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O AUMENTO DO NÚMERO DE CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: EFEITO DELETÉRIO DA QUARENTENA

O AUMENTO DO NÚMERO DE CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:

EFEITO DELETÉRIO DA QUARENTENA

Maíra Fernandes[1]

Érika Thomaka[2]

Confinadas em seus lares, por causa da pandemia do Covid-19, as mulheres são duplamente ameaçadas: por um vírus potencialmente letal e por pessoas violentas de seu próprio convívio doméstico.

Desde a descoberta da doença, têm sido adotadas, ao redor do mundo, medidas que já se mostraram indispensáveis à sua contenção: distanciamento social, isolamento e quarentena. Não há dúvida do acerto da escolha, todavia, ela trouxe um grave efeito colateral: o aumento das ocorrências de feminicídio e de casos de violência doméstica contra mulheres, meninas e jovens.

Diversos países registraram tal aumento, como é o caso da Alemanha, Canadá, França, Reino Unido, China, Estados Unidos, Singapura e Chipre[3]. Trata-se, portanto, de um problema global.

Não à toa, a Corte Interamericana de Direitos Humanos publicou, no dia 09 de abril, manifestação com o objetivo de lembrar aos Estados suas obrigações internacionais e a jurisprudência daquela Corte, na qual destacou:

“Tendo em vista as medidas de isolamento social que podem levar a um aumento exponencial da violência contra mulheres e meninas em suas casas, é necessário enfatizar o dever do Estado de devida diligência estrita com respeito ao direito das mulheres a viverem uma vida livre de violência e, portanto, todas as ações necessárias devem ser tomadas para prevenir casos de violência de gênero e sexual; ter mecanismos seguros de denúncia direta e imediata; e reforçar a atenção às vítimas”[4].

Com efeito, é mandatório que o poder público atue de modo a minimizar os efeitos deletérios das medidas adotadas como forma de enfrentar o novo coronavírus.

Neste sentido, além de outras ações que visem conter os impactos da pandemia na vida das mulheres, as quais representam parcela da população mundial brutalmente atingida pelo novo vírus, a ONU Mulheres recomendou que as comunidades afetadas pela COVID-19 priorizassem os serviços de prevenção e resposta à violência de gênero[5].

No Brasil, os índices já eram bastante acentuados antes do COVID-19: de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, a cada 2 minutos uma mulher realiza registro policial por violência doméstica no país, o que totalizou, em 2018, 263.067 casos de lesão corporal dolosa[6].

Alarmantes, também, são os índices de violência sexual, praticados, na maior parte das vezes, no âmbito doméstico – 75,9% das vítimas possuem algum tipo de vínculo com o agressor, não raro seu cônjuge, pai, padrasto, avô, tio, irmão. Em 2018, foram contabilizados 66.041 registros de estupros, ou seja, uma média de 180 casos por dia, dos quais 81,8% praticados contra mulheres ou meninas. Quatro meninas até 13 anos são estupradas por hora no país, uma realidade assustadora e cruel[7].

Nesse cenário de caos, tornam-se particularmente preocupantes as notícias de aumento da violência doméstica contra a mulher, no contexto de isolamento social[8]. Estima-se que, no Rio de Janeiro e em São Paulo, o número de casos durante o período de confinamento tenha aumentado em 50%[9], dado que pode ser ainda maior, eis que o isolamento social dificulta, sobremaneira, os registros de ocorrências nas Delegacias de Polícia. Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Decode Pulse identificou um acréscimo de 431% dos relatos de briga de casais neste período de isolamento. Dentre 52.513 menções a relatos de brigas conjugais no Twitter, 5.583 indicavam ocorrência de violência contra mulheres[10].

De acordo com a Lei Maria da Penha, cabe ao poder público desenvolver políticas que visem “garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, bem como criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana[11].

Assegurar proteção às mulheres vítimas de violência doméstica que, agora, não têm alternativa senão permanecer 24 horas em casa com seus agressores, é, portanto, um desafio a ser enfrentado pelos três Poderes da República, nas esferas federal, estadual e municipal.

No âmbito do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu, no mês de abril, um grupo de trabalho dedicado a elaborar sugestões de medidas emergenciais para prevenir a violência doméstica[12]. A expectativa é a de que tal grupo elabore um diagnóstico da situação atual e pense sobre estratégias que possam contribuir para a maior rapidez e prioridade no atendimento das vítimas de violência doméstica e familiar[13].

Como primeiro resultado prático deste grupo de trabalho, CNJ e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), cientes de que o isolamento social representa mais uma dificuldade imposta às vítimas de violência doméstica à elaboração dos registros de ocorrências nas Delegacias de Polícia, lançaram a campanha “Sinal Vermelho” em 10 de junho de 2020.

O objetivo deste projeto é de que as vítimas sinalizem estarem em situação de violência doméstica mostrando aos atendentes das farmácias e drogarias parceiras (que já são 10 mil, espalhadas pelo país) um “x” vermelho desenhado na palma da mão. Os atendentes, por sua vez, ligarão imediatamente para o 190 a fim de reportar a situação[14].

Na Câmara dos Deputados, em 03 de abril de 2020, foi apresentado o Projeto de Lei n.º 1.444/2020, o qual prevê, em síntese, uma alteração na Lei Maria da Penha para determinar que, durante a emergência de saúde pública decorrente da pandemia do coronavírus, a União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios assegurem recursos extraordinários emergenciais para garantir o funcionamento das Casas-abrigo e dos Centros de Atendimento Integral e Multidisciplinares para Mulheres[15].

De fato, as notícias acerca do rápido aumento do número de casos de violência doméstica durante o isolamento social demonstram a necessidade da adoção de políticas públicas visando à proteção das vítimas. Por isso, o projeto de lei ora apresentado, que traz proposta de proteção para as mulheres, precisa ser aprovado, com a brevidade que a situação de calamidade requer.


É preciso que as mulheres tenham meios, mesmo durante a pandemia, de se libertar de quem deixou de ser cônjuge para ser carrasco. De nada adianta se proteger do mundo externo, se, em sua própria residência, a mulher for submetida a sessões diárias de maus tratos ou de tortura física, sexual, psicológica e moral, que, de igual modo, colocam suas vidas em risco e lhes causam imensa dor. O período de isolamento não pode se transformar em um cárcere no qual a vítima fica à mercê de seu agressor.



[1] Advogada criminal. Mestra em Direito e Especialista em Direitos Humanos pela UFRJ. Diretora da ABRACRIM Mulher, da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas e Vice-presidente da entidade no Rio de Janeiro. Coordenadora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais no RJ. Ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro. Uma das fundadoras do Movimento da Mulher Advogada.

[2] Advogada criminal. Membro da Comissão Especial de Estudos do Direito Penal da OAB/RJ.

[3] “Em abril, a ONU Mulheres divulgou dados sobre o aumento de violência doméstica desde o começo das medidas de isolamento social: na Argentina, Canadá, França, Alemanha, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos, autoridades governamentais relatam crescentes denúncias de violência doméstica e aumento da demanda para abrigo de emergência; a França já registrou 32% do aumento de casos de violência doméstica desde o começo do isolamento social – Em Paris, o aumento foi de 36%; na China, as denúncias de violência contra a mulher triplicou durante o confinamento; e Singapura e Chipre registraram um aumento de mais de 30% nas denúncias de violência doméstica.” In https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/….Acesso em 09.05.2020.

[11] “Art. 3º – Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

§ 1º – O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 2º – Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput.”.

[12] Grupo criado pela Portaria do CNJ n.º 70, de 22 de abril de 2020.

[15] O Projeto de Lei n.º 1.444/2020, ainda em tramitação, está disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2242763. Como último andamento, consta que, em 08.06.2020, a Mesa Diretora determinou a criação de uma Comissão Especial para analisar a matéria. Último acesso em 12.06.2020.

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