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O Alcance da Presunção de Inocência na Constituição de 1988 César de Faria Júnior – Parte 1

RESUMO: O objetivo deste trabalho é o estudo do alcance da presunção de inocência da forma como disciplinada na Constituição de 1988, com relação à possibilidade da “execução provisória da pena”, logo após decisão condenatória em 2a instância, analisando os argumentos discutidos nas últimas decisões do Supremo Tribunal Federal, marcadamente dividido por esta relevantíssima e polêmica questão constitucional.
SUMÁRIO: 1. A UNIVERSALIDADE DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. 2. NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. 3. O ARGUMENTO DA “LEI DA FICHA LIMPA”. 4. O CPP FASCISTA DE 1941 X CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA DE 1988. 5. REPERCUSSÃO DO NOVO CPC. 6. A ABSORÇÃO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NOS ÚLTIMOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO: POSIÇÃO DO STF. 7. O ART. 283 E AS AÇÕES DIRETAS DE CONSTITUCIONALIDADE (ADC’S 43 E 44). 8. DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO, CELERIDADE PROCESSUAL E SENSAÇÃO DE IMPUNIDADE. 9. CONCLUSÃO: ESTATÍSTICAS DE APRISIONAMENTO, SELETIVIDADE PENAL E SEPARAÇÃO DOS PODERES.
PARTE I
1. A UNIVERSALIDADE DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA.
“Tout homme ètant presume innocent”
(Todo homem deve ser presumido inocente)
1 1 Advogado Criminalista, Professor Doutor da Faculdade de Direito da UFBA, Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e da Comissão Nacional de Judicialização e Amicus Curiae da ABRACRIM.
O princípio da presunção de inocência aparece pela primeira vez com a eclosão da Revolução Francesa, sob as luzes do Iluminismo, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Paris, 1789), que, no seu art. 9o, proclamou:
“Tout homme ètant presume innocent, s’il é jugé indispensable de l’arreter, toute rigueur qui ne serait pas necessaire pour s’assurer de ça personne doit être sévérement reprimé par la loi”. (Todo homem deve ser presumido inocente, e se for indispensável detê-lo, todo rigor que não seja necessário {para submeter a pessoa}, deve ser severamente reprimido por lei).
Observa-se, portanto, que o princípio da presunção de inocência já nasce correlacionado à prisão (proibição do excesso).
Após a 2a Guerra Mundial, com a criação da ONU – Organização das Nações Unidas, foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos do Homem (Paris, 10/12/1948), trazendo, em seu art. 11, a presunção da inocência como um direito, nos seguintes termos:
“Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no que lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.”
No mesmo sentido, a Convenção Européia dos Direitos do Homem (Roma, 1950), que instituiu o TEDH – Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, ao tratar do “Direito a um Processo Equitativo”, no seu art. 6o, incluiu a presunção de inocência como um dos seus elementos fundamentais, no item 2:
“Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada.”
Também o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Nova York, 1966) refere-se, quase nos mesmos termos2, à presunção de inocência como um direito, uma garantia de natureza processual do acusado.
2 “Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não
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for legalmente comprovada sua culpabilidade, conforme a lei.”
Igualmente como um direito, aparece a presunção de inocência na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Costa Rica, 1969), mais conhecido como “Pacto de São José da Costa Rica”, art. 8o, 2, primeira parte:
“Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.”
No mesmo diapasão, encontra-se na Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (Nairóbi, Quênia, 1981), art. 7o, n. 1, letra “b”:
“1. Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja apreciada. Esse direito compreende:
b) O direito de presunção de inocência, até que a sua culpabilidade seja estabelecida por um tribunal competente;[…]”
Destarte, a presunção de inocência passou a ser um princípio, um direito, uma garantia universal de toda e qualquer pessoa acusada de delito, o que não implicou em ser tratada da mesma forma, nem com a mesma abrangência, por todas as Constituições dos Estados.
2. NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988.
Após um longo período de repressão, os representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte, promulgaram, em 05/10/1988, a atual Carta Magna, para instituir um Estado Democrático de Direito, tendo por fundamento essencial a dignidade da pessoa humana, consagrando, no “Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, o princípio da presunção de inocência, de forma clara e cristalina, ainda que em linguagem inversa da tradicional expressão (presunção de inocência), ao assegurar que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (Art. 5o, LVII).
Trata-se de princípio basilar da nossa Carta Política, tanto que não pode sequer ser objeto de proposta de emenda à Constituição (PEC), nos precisos termos do art. 60,
§ 4o, IV: “não pode ser objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais”.
Como visto no tópico anterior, os Pactos, Tratados e Convenções internacionais consagraram a presunção de inocência, assegurando que tal postulado não pode deixar de ser observado “até que o acusado seja declarado culpado”3, ou “até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei”4, ou mesmo “enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada”5, “enquanto não se comprove legalmente sua culpa”6 ou, em termos ainda mais simples, “até que se prove sua culpabilidade”7, permitindo a cada Estado signatário estabelecer, de acordo com sua legislação, o marco jurídico até onde subsiste a presunção de inocência, sempre observando os demais princípios e garantias processuais (devido processo legal), não podendo limitá-la, inexistindo, contudo, qualquer proibição de estendê-la.
Foi assim que Portugal estatuiu na sua atual Constituição de 1976, que:
“Art. 32.2. Todo argüido se presume inocente até o trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias da defesa.”
Tendo sido signatário da Convenção Européia dos Direitos do Homem, oficialmente denominada “Convenção para a Proteção dos Direitos do homem e das Liberdades Fundamentais”, Portugal ratificou referido Pacto através da Lei 65, de 13/10/1978, declarando a aceitação da jurisdição do Tribunal Europeu de Direitos do Homem – TEDH, para os assuntos relativos à interpretação e aplicação da Convenção (art. 64),8 sem que tenha tal Tribunal jamais questionado a amplitude da garantia da presunção de inocência estabelecida pela Constituição Portuguesa.
No mesmo sentido, a vigente Constituição Italiana, promulgada em 22/12/1947:
3 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, art. 9o.
4 Declaração Universal dos Direitos do Homem, art. 11, I.
5 Convenção Européia dos Direitos do Homem, art. 6o, n. 2.
6 Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 8o, 1.
7 Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, art. 26.
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6
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8
Internacionais e Constituições do Brasil e Portugal, Curitiba: Juruá, 2009, p. 35/36.
BATISTI, Leonir. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, Apreciação Dogmática e nos Instrumentos
“Art. 27 – A responsabilidade penal é pessoal.
O imputado não é considerado réu até condenação definitiva.”
Também a Alemanha, igualmente subscritora da Convenção Européia dos Diretos do Homem, traz regra clara e inequívoca no sentido da exigência do trânsito em julgado, no vigente CPP Alemão, §449:
“As sentenças penais não são executáveis, enquanto não transitarem em julgado.”
Como por demais sabido, o Brasil, com a Constituição de 1988, também estabeleceu e de forma proibitiva que ninguém seja considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, e foi signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Costa Rica, 1969), incorporada ao ordenamento jurídico pátrio, através do Decreto Legislativo no 27, de 26/05/1992, após ser promulgada pelo Decreto Presidencial 678, de 06/11/1992, conforme permissivo constitucional, inserto no § 2o, do art. 5o, verbis:
“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
Por conseguinte, na matéria em discussão, no diálogo das fontes do direito nacional com o internacional, deve sempre prevalecer a interpretação mais favorável aos direitos e garantias assegurados, máxime quando expressos de forma mais garantista na Carta Magna, havendo de ser invocado também o consagrado Princípio da Primazia da Constituição.
3. O ARGUMENTO DA “LEI DA FICHA LIMPA”.
É sabido, ainda, que a Constituição brasileira, no mesmo Título II, quando trata no Capítulo IV, “DOS DIREITOS POLÍTICOS”, também exigiu o “trânsito em
julgado” para perda ou suspensão desses direitos, nos precisos termos do art. 15, incisos I e III:
“Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos caos de:
I – cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado;
III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;
Por conta disso, costuma-se invocar a declaração de constitucionalidade pelo STF (por maioria, ressalte-se) de dispositivos da Lei Complementar 135/2010, conhecida como “Lei da Ficha Limpa”, que passou a considerar inelegíveis não somente os que forem condenados por decisão transitada em julgado, mas também por decisão proferida por órgão judicial colegiado.
Mesmo com todo respeito que merecem as decisões da Suprema Corte, todavia ainda não estando convencido da constitucionalidade da LC 135/2010, sobretudo pelos fundamentos do voto divergente do decano do STF, Ministro Celso de Mello, é forçoso reconhecer a existência de uma diferença abissal entre não considerar de vida pregressa irreprovável para efeitos de ter seu nome sufragado pelos cidadãos, ou seja, possuir capacidade eleitoral passiva, aquele condenado por decisão colegiada ainda não transitada em julgado, e mandar para o cumprimento “provisório” de pena nas masmorras das prisões brasileiras quem ainda não pode ser considerado culpado pela Carta Magna.
4. O CPP FASCISTA DE 1941 X CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA DE 1988.
É preciso ter presente que o Código de Processo Penal ainda em vigor no Brasil foi instituído por um Decreto-Lei (Decreto-Lei N. 3.931, de 11/12/1041) do então Presidente Getúlio Vargas, em pleno “Estado Novo”, sob a égide da “Constituição outorgada de 1937”, declaradamente inspirado na reforma do processo penal da Itália de Mussolini e do seu Ministro Alfredo Rocco!
Basta lembrar alguns “princípios” expressos na sua “Exposição de Motivos”, redigida pelo Ministro Francisco Campos: “Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. Devemos reduzir ao mínimo as nulidades, ‘um meandro técnico por onde se escoa a substância do processo e se perdem tempo e a gravidade da justiça’”.
Nesse contexto, mesmo a restrição à aplicação do in dubio pro reu e a permissão do julgamento ultra petitum (“É restringida a aplicação do in dubio pro reu. (…) Não é consagrada a irrestrita proibição do julgamento ultra petitum.”) não destoavam da essência daquela famigerada constituição autoritária.
Por essa razão histórica, não é de se estranhar que, apesar de transcorridos mais de 40 anos e que muitas das suas disposições autoritárias tenham sido revogadas, ainda se encontrem no vigente Código de Processo normas que representam resquícios da sua inspiração inquisitorial.
Desse modo, quando da promulgação da Constituição Democrática de 1988, natural que houvesse um grande choque cultural, ideológico e normativo pelo seu rompimento com o modelo autoritário do vetusto CPP.
Assim encontrava-se, por exemplo, o art. 594 que exigia a prisão para apelar, a não ser que o réu fosse primário e de bons antecedentes (Lei 5.941/73), mas que logo passou a ter sua validade questionada, tanto pela doutrina, como na jurisprudência, pela incompatibilidade com os princípios democráticos da Constituição, dentre eles, a presunção de inocência, embora somente tenha sido revogado, expressamente, pela Lei 11.719/2008.
Em sentido semelhante, existia o art. 393, revogado pela Lei 12.403/2011, e o art. 637, permitindo a execução da pena antes do trânsito em julgado (“O recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença.”), ainda não revogado expressamente, mas, evidentemente, não recepcionado pela Constituição, por entrar em frontal colisão com o Postulado do Estado de Inocência até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Ressalte-se, que, contraditoriamente, revelando dar maior valor ao patrimônio do que mesmo à liberdade, este mesmo CPP de 1941 exige o trânsito em julgado da sentença penal condenatória para que se possa promover sua execução no juízo cível, para efeito de reparação do dano que nasce do delito, nos termos do seu art. 63. Se não, confira-se:
“Art. 63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.”
Relevante observar, ainda, que, pouco antes da promulgação da atual Constituição, a reforma da parte geral do Código Penal (Lei 7.209/84) e a nova Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) estabeleceram o “trânsito em julgado da sentença condenatória”, para execução de qualquer sanção penal, seja uma simples pena de multa ou restritiva de direitos: Arts. 50 e 51/CP, e arts.105, 147, 160 e 164/LEP.
De igual forma, até mesmo o vigente Código de Processo Penal Militar, instituído pelo Decreto-Lei 1.002 de 1969, não discrepa quanto à exigência do trânsito em julgado da sentença para a sua execução, independentemente de tratar-se de pena privativa de liberdade, ou de reforma, suspensão do exercício de função ou exclusão das forças armadas: Arts. 592, 594 e 604/CPPM.
Portanto, não fosse o princípio da primazia da Constituição, o próprio sistema processual penal exige o trânsito em julgado para a execução da pena, independente do recurso ter efeito suspensivo ou não, de modo que, enquanto a decisão condenatória for passível de modificação, não constituirá título exequível.
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