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O mal-estar da prática criminal – Por Cássio Rebouças de Moraes

criminal
Por Cássio Rebouças de Moraes – 10/10/2016
Feitas as ressalvas necessárias sobre o real alcance da presunção de inocência no Brasil[1], cabem muitos, mas muitos lamentos sobre o que ocorreu ontem – dia do aniversário da nossa Constituição – no STF, que mostra, mais uma vez, a brincadeira de mau gosto que se tornou a prática do Direito Penal Brasileiro.
Com todas as críticas que o Direito Penal merece, deve-se reconhecer que há uma construção dogmática importante elaborada ao longo de centenas de anos e que serve à contenção do poder punitivo e do arbítrio estatal (me deixem quietinho no meu duplipensar, amigos da criminologia).
Entre avanços e recuos, a ciência jurídico-penal, a dogmática, tentou racionalizar ao máximo o irracional (o sistema penal) e estabeleceu limites, definiu conceitos e deu parâmetros para a aplicação do Direito Penal.
Mas parece que hoje – e temos notado isto com maior intensidade nos últimos tempos, tempos de recrudescimento do sistema penal, do chamado “grande encarceramento”, de endurecimento em geral (de leis e de pessoas) – a dogmática vem sendo esquecida, ignorada, não estudada, mal utilizada ou, para dizer o mínimo, simplificada ao ponto de torná-la simplista, “facinha”. E há temas que não são simplificáveis.
Some-se a isto uma pitada (uma pá) de autoritarismo e temos decisões que usam o Direito e a dogmática da forma que bem querem (“O que é isto – decido conforme minha consciência”? Não há como não lembrar de Lenio Streck), ora ressignificando conceitos complexos de décadas com interpretações literais (e erradas), ora elaborando interpretações mirabolantes quando a intepretação literal (e clara) não convém. Tudo para dizer que a lei diz o se quer que diga.
Cito alguns exemplos rápidos que me vieram à cabeça:
– Falta de provas como requisito para prisão temporária (Palocci).
– Tribunal reconhecendo que Lava-Jato não precisa obedecer a lei.
– A palhaçada que virou o dolo eventual (vale sempre lembrar o Nilo Batista dizendo que “assumir o risco” [dolo] é diferente de “correr o risco” [culpa], né…).
– “Domínio do fato” virou “dominar-o-fato”, só isso. Precisou do “dono” da teoria vir ao Brasil dizer que não era isso.
– Quantidade e qualidade de droga utilizados para não aplicar a causa de diminuição de pena do §4º do art. 33, inventando requisito legal onde a lei nada menciona.
– Processos por crimes de ação penal pública incondicionada sendo arquivados por ausência de representação (hã?) com base em Enunciados do Fonaje (enunciado é lei?).
– A última de ontem no STF sobre a finada presunção de inocência.
Aos amigos advogados/defensores, uma pergunta: Já viram/presenciaram algum julgador que tenha decidido contra aquilo que ele próprio queria? (“Eu quero te dar o direito, mas não posso”; “Eu quero absolver, mas não posso”; “Eu quero condenar, mas não há elementos”) Já viram? Também não estou me lembrando.
Os problemas também estão na política criminal, baseada toda em achismos nunca demonstrados empiricamente. É como pautar a política de saúde pública em homeopatia.
Bate nessas horas uma sensação de impotência ao ver que a nossa tábua de salvação de muitos momentos, a Constituição, está se tornando cada vez mais letra morta.
Um amigo tentou me consolar quando eu – muito pessimista – reclamando das perspectivas da nossa amada profissão, disse que a advocacia criminal ia acabar. “Pense pelo lado bom! Com tudo o que está acontecendo e no ritmo das coisas, vocês serão ainda mais demandados e terão mais clientes.” Pode ser verdade… Mas me recuso a pensar que um criminalista possa ficar feliz ao pensar por este lado. Seria como um oncologista se alegrando e pensando no bolso ao saber que as pessoas terão cada vez mais câncer. Nós somos melhores do que isso, certo?
“A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”? Marcar um “sad hour” (muito boa essa, Filipe) pra chorar as pitangas com os amigos?
No horizonte, só trevas. A luz fim do túnel é de um trem em sentido contrário.
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Vitória/ES, 06 de outubro de 2016.


Notas e Referências:
[1] Remeto ao texto de Aline Passos:https://www.facebook.com/alinepjsantana/posts/10208027011889153
Cássio Rebouças de Moraes é advogado criminalista, professor de Direito Penal e especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra.
Fonte: http://emporiododireito.com.br/

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