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O HABEAS CORPUS COMO FORMADOR DE PRECEDENTES CRIMINAIS

O HABEAS CORPUS COMO FORMADOR DE PRECEDENTES CRIMINAIS


Por Rafael Antonio Pinto Ribeiro


A decisão monocrática do Ministro Luiz Edson Fachin em 08 de março de 2021 que anulou as ações contra o ex-presidente Luiz Inácio na ação penal do triplex do Guarujá (corrupção e lavagem de dinheiro); ação penal do Sítio de Atibaia (recebimento de propina) e; ação penal Instituto Lula (recebimento de doações ilegais – duas ações penais).

Inobstante, tivemos ainda o julgamento do Habeas Corpus 164493/PR, que entre outros assuntos, tratou da suspeição ex-juiz federal Sergio Fernando Moro em 09 de março de 2021, durante sua atuação no julgamento da ação penal do Sítio de Atibaia (recebimento de propina), se escancarou uma tendência que chama atenção na seara processual. A utilização do Habeas Corpus como formador de precedentes criminais.

Nos últimos oito meses, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça foram julgados três Habeas Corpus que estão servindo de guias para a modulação do entendimento de situações comumente vilipendiam garantias republicanas e mais que isso, denotam a atuação da militância que advém da defensoria pública.

Em 06 de agosto de 2020, o Recurso em Habeas Corpus n° 131.263 impetrado pela Defensoria Pública de Goiás, sob a relatoria do Ministro Sebastião Reis Junior delineou o estabelecimento do entendimento superior Proibição da decretação de ofício da prisão preventiva, onde o caso paradigma decretou a prisão sem indicar elementos do caso concreto, inobstante, o juiz ad quo, asseverou que sua liberdade garantirá a ordem pública, sem se apoiar em dado específico do caso.

Da leitura do voto e acórdão são extraídas teses que em muito são debatidas nos instrumentos técnicos utilizados por nós advogados, mas nem sempre com a simplicidade necessária ao caso concreto, como pode ser comprovado:

Vinícius Augusto Lima da Silva foi preso em flagrante no dia 8/5/2020, por ter, supostamente, praticado o crime previsto no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006 (Processo n. 5211591.04.2020.8.09.0149). O Tribunal de Justiça de Goiás manteve a custódia cautelar dele após julgar o HC n. 5224068.21.2020.8.09.0000. Daí o presente recurso em se alega e se pede o seguinte, em resumo (fls. 113/121): No caso em análise, a premissa que não foi observada no ato da autoridade coatora é a de que o juiz não pode converter/decretar a prisão preventiva de ofício, seja durante o curso da investigação, seja durante o curso da ação penal, exigindo prévio requerimento do MP ou representação da autoridade policial, sob pena de violação ao sistema acusatório e os delineamentos advindos das alterações produzidas pela Lei 13.964/19 nos artigos 310 e 311 do Código de Processo Penal. Esse entendimento, inclusive, norteou as últimas alterações do Código de Processo Penal, advindas da Lei n. 13.964/2019, buscando afastar o juiz da atividade persecutória estatal, tudo em prol de sua imparcialidade. […] A decisão decretou a prisão sem indicar elementos do caso concreto. Não bastasse isso, asseverou que sua liberdade garantirá a ordem pública, sem se apoiar em dado específico do caso. Com isso, feriu o dever disposto no art. 93, IX, da Constituição. […] A prisão do paciente é desarrazoada e sua soltura é devida, nos termos do art. 5°, LVI da Constituição Federal. […] Ainda, é importante rememorar que o suposto delito pelo qual o paciente foi conduzido não é caracterizado pela violência ou grave ameaça, e, além disso, que o paciente se encontra preso em estabelecimento superlotado, qual seja, Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. […] Requer […] seja recebido e conhecido o presente recurso, deferindo-se a medida liminar, inaudita altera pars, assegurando ao paciente a revogação da prisão preventiva, expedindo-se o respectivo alvará de soltura; no mérito, a Defensoria Pública pugna pela concessão da ordem para que seja concedido o direito de aguardar o julgamento do processo em liberdade, em razão da ausência de proporcionalidade na decretação da prisão preventiva do paciente, nos termos do artigo 282, incisos I e II, do Código de Processo Penal. Contrarrazões às fls. 131/136. É o relatório. Aparentemente, a prisão do recorrente está alicerçada em fundamentação concreta. Segundo o acórdão recorrido (fl. 97): A necessidade da prisão fundamentada em razão da gravidade concreta da conduta, caracterizada pelo tráfico de 32,807g gramas de maconha e 94,546g de cocaína, além da possibilidade de reiteração delitiva, uma vez que […] o paciente responde a outras duas ações por crime da mesma natureza (ações nºs 201801028758 e 201900537030). Além disso, há menção a fuga, troca de tiros com a polícia e óbito de uma pessoa. Quanto à dita nulidade, não verifico comprovada de plano, sendo necessário colher maiores informações a respeito. Sobre a crise sanitária e a Recomendação n. 62/2020, ao que parece, há dupla supressão de instância. Indefiro o pedido liminar. Solicitem-se informações pormenorizadas ao Juízo a quo sobre a situação do processo e do ora recorrente, principalmente a respeito da homologação da prisão em flagrante, o pedido do Ministério Público para decretar a prisão preventiva e a observância do parágrafo único do art. 316 do Código de Processo Penal. (STJ. RHC 131263/GO, Rel. Ministro Sebastião Reis Junior, SEXTA TURMA, julgado em 06/08/2020, DJe 10/08/2020)

Em 27 de outubro de 2020, o Habeas Corpus n° 598.886 impetrado pela Defensoria Pública de Santa Catarina, sob a relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz, estabeleceu o delineamento do entendimento superior à vedação ao reconhecimento fotográfico, onde o caso paradigma questionava a possibilidade do reconhecimento da pessoa realizado na fase do inquérito policial somente pode ser considerado para identificação do acusado e determinação da suposta autoria delitiva somente quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do Código de Processo Penal e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial.

No desenvolvimento do voto e do acordão, o ministro relator apontou o entendimento da psicologia moderna de que são comuns as falhas e os equívocos que podem advir da memória humana e da capacidade de armazenamento de informações, o que pode levar a falha das falsas memorias ao longo do tempo, viciando o reconhecimento.

Destaca ainda a problemática do reconhecimento fotográfico, vez que induz a testemunha a optar por um dos registros apresentados pela autoridade policial, isso sem considerar qualidade das fotos,

A inovação apontada pelo Superior denota a necessidade de que os Tribunais pátrios não mais aceitem apenas referendar a jurisprudência que afirma se tratar de mera recomendação do legislador, o que acaba por permitir a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente, de graves injustiças. O que pode ser confirmado, in verbis:

HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO. RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO DE PESSOA REALIZADO NA FASE DO INQUÉRITO POLICIAL. INOBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ART. 226 DO CPP. PROVA INVÁLIDA COMO FUNDAMENTO PARA A CONDENAÇÃO. RIGOR PROBATÓRIO. NECESSIDADE PARA EVITAR ERROS JUDICIÁRIOS. PARTICIPAÇÃO DE MENOR IMPORTÂNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1. O reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto, para identificar o réu e fixar a autoria delitiva, quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do Código de Processo Penal e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa. 2. Segundo estudos da Psicologia moderna, são comuns as falhas e os equívocos que podem advir da memória humana e da capacidade de armazenamento de informações. Isso porque a memória pode, ao longo do tempo, se fragmentar e, por fim, se tornar inacessível para a reconstrução do fato. O valor probatório do reconhecimento, portanto, possui considerável grau de subjetivismo, a potencializar falhas e distorções do ato e, consequentemente, causar erros judiciários de efeitos deletérios e muitas vezes irreversíveis. 3. O reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de “mera recomendação” do legislador. Em verdade, a inobservância de tal procedimento enseja a nulidade da prova e, portanto, não pode servir de lastro para sua condenação, ainda que confirmado, em juízo, o ato realizado na fase inquisitorial, a menos que outras provas, por si mesmas, conduzam o magistrado a convencer-se acerca da autoria delitiva. Nada obsta, ressalve-se, que o juiz realize, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório. 4. O reconhecimento de pessoa por meio fotográfico é ainda mais problemático, máxime quando se realiza por simples exibição ao reconhecedor de fotos do conjecturado suspeito extraídas de álbuns policiais ou de redes sociais, já previamente selecionadas pela autoridade policial. E, mesmo quando se procura seguir, com adaptações, o procedimento indicado no Código de Processo Penal para o reconhecimento presencial, não há como ignorar que o caráter estático, a qualidade da foto, a ausência de expressões e trejeitos corporais e a quase sempre visualização apenas do busto do suspeito podem comprometer a idoneidade e a confiabilidade do ato. 5. De todo urgente, portanto, que se adote um novo rumo na compreensão dos Tribunais acerca das consequências da atipicidade procedimental do ato de reconhecimento formal de pessoas; não se pode mais referendar a jurisprudência que afirma se tratar de mera recomendação do legislador, o que acaba por permitir a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente, de graves injustiças. 6. É de se exigir que as polícias judiciárias (civis e federal) realizem sua função investigativa comprometidas com o absoluto respeito às formalidades desse meio de prova. E ao Ministério Público cumpre o papel de fiscalizar a correta aplicação da lei penal, por ser órgão de controle externo da atividade policial e por sua ínsita função de custos legis, que deflui do desenho constitucional de suas missões, com destaque para a “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput, da Constituição da República), bem assim da sua específica função de “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos [inclusive, é claro, dos que ele próprio exerce] […] promovendo as medidas necessárias a sua garantia” (art. 129, II). 7. Na espécie, o reconhecimento do primeiro paciente se deu por meio fotográfico e não seguiu minimamente o roteiro normativo previsto no Código de Processo Penal. Não houve prévia descrição da pessoa a ser reconhecida e não se exibiram outras fotografias de possíveis suspeitos; ao contrário, escolheu a autoridade policial fotos de um suspeito que já cometera outros crimes, mas que absolutamente nada indicava, até então, ter qualquer ligação com o roubo investigado. 8. Sob a égide de um processo penal comprometido com os direitos e os valores positivados na Constituição da República, busca-se uma verdade processual em que a reconstrução histórica dos fatos objeto do juízo se vincula a regras precisas, que assegurem às partes um maior controle sobre a atividade jurisdicional; uma verdade, portanto, obtida de modo “processualmente admissível e válido” (Figueiredo Dias). 9. O primeiro paciente foi reconhecido por fotografia, sem nenhuma observância do procedimento legal, e não houve nenhuma outra prova produzida em seu desfavor. Ademais, as falhas e as inconsistências do suposto reconhecimento – sua altura é de 1,95 m e todos disseram que ele teria por volta de 1,70 m; estavam os assaltantes com o rosto parcialmente coberto; nada relacionado ao crime foi encontrado em seu poder e a autoridade policial nem sequer explicou como teria chegado à suspeita de que poderia ser ele um dos autores do roubo – ficam mais evidentes com as declarações de três das vítimas em juízo, ao negarem a possibilidade de reconhecimento do acusado. 10. Sob tais condições, o ato de reconhecimento do primeiro paciente deve ser declarado absolutamente nulo, com sua consequente absolvição, ante a inexistência, como se deflui da sentença, de qualquer outra prova independente e idônea a formar o convencimento judicial sobre a autoria do crime de roubo que lhe foi imputado. 11. Quanto ao segundo paciente, teria, quando muito – conforme reconheceu o Magistrado sentenciante – emprestado o veículo usado pelos assaltantes para chegarem ao restaurante e fugirem do local do delito na posse dos objetos roubados, conduta que não pode ser tida como determinante para a prática do delito, até porque não se logrou demonstrar se efetivamente houve tal empréstimo do automóvel com a prévia ciência de seu uso ilícito por parte da dupla que cometeu o roubo. É de se lhe reconhecer, assim, a causa geral de diminuição de pena prevista no art. 29, § 1º, do Código Penal (participação de menor importância). 12. Conclusões: 1) O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime; 2) À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo; 3) Pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório, bem como pode ele se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento; 4) O reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s) ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo. 13. Ordem concedida, para: a) com fundamento no art. 386, VII, do CPP, absolver o paciente Vânio da Silva Gazola em relação à prática do delito objeto do Processo n. 0001199-22.2019.8.24.0075, da 1ª Vara Criminal da Comarca de Tubarão – SC, ratificada a liminar anteriormente deferida, para determinar a imediata expedição de alvará de soltura em seu favor, se por outro motivo não estiver preso; b) reconhecer a causa geral de diminuição relativa à participação de menor importância no tocante ao paciente Igor Tártari Felácio, aplicá-la no patamar de 1/6 e, por conseguinte, reduzir a sua reprimenda para 4 anos, 5 meses e 9 dias de reclusão e pagamento de 10 dias-multa. Dê-se ciência da decisão aos Presidentes dos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Presidentes dos Tribunais Regionais Federais, bem como ao Ministro da Justiça e Segurança Pública e aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal, encarecendo a estes últimos que façam conhecer da decisão os responsáveis por cada unidade policial de investigação. (STJ. HC 598.886/SC, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 27/10/2020, DJe 18/12/2020)

O julgamento do Habeas Corpus 598.051/SP pelo Superior Tribunal de Justiça no dia 02 de março a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça apontou algo que advogados criminalistas já vinham sinalizando ha algum tempo: a necessidade de indubitável certeza da autorização do acesso ao domicílio. Não basta mais a alegação da autoridade policial da autorização fornecida liberalmente pelo residente investigado.

Dentro do prazo de um ano, as autoridades policiais deverão, caso haja a mera suposição de crime em flagrante para entrar em uma residência para investigar determinada ocorrência e não possuam autorização judicial deverão registrar de forma a não restar dúvidas sobre o consentimento, além de manter registro por escrito, a exemplo do que ocorre com a vigência da Lei Geral de Proteção de Dados.

O que chama a atenção neste caso em específico, é o fato de que o Poder Judiciário está legislando em uma necessidade processual-social que o Poder Legislativo está silente e tal poder de legislação impõe entre os efeitos, a responsabilização administrativa, civil e penal da autoridade policial e seus agentes, bem como a possibilidade de da anulação das provas colhidas nas incursões-investigações.

O entendimento da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu Habeas Corpus e absolveu um acusado de tráfico de drogas já sentenciado ao anular prova obtida em ingresso de domicílio não autorizado, onde os agentes se utilizaram da força para entrada no local.

Os agentes aduziram que o até então sentenciado forneceu autorização para entrar no domicílio e encontraram 100 gramas de cannabis sativa.

Destaca-se o voto do relator que apontou de forma importante o parâmetro utilizado data de 1999, in verbis:

A situação versada neste e em inúmeros outros processos que aportam nesta Corte Superior diz respeito à própria noção de civilidade e ao significado concreto do que se entende por Estado Democrático de Direito, que não pode coonestar, para sua legítima existência, práticas abusivas contra parcelas da população que, por sua topografia e status social, costumam ficar mais suscetíveis ao braço ostensivo e armado das forças de segurança. De nenhum modo se pode argumentar que, por serem os crimes relacionados ao tráfico ilícito de drogas legalmente equiparados aos hediondos, as forças estatais estariam autorizadas, em relação de meio a fim, a ilegalmente afrontar direitos individuais para a obtenção de resultados satisfatórios no combate ao crime. Em outras palavras, conquanto seja legítimo que os órgãos de persecução penal se empenhem, com prioridade, em investigar, apurar e punir autores de crimes mais graves, os meios empregados devem, inevitavelmente, vincular-se aos limites e ao regramento das leis e da Constituição da República. Essa percepção é antiga e sedimentada na Corte Suprema. Cito, para ilustrar, excerto de voto da lavra do Ministro Sepúlveda Pertence, no HC 79512, julgado no Tribunal Pleno em 16/12/1999 (DJ 16-05-2003, p. 108), onde anotou, com nosso destaque, in verbis:

2. Objeção de princípio – em relação à qual houve reserva de Ministros do Tribunal – à tese aventada de que à garantia constitucional da inadmissibilidade da prova ilícita se possa opor, com o fim de dar-lhe prevalência em nome do princípio da proporcionalidade, o interesse público na eficácia da repressão penal em geral ou, em particular, na de determinados crimes: é que, aí, foi a Constituição mesma que ponderou os valores contrapostos e optou – em prejuízo, se necessário da eficácia da persecução criminal – pelos valores fundamentais, da dignidade humana, aos quais serve de salvaguarda a proscrição da prova ilícita […]

Não tem sido comum percebermos em boletins de ocorrências de nossos clientes, muitos presos em flagrante o apontamento de que o cidadão livremente concedeu acesso, ou então livremente mostrou o local onde estava o ilício.

Neste sentido, o registro do relator destaca:

Não se há de admitir, portanto, que a mera constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, justifique a medida. Ora, se o próprio juiz (um terceiro, neutro e desinteressado) só pode determinar a busca e apreensão durante o dia e, mesmo assim, mediante decisão devidamente fundamentada, após prévia análise dos requisitos autorizadores da medida, não seria razoável conferir a um servidor da segurança pública total discricionariedade para, a partir de avaliação subjetiva e intuitiva, entrar de maneira forçada na residência de alguém para verificar se nela há ou não alguma substância entorpecente.

E em enfrentamento a este posicionamento quase que padronizado em algumas situações policiais, o ministro Rogerio Schietti Cruz aponta a necessidade de olhar aprofundado e criterioso a investida policial.

Para fins da garantia da sociedade, os seguintes entendimentos foram estabelecidos, in verbis:

1. Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se, em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito.

2. O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa objetiva e concretamente inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada.

3. O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação.

4. A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo.

5. A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência. (STJ. HABEAS CORPUS 598.051/SP. Sexta Turma. Relator: Ministro Rogerio Schietti Cruz. Data Julgamento: 02/03/2021).

Por obvio que tal adoção de garantismo tenta trazer de forma precisa segurança para o acusado bem como para os bons agentes policiais.

Tal posicionamento se deve em grande monta ao fato de que a maior parte das prisões por tráfico de drogas advém de flagrantes e não de investigações.

Chama atenção o fato de tais importantes definições de entendimento serem disparadas por meio do Habeas Corpus em detrimento dos Recurso Especiais, apontando que a simplicidade, mas não necessariamente simplista, pode conter forte carga argumentativa de modo a movimentar todo um entendimento já sedimentado em sentido contrário, revendo posicionamento para entrar em conformidade com os preceitos constitucionais.

Necessário destacar que a nova releitura dos Habeas Corpus demonstra que a riqueza argumentativa e fática que pode ser incluída em seu bojo, permite torná-lo em um instrumento útil para resguardar garantias não somente individuais, mas aplicáveis à coletividade, formando precedentes na seara criminal.

Outro ponto que chama atenção nos três instrumentos formadores de precedentes é que todos foram oriundos do meio público e não da advocacia particular.

Ambos foram originados nas Defensorias Públicas de Goiás, Santa Catarina e São Paulo respectivamente.

Por certo, é mais que importante a atuação das Defensorias Públicas nos estados da federação, proporcionando o acesso da população mais vulnerável aos Tribunais Superiores, apresentando aos detentores da capacidade de julgamento e guarda das leis e da própria Constituição os problemas enfrentados diariamente pela legislação por muitas vezes já arcaica ou até mesmo por “entendimentos pacificados” que não condizem com a realidade social.

Ademais, cabe a todos os advogados militantes na seara criminal erguer voz com argumentação sólida dos problemas sociais que nossa sociedade enfrenta, pois ao que se depreende, esta


***Este artigo não traduz necessariamente o posicionamento da ABRACRIM.

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