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O acesso do advogado às investigações e a nova lei de abuso de autoridade

A nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019) , em seu art. 32, diz: “Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.”

Apesar das críticas de que a nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019) possui dispositivos muito abertos e não obstante as críticas de que seus dispositivos são de aplicação quase nula, o art. 32 prestigia a prerrogativa dos advogados, mas, na verdade, criminaliza algo que já possuía reprovação penal na Lei 4.898/1965 (art. 3º, alínea “j”). O legislador traz o verbo “negar”, que significa, no contexto da nova Lei de Abuso de Autoridade, “rejeitar” ou “recusar”. Há quem diga que o verbo “negar”, no caso desse tipo penal, teria o significado de “impedir” ou “proibir”.

O legislador, após o núcleo do tipo, diz, no art. 32, “ao interessado, seu defensor ou advogado”. Aqui o “interessado” não é apenas o “investigado” ou o “indiciado” em inquérito policial, mas também o “ofendido” (vítima de uma infração penal), o qual estaria abrangido pelo emprego da palavra “interessado”. Ora, se o ofendido ou seu representante legal, com base no art. 14 do CPP, pode requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade, é evidente que ele (ofendido) tem interesse no desfecho do inquérito policial e, por consequência, tem interesse em ter acesso aos elementos de prova já documentados. Até mesmo uma testemunha poderia estar incluída dentro da definição de “interessado”. Também se fala em “seu defensor” no texto legal e aqui o defensor não seria apenas o advogado constituído pelo investigado ou autor do crime, mas também seria o advogado da vítima (ou advogado de qualquer testemunha que depôs ou irá depor no inquérito policial), porquanto na definição de defensor, para efeitos da incidência da nova Lei de Abuso de Autoridade, não estaria apenas o advogado do autor do fato criminoso, mas qualquer advogado que defende ou patrocina, por exemplo, os interesses da vítima. De qualquer forma, o tipo penal, além de se referir ao “seu defensor”, traz expressamente o emprego da palavra “advogado”, razão pela qual não há dúvidas de que estará configurado o crime de abuso de autoridade quando o advogado da vítima (ou mesmo de uma testemunha) for impedido de ter acesso ao inquérito policial. Há quem possa dizer que a testemunha não estará incluída na definição de “interessado”, mas se a Lei 8.906/1994, em seu art. 7º, inc. XIV, reza que o advogado tem o direito de examinar os autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, mesmo sem procuração, parece ser evidente que qualquer pessoa a ser chamada para depor como testemunha no inquérito policial poderá contratar um advogado, o qual, por sua vez, irá à delegacia de polícia e terá acesso às investigações (provas já documentadas), mesmo não apresentando à autoridade policial a procuração outorgada pela testemunha. Vale ressaltar que o fato de a testemunha, antes de prestar o seu depoimento, ter acesso, por meio de seu advogado, ao conteúdo do inquérito policial não lhe dá blindagem para fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade em relação aos fatos em investigação, pois o Código Penal prevê o crime de falso testemunho (art. 342). No entanto, não se desconhece aqui que a pessoa, mesmo chamada para depor perante a autoridade policial na condição de testemunha, tem o direito de não se autoincriminar (STF: RHC 122.279), ou seja, poderá exercer o “direito de mentir” ou permanecer em silêncio quando a pergunta que lhe for feita implicar sua incriminação (STF: HC 136.331 e HC 171.300), razão pela qual é evidente que, nesse caso, a testemunha estaria dentro da definição de “interessado” dada no art. 32 da nova Lei de Abuso de Autoridade. Poder-se-ia dizer que o acesso do advogado da testemunha ao inquérito policial permitiria a quebra da incomunicabilidade prevista no art. 210 do CPP, dispositivo que, segundo alguns, seria aplicável também ao âmbito do inquérito policial, mas mesmo se fosse prevalecer tal entendimento, bastaria apenas que a autoridade policial notificasse as testemunhas para deporem no mesmo dia e, invocando o art. 7º, § 11, da Lei 8.906/1994, retardasse, por poucas horas, o momento da juntada dos termos de depoimento aos autos do inquérito policial, de modo que umas não soubessem os depoimentos das outras e, dessa forma, poderia ser evitado que o advogado de uma testemunha contasse a esta o que foi falado pela outra testemunha. Jamais, porém, deve ser o advogado do indiciado ou do investigado ser impedido de ter acesso ao conteúdo dos depoimentos que já foram prestados e, por consequência, se tornaram elementos de prova já documentados. Vale ressaltar que o Estatuto da Advocacia, em seu art. 7º, inc. XXI, reza que o advogado tem direito de “assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente (…)”. Ora, note-se que o Estatuto da Advocacia em fala em “assistir” (prestar assistência) a seus clientes investigados “durante a apuração de infrações”; portanto, se fosse intenção do legislador restringir a participação do advogado apenas ao interrogatório do indiciado/investigado, o inc. XXI do art. 7º diria “durante o interrogatório” em vez de dizer “durante a apuração de infrações”, razão pela qual se conclui que o advogado pode acompanhar, não apenas o momento das declarações do investigado, mas também presenciar a colheita dos depoimentos de todas as testemunhas. Guilherme de Souza Nucci, na 8ª edição do seu manual de processo penal e execução penal, afirma que o sigilo do inquérito não pode significar a exclusão da participação do advogado como ouvinte e fiscal da regularidade da produção das provas, caso deseje estar presente.

Se pretendesse o legislador restringir o alcance da palavra “interessado” do art. 32 da nova Lei de Abuso de Autoridade apenas ao investigado do inquérito policial, excluindo, por exemplo, a vítima, o tipo penal faria como fez a Súmula Vinculante nº 14 do STF, a qual expressamente fala em acesso amplo aos elementos de prova no que diz respeito ao “exercício do direito de defesa”, expressão que, sem dúvida alguma, refere-se ao investigado ou indiciado.

Outrossim, o terceiro de boa-fé igualmente pode ser considerado “interessado” quando, por exemplo, teve um bem móvel apreendido pela autoridade policial e o seu advogado precisa ter acesso ao inquérito policial para realizar o pedido de restituição do bem em questão. Os defensores públicos dos Estados ou da União também estão logicamente incluídos na expressão “seu defensor”.

A nova Lei de Abuso de Autoridade refere-se “aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa”. Negar ao advogado o acesso ao termo circunstanciado (TC ou TCO), previsto na Lei 9.099/95 e destinado às chamadas infrações de menor potencial ofensivo, pode constituir o crime de abuso de autoridade previsto no art. 32 da Lei 13.869/2019. Da mesma forma, negar ao advogado o acesso ao inquérito policial (infração penal) ou ao inquérito civil (infração civil) pode igualmente caracterizar o crime de abuso de autoridade. Negar ao advogado o acesso à chamada apuração preliminar e à sindicância, ambas instauradas por Tribunais de Justiça ou por órgãos da Administração Pública da União, dos Estados e dos Municípios com o objetivo de investigar infração administrativa, pode constituir o crime de abuso de autoridade previsto na Lei 13.869/2019. Negar ao advogado o acesso ao procedimento investigatório criminal (PIC), instaurado pelo Ministério Público com a finalidade de apurar a ocorrência de infrações penais, pode caracterizar o crime de abuso de autoridade. Se o Ministério Público, por exemplo, recebe uma denúncia anônima de ato de improbidade administrativa e decide instaurar uma “investigação preliminar” com o objetivo de colher elementos mais palpáveis para somente depois instaurar o inquérito civil, que também não deixa de ser um procedimento investigatório, nesse caso a “investigação preliminar” iniciada pelo Ministério Público poderia ser incluída dentro da definição de “autos de investigação preliminar” dada pelo legislador no art. 32 da Lei 13.869/2019. Não importa o nome que se dê aos procedimentos instaurados ou iniciados para apurar as infrações penal, civil e administrativa, não poderá a autoridade negar ao advogado o acesso a esses procedimentos.

O tipo penal faz ressalva ao “acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível”. Aqui não há nenhuma novidade, pois o art. 7º, §11, da Lei 8.906/1994 já menciona que a “autoridade competente poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências” (parágrafo incluído pela Lei 13.245/2016). Portanto, se há, por exemplo, uma interceptação telefônica em andamento, não pode o advogado ter acesso aos elementos de prova que o façam saber a existência dessa diligência em curso.

O art. 20 do CPP diz que a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade. É necessário distinguir o sigilo externo, destinado a impedir a divulgação de informações do inquérito policial aos jornalistas e ao público em geral do chamado sigilo interno (art. 7º, §11, da Lei 8.906/1994), que tem por objetivo garantir a eficiência da investigação, que poderia ser arruinada com a cientificação prévia de certas diligências pelo investigado ou por seu advogado. O sigilo externo não pode servir de óbice para negar ao advogado o acesso ao inquérito policial, posto que o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994) lhe assegura o direito de examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital (art. 7º, inc. XIV). Destarte, a exigência de apresentação de procuração que algumas autoridades policiais fazem para que o advogado possa ter acesso ao inquérito constitui nítida e flagrante ilegalidade, salvo se o inquérito policial estiver em sigilo (ou segredo de justiça), determinado expressamente pela autoridade policial por meio de lançamento nos autos de decisão administrativa devidamente fundamentada (hipótese 1) ou determinado expressamente pela autoridade judiciária por meio de lançamento nos autos de decisão judicial devidamente fundamentada (hipótese 2) ou imposto expressamente pelo legislador (hipótese 3) como no caso do disposto no art. 234-B do CP, dispositivo que, embora mencione “processos”, deve, sem dúvida alguma, ser aplicado na fase investigatória, tratando-se, então, de hipóteses em que incidirá o que dispõe o art. 7º, §10, da Lei 8.906/1994.

No caso dos inquéritos policiais militares, o art. 16 do CPPM reza que o inquérito é sigiloso, mas seu encarregado pode permitir que dele tome conhecimento o advogado do indiciado. Neste caso, como o sigilo é expressamente imposto por lei, será necessário que o advogado do militar indiciado apresente procuração para ter acesso ao inquérito policial militar, havendo incidência do disposto no art. 7º, §10, da Lei 8.906/1994.

Não se pode esquecer também o disposto na Lei 12.850/13: “Art. 23. O sigilo da investigação poderá ser decretado pela autoridade judicial competente, para garantia da celeridade e da eficácia das diligências investigatórias, assegurando-se ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento. Parágrafo único. Determinado o depoimento do investigado, seu defensor terá assegurada a prévia vista dos autos, ainda que classificados como sigilosos, no prazo mínimo de 3 (três) dias que antecedem ao ato, podendo ser ampliado, a critério da autoridade responsável pela investigação.”

IVAN RAFAEL BUENO, Advogado Criminalista, Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas pela Faculdade de Direito de Franca e Presidente da OAB de Sertãozinho/SP nos triênios 2016/2018 e 2019/2021.

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