplicação de uma pena mais grave caso não seja celebrado o acordo. Por outro lado, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, ao julgar o Caso Togonidze contra Geórgia, em 2014, entendeu que nem o teor literal nem o espírito da convenção europeia de Direitos Humanos são incompatíveis com a renúncia às garantias processuais por parte do acusado, de acordo com o seu livre-arbítrio. Porém, a Corte de Estrasburgo coloca alguns requisitos. Em primeiro lugar, essa renúncia tem que ser genuinamente voluntária, o acusado tem que ser plenamente informado sobre quais fatos lhe estão sendo imputados e quais são suas consequências legais, e o acordo tem que ser submetido a um controle judicial eficiente.
Dito isso, o instituto da colaboração premiada mudou radicalmente a estratégia de investigação da criminalidade econômico-financeira complexa, e esse instituto veio para ficar. Ele deve ser objeto de constante aperfeiçoamento, adotando algumas garantias adicionais que foram omitidas pela Lei 12.850/2013. Em primeiro lugar, deve haver exigência de que o acusador possua uma base empírica idônea, uma justa causa sobre a autoria e materialidade do ilícito para poder iniciar a negociação. Além disso, o acusador deve ter o dever de divulgar previamente ao acusado todos os elementos informativos incriminadores que ele tem em sua posse. Deve haver uma previsão legal detalhada de todas as condições que podem ser oferecidas pelo acusador ao investigado durante a negociação do acordo, sendo proibidas aquelas penas ilegais ou imorais.
Devem existir medidas que assegurem a natureza voluntária da aceitação do acordo pela dispensa de uma assistência jurídica efetiva ao investigado durante todo o processo, e a proibição do uso de quaisquer meios de coação ou enganosos para induzi-lo a aceitar o acordo, como, por exemplo, falsas promessas. Por fim, deve haver um controle judicial sobre o acordo que não seja meramente formal, mas um controle de natureza efetiva. Por exemplo, nos acordos sobre a pena do sistema jurídico norte americano, o magistrado, ao homologar o plea bargain, deve avaliar se o acusador, ao formular a proposta de barganha, tinha o que a doutrina norte-americana chama de factual basis [base fática], a base empírica idônea.
ConJur — Da forma como está regulamentada no Brasil, a delação premiada é coerente com o sistema penal e processual penal brasileiro?
Diogo Malan — Não. No âmbito do sistema penal brasileiro, a delação premiada é como uma cuíca numa orquestra sinfônica ou um violoncelo numa bateria de escola de samba. Isso porque no sistema norte americano, em primeiro lugar, existe um controle popular sobre as atividades do acusador, que em regra é eleito e reeleito pelo voto dos membros da comunidade. Em segundo lugar, a ação penal condenatória é regida pelos princípios da oportunidade e da disponibilidade, que são justamente os princípios opostos àqueles adotados pelo legislador brasileiro. No julgamento pelo júri norte americano, o acusador se depara com ônus probatório e argumentativo altíssimo, porque ele deve convencer 12 jurados sobre a culpa do acusado. Ou seja, exige-se um veredicto unânime para a condenação, o que significa que o defensor técnico do acusado chega à mesa de negociação do acordo com cartas de naipe muito mais alto na manga do que o seu colega brasileiro, que se depara com um julgamento feito por um único juiz togado.
ConJur — A seu ver, o chefe de uma organização criminosa pode firmar acordo para delatar seus subordinados? Ou só é possível delatar quem está acima na hierarquia do grupo?
Diogo Malan — Não há essa vedação expressa no texto legal. O que se observa na prática é que a estratégia persecutória tende a favorecer as colaborações premiadas que são ascendentes do ponto de vista vertical. Busca-se com mais frequência a negociação de acordos com pessoas de escalões intermediários ou inferiores, que visam à incriminação de figuras mais proeminentes, seja no organograma de uma empresa privada, seja na própria estrutura da máquina estatal.
ConJur — Acordo de delação premiada que estipula o cumprimento da pena a partir da assinatura do compromisso, sem sentença, viola a presunção de inocência e o devido processo legal?
Diogo Malan — O colaborador premiado, em regra, deve ser denunciado formalmente, conjuntamente com as pessoas que ele incrimina em sua delação. Portanto, a última palavra sobre a pena a ser aplicada é do Poder Judiciário, não do Ministério Público. O Poder Judiciário não fica vinculado aos termos do acordo de colaboração celebrado com o Ministério Público. O cumprimento da pena só pode ocorrer após o trânsito em julgado da sentença condenatória.
ConJur — Há quem afirme que a coação para que um acusado firme acordo de delação premiada é uma espécie de tortura. O senhor concorda com essa crítica?
Diogo Malan — Conceitualmente, todo acordo de colaboração premiada envolverá algum grau de coação exercido sobre o investigado. Até porque se o investigado não sofresse nenhum tipo de coação, dificilmente ele teria um incentivo para celebrar um acordo dessa natureza. A grande dificuldade é separar aquele grau de coação que é proporcional e não viola o requisito da voluntariedade para o acordo ser homologado pelo Poder Judiciário daquele grau de coação que é excessivo, e deve levar o Judiciário a rejeitar a homologação do acordo.
ConJur — Há realmente, na operação “lava jato”, uma estratégia de prender preventivamente para forçar o suspeito a firmar acordo de delação premiada?
Diogo Malan — As prisões decretadas no âmbito da “lava jato” preocupam bastante os estudiosos do tema, pois o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (PR, SC e RS) estabeleceu um novo paradigma da prisão processual, criado ao que tudo indica especificamente para a operação. Por ser uma medida cautelar extremamente gravosa, a prisão preventiva está sujeita a um regime de legalidade estrita. Não cabe ao juiz decretá-la fora daquelas circunstâncias previstas de maneira expressa e taxativa na lei. Então, vejo com grande preocupação o fato de um tribunal brasileiro fazer referência a um novo paradigma da prisão processual. No horizonte do Estado Democrático de Direito, o único paradigma legítimo da prisão processual é o condicional e convencional. Se determinada prisão é decretada com o objetivo de coagir o preso a celebrar um acordo dessa natureza, ela é uma prisão que está em desvio de finalidade. Portanto, é abusiva e ilegal.
ConJur— No ano passado, o senador Renan Calheiros defendeu que houvesse uma reforma na Lei das Organizações Criminosas para proibir a celebração de acordo de delação premiada com réu preso. O que o senhor pensa dessa proposta?
Diogo Malan — Não tenho opinião formada. Por um lado, é uma proposta que, em tese, poderia evitar esse risco de prisões decretadas com a finalidade velada de induzir o preso a celebrar um acordo dessa natureza. Por outro, é uma inovação prejudicial aos próprios acusados, na medida em que se retiraria daqueles que respondem presos a possibilidade de celebrar um acordo dessa natureza que, muitas vezes, pode integrar uma estratégia de defesa.
Fonte: www.conjur.com.br