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O juiz Marcelo Bretas tem razão: a Justiça nos dá medo! Mas, fracassamos?

Por Lenio Luiz Streck
O título deste artigo também poderia ser “O Juiz Bretas e o caminhão de apanhar crianças”, tudo em alusão aos medos que nos impunham quando crianças. Até hoje lembro disso quando vejo determinados caminhões que tem aquele focinho (e não a cabine reta – ver aqui).
Li a entrevista do juiz Marcelo Bretas, 7ᵃ Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, dizendo que a Justiça tem de ser temida (ler aqui). Trata-se do mesmo juiz que já disse, em outra ocasião, que a Bíblia era o principal livro do fórum em que atuava (ler aqui). Deve ser influência do velho testamento. Talvez o juiz se refira ao uso do Código Penal da Bíblia, o livro Deuteronômio. A ver.
Bem recentemente, depois de ter estado com o Papa (para avisar, o Papa é do Novo Testamento), o juiz fala da necessidade de a Justiça ser temida. Pois é. Talvez por isso tenha aparecido de arma em punho há alguns dias. Olhando a foto, fico pensando: é como se as palavras refletissem a essência das coisas… uma imagem diz mais que um milhão de palavras, pois não? A questão é saber as razões pelas quais um juiz, agente político do Estado, pense dessa maneira. Qual é o papel da Justiça? Colocar medo nas pessoas? Já não há medo suficiente?
Quando eu era criança, tinha medo do caminhão que levava criancinhas. Dizia-se, lá pelo lugar onde eu morava, que de quando em vez passava um caminhão e levava as crianças que não se comportavam bem (e eu era uma delas), fazendo-as desaparecer, entregando-as às bruxas. Que faziam sabão das crianças malcomportadas. Era o equivalente ao bicho papão e ao “homem do saco”, medos que se impunham e ainda se impõem às crianças.
Em vez de respeito, o medo. Eis a “fórmula”. Da tirania. Do Estado e dos pais. Isso é velho. Maquiavel já disse, nos 1500, “que seria desejável ser ao mesmo tempo amado e temido, mas que, como tal combinação é difícil, é muito mais seguro ser temido, se for preciso optar”. Ora, podemos ir mais longe: lembremos de Calígula e a notória “odeiem-me, contato que me temam”.
Ainda não ficou clara a relação direta entre o medo e a tirania, a tirania e o medo? Basta recordar que a mãe de Thomas Hobbes deu à luz dois filhos: o próprio Hobbes e seu irmão gêmeo… o medo. (A frase é do próprio contratualista de Malmesbury, segundo o qual “minha mãe deu à luz gêmeos: eu e o medo.”)
Para o juiz Bretas e outros agentes políticos do Estado que assim pensam, o mundo se divide entre bons e maus. Justos e pecadores, simplesmente. E, a cada dia, trava-se o Armagedom, a batalha final.
Confesso que, quando vi a foto do juiz com um fuzil na mão, fiquei mesmo com medo. Mas deixei assim. Quando li a entrevista sobre o “medo”, acreditei e comecei a estocar alimentos. Quando um juiz, vitalício, que jurou defender as leis e a Constituição Federal, diz que devemos ter medo da Justiça, é porque alguma coisa está fora de ordem. Onde foi que erramos? (Antes que alguém reclame, lembro: quem diz o que quer em entrevista pública e posta fotos, pode ouvir o que não quer — ônus da democracia).
Sigo. Melhor dizendo, o juiz Bretas tem toda a razão. Estamos com medo. Eu estou com medo. Mas vejam: eu tenho medo de bandido, medo da morte, medo de estelionatários, dos burros ativos (são muito perigosos), de cobras (humanas e desumanas)… Mas da Justiça eu não deveria ter medo. É ela que deve me proteger. Devo respeitar… mas ter medo? Medo?
Por isso, refletindo mais profundamente, ouso dizer que, quando vejo o juiz de arma em punho, passo a me perguntar se, de fato, a construção de um imaginário de medo já não vingou. Assim, desarmem-se (ops, foi sem querer) e pensem comigo:
Não é de ter medo, mesmo, de uma Justiça que inverte o ônus da prova (fiz pesquisa em todos os tribunais da federação — ler aqui? Não tenho que ter medo de quem só investiga com métodos inquisitivos tipo “prendo para investigar”, “conduzo coercitivamente para o investigado contar tudo antes mesmo de o inquérito ser aberto”, “prendo para delatar”, ou “mesmo que a lei diga que só posso interceptar telefones se não houver outro modo de investigar, vou direto ao grampo”?
Não devo ter medo e dar razão ao juiz Bretas quando se sabe que escritórios de advocacia são grampeados? Ou quando procuradores ameaçam abrir investigação por obstrução da Justiça de advogados que sustentavam que uma prova era ilícita? Não é de tremer de medo quando um colega liga para o outro dizendo: “queriam abrir inquérito por obstrução da Justiça porque a tese não lhes agradava”?
Não tenho que ter medo dos órgãos da Justiça quando dizem que prova é uma questão de fé? E não tenho de me borrar (na verdade, queria dizer outra palavra que começa com “c”) de medo se o MP diz que posso ser condenado por probabilidade (o probabilismo)?
Não tenho que ter medo do Estado quando um de seus agentes (o procurador Pastana) escreve e diz, em parecer, para justificar uma prisão cautelar, que passarinho na gaiola canta melhor (ler aqui)? E depois vem falar mal da instituição dele? (ler aqui)
Digam-me se Bretas não está certo em dizer que temos que ter medo a Justiça quando lemos coisas como o manifesto contra a bandidolatria? (aqui)
Digam-me se não tenho que ter medo quando alguém da Justiça me diz que “não precisa ouvir o que tenho a dizer porque já firmou a convicção”? Hein? Sim, sim, Bretas tem razão.
Não tenho que dar razão a Bretas e ter medo da Justiça quando seus órgãos julgam contra o claro texto da lei?
Não tenho que ter medo quando o Direito é substituído pela moral? Por outro lado, não tenho que ter medo da própria doutrina jurídica quando processualistas defendem que os tribunais superiores devem fazer ato de vontade e “por” (no melhor sentido positivista da expressão “eu ponho”) precedentes vinculantes?
Alguém dirá: mas, professor, se cumprirmos a Constituição e respeitar as garantias processuais, não conseguiremos “combater o crime”… Temos que relativizar nulidades e permitir provas ilícitas obtidas de “boa-fé”… Respondo: Ah, é isso, então? Mas, se querem assim, por que não desmanchamos a democracia e partimos para a barbárie? Mas, não esqueçamos que foi exatamente Hobbes, cujo motor da história era o medo, quem disse que entre civilização e barbárie temos que optar pela civilização e o custo é a lei (a interdição)? Aliás, antes de Hobbes, quem dizia que devemos temer o soberano e não o amar foi justamente alguém que cunhou a frase que mais medo causa: os fins justificam os meios.
Tenho medo. Bretas tem razão. Conseguiu me convencer. Bretas é o meu homem do saco preferido. É o caminheiro que me causava tanto medo quando criança. Se eu fosse réu, teria muito medo, sim. Não da lei e da Constituição. Mas de quem pensa que a Justiça deve provocar medo nos réus. A propósito: não tenho medo de um Habeas Corpus concedido indevidamente; tenho medo é de um Habeas Corpus negado por motivos morais e políticos. Ou seja: não tenho medo de uma absolvição se o Estado não conseguiu provas; tenho medo é da condenação de alguém com base no Teorema de Baies ou com base na tese de que “condeno e depois busco o fundamento”. Enfim: não deveríamos ter medo da Justiça; ele deve(ria) nos proteger do medo.
Se Bretas tem razão — e há fortes elementos que, infelizmente, demonstram que sim — então fracassamos. Vou estocar comida, então. Antes que o caminhão chegue.
Post scriptum: Em uma palavra final, quero dizer que a entrevista de Bretas não passa daquilo Pierre Bourdieu chamou de violência simbólica. Que por vezes é mais dolorida e malfazeja que a violência física; vai criando um imaginário em que o emissor não age mediante força física; o receptor se engaja e reproduz; é algo como um bullying moral; é uma forma de coerção que se baseia em acordos não conscientes entre as estruturas objetivas e as estruturas mentais. Nesse sentido, veja-se a violência simbólica exsurgente do artigo do ex-desembargador Aluísio Tadeu Cesar, que, sem ler os autos e tampouco os embargos de declaração respondidos pelo juiz Moro, decreta “verdades” já no primeiro parágrafo de seu artigo, que são reproduzidas e que causam danos simbólicos. E reais. Também é violência simbólica o que fez o presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que, sem examinar os autos, disse que a sentença de Moro (caso Lula) era irrepreensível (aqui).
E a violência simbólica tem até coadjuvante, como a funcionária do TRF-4 — nada mais, nada menos que a chefe de gabinete da Presidência do TRF, que, em sua página pessoal, pede a prisão de Lula e busca assinaturas de apoio. Inacreditável? Pois veja abaixo. Sim, não nego o direito de a servidora expressar sua vontade e opinião pessoal. Mas ao assumir esse cargo, alguns ônus se lhe impõe. Vejam no post que ela “invoca” o TRF-4 no “nome da petição”. Imaginem nos Estados Unidos alguém do gabinete do presidente de um tribunal torcer (vibrar) e colher assinaturas de apoio à condenação de um réu. E de sua prisão. Mormente se o réu for ex-presidente da República. Imaginem na Alemanha. Ou na Espanha. Tenho contatos em Burkina Faso — liguei para lá e perguntei: nem lá isso seria admitido. Então:

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Isso é que é clima de violência simbólica. Dura e violenta violência simbólica. Estudei muito isso no mestrado em 1983-4 (fui recepcionado pela Constituição Federal de 1988). Conceito antigo, práticas atuais. Assisti a uma aula de Cornelius Castoriadis em 1985. Ele dizia: o gesto do carrasco é real por excelência… e simbólico na sua essência. O que mais vale (a não ser para quem está perdendo a cabeça no real) é o simbólico que o gesto da cabeça no cesto representa. Bingo.
Por tudo isso tudo, no lugar de Lula, estaria com muito medo. Bretas tem razão. E o que dizem os juristas brasileiros sobre isso? Também acham que a Justiça deve ser temida?
Fonte: www.conjur.com.br

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