O DIREITO COMO CIÊNCIA
Por: Marcus Valério Saavedra
O conceito de ciência tem sido objeto, ao longo do tempo, de uma gama variada de interpretações. Contudo, hodiernamente, Ciência, sem ser apenas um conceito que expressa à validade global de seus postulados, designa o próprio objeto de sua investigação.
O vocábulo, portanto, implica a descrição evolucionista dos fenômenos do mundo objetivo.
Nesse contexto, é o Direito uma Ciência? Tem-se concebido a disciplina como Ciência Social Hermenêutica, embora, numa ótica mais acurada, tal classificação se ostente muito singela.
Com efeito, ao contrário das outras ciências sociais, o Direito se particulariza por via de exteriorizar uma mundividência ideal, que se traduz, em linguagem prática, no dever-se, além de ser uma ciência de cunho eminentemente axiológico.
Numa circunstância analítica mais profunda e objetiva, a ciência do Direito, trabalha com fenômenos sociais, aplicando um complexo sistema interpretativo-descritivo de fatos sociais, não limitados à mera valoração dos mesmos, num extenso processo de normas. Indo além da interpretação e revisando a própria norma, concebe segunda norma, desta feita, de natureza aplicativa.
São, portanto, dois os momentos interpretativos por que o Direito transita. Num primeiro, assim como as demais ciências, e tendo como estrutura o trinômio fato/valor/norma, constitui o processo legislativo de concepção da norma in abstratum.
Noutro momento, podemos dizer exclusivo e inerente à Ciência Jurídica, há o processo de efetiva aplicação do material abstrato, através da identificação da norma concreta ou efetiva.
Esses conceitos, pacíficos entre os estudiosos da ciência jurídica, para os quais, incontestavelmente, incorpora o Direito um ramo científico independente e autônomo, são, contudo, contestados por diversos autores, estudiosos de outras ciências que entendem que o Direito constitui apenas uma subdivisão da Ciência Política, nunca uma ciência desvinculada e autônoma.
Para esses cientistas, o Direito nada mais é do que um instrumento da Ciência Política, que tem como objeto de investigação a harmônica convivência em sociedade, a manutenção da paz social, utilizando a imposição da ordem estabelecida.
Eros Roberto Grau, citado por FRIEDE (Friede, 1999), leciona: “o Direito não se constitui propriamente em uma ciência”. Para esse autor, o Direito é estudado e descrito, sendo, pois, mero objeto de uma ciência, a Ciência do Direito.
Segundo ainda a ótica do referido estudioso, o Direito é normativo, não descritivo, mas prescritivo. Disso se depreende que, mesmo quando uma norma jurídica descreve certa coisa ou situação, ainda assim é prescritivo, isto é, ela descreve para prescrever.
Como decorrência, tem-se que a ciência jurídica não é como à primeira vista parece normativa, mas, como toda e qualquer ciência, descritiva.
Impera, por isso, um conceito diverso entre Direito e Ciência do Direito. Esta descreve, prescrevendo como, porque e quando o Direito.
Embora nem sempre os estudiosos do Direito percebam, o certo é que essa oposição é da mais alta importância, por isso que muitas vezes este fato é causa primeira de numerosos conceitos falaciosos.
Por isso mesmo que se têm, de um lado, os princípios do Direito e, de outro, os princípios da Ciência do Direito.
Afirma Friede (Friede, 1999), que o Direito é uma invenção do homem, “um produto cultural”.
É lógico que o abalizado autor se refere ao Direito, enquanto elemento integrante da cultura, e sem pretensão filosófica. De maneira bem didática, o renomado preceptor ensina que o Direito legítimo não é constituído somente pelo poder, assim como não deve a vontade do Estado prevalecer como fonte desse mesmo Direito.
Em síntese, viu-se o Direito em face de sua qualidade de ciência, em consonância com esse conceito, passando pela diferença existente entre o Direito propriamente dito e a ciência do Direito, chegando-se, por fim, à menção superficial aos elementos constitutivos do Direito.
Neste trabalho, que não tem a pretensão de profundidade, mas de simples noções elementares, nem por isso pode olvidar a importância, posição e pensamento de Paulino Jacques sobre a matéria ora sob enfoque, notadamente quanto à liquidez universal dos princípios do Direito.
As idéias de Jacques chamaram a atenção para um possível equívoco em que estão a incorrer os defensores da ciência do direito, como ramo científico independente.
É evidente que o Direito não possui princípios de validez universal, justamente por ser, como fez questão de assinalar Fried, que ele é produto da cultura e, portanto, criação do homem.
Não há dúvida de que, o que mais caracteriza uma ciência, é, exatamente, a aceitação geral e universal dos seus postulados, das suas “leis” (leis da Química, da Física, da Biologia, etc.).
Efetivamente, o Direito não conta com leis, entendam-se, postulados, que tenham validade universal, valendo repetir, por absoluta e imperativa pertinência, que nada há de geral nos princípios gerais do Direito.
Assim sendo, o Direito não pode se autodefinir, rigorosamente falando, de ciência, justamente porque, a exemplo de outros ramos do conhecimento social, não ostenta princípios de reconhecida validade universal a lhe ensejar, legitimamente, a denominação de ciência.
Sob o enfoque classificatório adotado por Reis Friede, (1999), a ciência pode ser Natural, Instrumental e Social, esta, de particular interesse para o presente estudo.
As ciências sociais, ou humanas, latu sensu, possuem como objeto de observação os fenômenos sociais, e são bifurcadas em Hermenêuticas ou interpretativas, como o Direito; e Não Hermenêuticas, ou Humanas em sentido estrito, como a Antropologia, a Sociologia, a História, etc.
A Ciência hermenêutica do Direito, à sua vez, tem duas etapas interpretativas, sendo que a primeira, é comum às demais ciências e, privativa do Poder Legislativo, no caso do Direito.
Já na Segunda fase interpretativa, é específica da ciência hermenêutica do Direito e, no caso deste, privativa do Poder Judiciário.
Na primeira fase interpretativa, o Direito enquanto Ciência estuda o fato, atribuindo ao mesmo uma valoração intrínseca.
O fato assim perquirido se preocupa com o conjunto axiológico de valores de uma dada sociedade, no tempo e no espaço, chegando, assim à noção da norma, como expressão ideal do universo do dever-ser.
Finalmente chega-se à aplicação da norma como corolário do emprego dos planos metodológicos de interpretação normativa.
No plano binomial do signo lingüistico, o conceito de Ciência denota variadas conceituações, assim como diversas traduções do vocábulo respectivo.
No plano sintagmático, porém, de mais ampla abrangência semântica, contemporaneamente, o termo designa a busca perene e constante da verdade, universalmente pertinente, através da explicação evolucionista dos fenômenos que se verificam no universo.
Paulino Jacques, referência de Reis Friede, pretende impor uma universal validade de aceitação dos postulados, como requisito indispensável para se caracterizar uma ciência.
Contudo, atualmente, ciência pressupõe uma moderna concepção, a qual se inspira no próprio objeto de sua investigação, ou dizer, na procura constante e permanente da verdade quanto à completa explicação evolucionista dos fenômenos naturais e sociais.
Assim, a concepção de ciência é insuscetível de coexistir ao lado de princípios de validez universal, máxime em se considerando que a validade intrínseca desses mesmos princípios científicos sempre é mutável, como corolário da própria evolução dos postulados científicos.
Dessarte, os conhecidos Princípios Gerais do Direito não se mostram universais, muito menos permanentes, haja vista que os fenômenos sociais que os presidem são dotados de maior complexidade que os fenômenos naturais, campo ocupacional de outras ciências.
Não resta dúvida de que há uma tendência universalizante e aproximativa das concepções, a exemplo dos conceitos e conclusões trabalhadas seja pela Física, seja pela Química, pela astronomia.
Justiça, enquanto concepção axiológica, um valor intrínseco do Direito, vem sofrendo nítido processo de universalização, inobstante as inúmeras culturas e bem assim os mais diferentes estágios evolutivos dos inúmeros grupamentos humanos.
De forma que, ciência deve ser considerada como uma busca; não como uma verdade absoluta, até porque já hoje é aceita a chamada “verdade” relativa, vale dizer, verdades de aceitação limitada ou restrita.
Ainda numa perspectiva tópica-classificatória, repisamos que o Direito integra as chamadas ciências sociais, subtipo hermenêutica ou interpretativa, justificando-se essa descrição pelo fato de que observa os fenômenos sociais, transpondo a simples visão superficial de sua valoração intrínseca, ocupando-se da norma e a concepção interpretativa.
Como ciência social hermenêutica, o Direito ainda se isola como uma ciência de projeção de um mundo ideal, por isso que se enquadra como ciência de natureza essencialmente valorativa ou axiológica.
Fundado nos princípios axiológicos, ocupa-se o Direito, mais do que qualquer outra ciência, de um intrincado e complexo sistema de mensuração factual, inclusive de matrizes intrínsecos, especialmente a idealização da segurança prática das relações jurídicas e da incessante busca do ideal de justiça, ainda que de modo heterogênico, através dos mais diversos segmentos do Direito.
Tratando especificamente do Direito, cumpre ressaltar, que esse ramo do conhecimento elaborou relativa emancipação da Filosofia e da Religião, por obra dos romanos, derivando desse processo de autonomia a derivação de denominação própria, tão logo compreendeu aquele povo da antigüidade clássica que esta ciência, de forma alguma era Religião ou Filosofia.
Com o tempo, com a expansão do Direito Romano, de grande influência no Direito Bárbaro, houve a universalização do conceito de Jurisprudência, acabando por miscigenar-se ao Direito Germânico.
Desse processo restou que, à míngua de nomenclatura mais ajustada, aliada mais à ausência da noção de ciência, terminou por se espraiar a tradicional denominação de Ciência do Direito.
Muitas são as contradições e as discussões sobre o tema, como se depreende da progressiva leitura da obra de Reis Friede, (in Ciência do Direito, Norma, Interpretação e Hermenêutica Jurídica). O certo é que o assunto está longe de ser esgotado e o consenso parece estar distante, dadas as desencontradas e divergentes opiniões dos estudiosos do problema.
(Marcus Valério Saavedra é advogado da bancada ABRACRIM/PA)