Skip links

​O martírio alheio como satisfação pessoal

Imaginem a conexão que se pode estabelecer, por exemplo, entre o sentimento punitivista ocidental e a fé cristã?

A quase totalidade da população brasileira, foi educada sob dogmas do cristianismo, onde a martirização de um indivíduo, até então tratado como criminoso, mereceu os aplausos e apoio da maioria absoluta de uma sociedade, em determinada quadra temporal.

Encontramos em Durkheim justificativas sociológicas para comportamentos solidários, seja para o bem, ou para o mal, que germinam a partir da semelhança de valores forjados pela religião, costumes e tradições, gerando-se sentimentos comuns, ações que os homens imprimem sobre outros homens, tal como descrito na obra ‘Educação e Sociologia”.

Neste sentido, sublinhamos a influência das teorias da solidariedade mecânica e orgânica[1], com o seu denominado “direito repressivo”.

Vale relembrar que:

“Durkheim esboçou uma teoria do crime, deduzindo uma teoria das sanções. A sanção não tem a função de amedrontar ou de dissuadir, mas sim satisfazer a consciência comum, ferida por um ato cometido por um dos membros da coletividade. Ela exige reparação e o castigo do culpado e esta reparação feita aos sentimentos dos outros.”[2]

Historicamente as sociedades encampam perspectivas de revanche e sofrimento aos “inimigos”, como forma de satisfação coletiva, algo como um entorpecimento social, que atende, a partir do plano coletivo, às perversidades cultivadas individualmente, e que guardam sua genealogia na formação ancestral do nosso povo.

Recomenda-se, para o amadurecimento do referencial teórico acerca desse tema, a visita ao trabalho de David Garland – Punishment and Modern Society: A studt in Social Theory[3].

Mencionado o exemplo cristão, poderíamos multiplicar as hipóteses a inúmeros outros casos paradigmáticos, onde o julgamento, ou o castigo, não bastaram ao senso comum, exigindo-se, para satisfação coletiva, o esfacelamento moral, pessoal e corporal de seres humanos, e.g., o esquartejamento de Tiradentes, a degola, ainda viva, de Maria Bonita[4], entre outros.

Parece-nos inafastável que as penas, tal como previstas no ordenamento jurídico pátrio, balizadas por um padrão mínimo de civilidade, não atendem, hodiernamente, aos anseios de parte significativa da sociedade, que almeja, para além da justiça, o justiçamento, como instrumento retributivo de suas misérias, experiências e frustrações.

Vislumbra-se no Brasil uma nova rearrumação social para a perspectiva punitiva, nitidamente involutiva, inversamente proporcional à ótica de Foucault, para quem os meios punitivos, de alguma forma, já teriam evoluído, do ponto de vista de humanidade, saltando do suplício do século 17, para a reforma penal do século 18, correspondente a uma “nova economia punitiva”, onde punir eficazmente não implicaria em tortura e outros flagelos corporais, mas na vigilância, referenciada pelo filósofo através do arquétipo do projeto arquitetônico Panopticon.[5]

A percepção acima reflete o comportamento contemporâneo da sociedade, e de incontáveis atores do sistema de justiça criminal do país, onde, na impossibilidade legal do suplício, somente a prisão, leia-se, o deplorável encarceramento do outro, tem o poder de arrefecer a excitação e a sanha de retribuição do mal, eventualmente causado por pessoas acusadas da prática de crimes.

Note-se que, propositalmente, valho-me do termo “acusados da prática de crimes”, pois é assim que se comporta grande parte da nossa sociedade e, inimaginavelmente, operadores do direito.

Basta uma acusação, um início de investigação, para que, conduzidos pelos “tribunais de mídia”, o efeito manada seja deflagrado, pautados pela régua moral de editores de jornais, no mais das vezes, a serviço de grupos políticos e econômicos.

Estaríamos nós, brasileiros, de fato, substituindo o direito pela moral? Poderia alguém achar “bom” esse comportamento, na perspectiva nietzschiana (Zur Genealogie der Moral: Eine Streitschrift)[6], onde o “bom” não se liga ao “útil”, mas ao nobre? Nossa sociedade estará se conduzindo por “ideais ascéticos”?

O Direito Penal, em horário nobre, virou produto de extrema geração de riqueza em novelas, telejornais, programas rasos que exploram acontecimentos criminosos diários, onde a matéria-prima, que não pode faltar, é o crime, em suas mais variadas dimensões, mas sempre gerando muita riqueza.

Nesta quadra, não causará espécie, se a qualquer hora, formos admoestados por campanha publicitária exortando que o crime é Tech, crime é Pop, crime é Tudo.

Quase como uma commodity, os temas criminais vão alimentando as polícias, o tráfico, a política, as cadeias, a justiça, o MP, a advocacia, as empresas de quentinhas, o Depen, o CNJ, hoje, inclusive, o exército brasileiro[7], mas, para essa máquina de produção de riqueza, chamada crime, manter-se sempre efervescente, importa em despertar paixões.

É nessa hora que a manipulação de mídia conduz o inconsciente coletivo, capturando o sentimento individual de cidadãos, já saturados com o estado de coisas inconstitucional, com a violência, com a mediocridade política e, canalizando essa reunião de frustrações, a grande mídia potencializa e concentra o ódio da sociedade nos justiçamentos diários, elegendo “um Cristo por dia”.

Os “eleitos” já foram a Dilma, depois o Lula, virou pro Eduardo Cunha, alterou pro Nem da Rocinha, passou pelo Trump, voltou para o Lula, alcançou o Cabral, depois Eduardo Paes, desceu pro Marcola, guinou para a torcida Mancha Verde do Palmeiras, bateu no Crivella, chamuscou os “mijões do carnaval”[8], detonou Gilmar Mendes, derrubou o Eike Batista, em seguida o juiz do caso Eike, já foi a escola Base e, até ontem, por incrível que pareça, a “bola da vez” era o delegado Vinícius, da novela das 21h. Faltarão igrejas, para tantos “cristos” !!!

Nem que se fale de uma possível diminuição da condição criminosa de alguns citados, refiro-me, exclusivamente, por comprovação empírica, da capacidade midiática de fazer odiar, de impor comportamentos coletivos de condenação, e que extrapolem aos modelos punitivos descritos no direito posto.

Ao estuprador, por exemplo, não basta a prisão como castigo, nos limites da lei, há que se devolver dor e crueldade, talvez porque seu bisavô tenha dito ao seu avô, que repassou ao seu pai, que repetiu para você que, sem a mínima avaliação crítica sobre o assunto, aceita o sugestionamento de mídia, o qual, em horário nobre, naturaliza a execução sumária de um custodiado, em desmedida banalização da vida humana, perpetuando a folclórica alegoria popular de que determinados tipos de presos devem sofrer “penas” corporais ou capitais.

Insistindo no tema, a hediondez de um estupro choca, tanto assim, que a legislação vigente faz previsão de duras penas de prisão, inovar em execuções corporais ou capitais significa aderir ao comportamento criminoso, legitimando-se o justiçamento, ainda mais reprovável quando tem o estado como partícipe.

Na ficção ou vida real, alguns grupos já enxergaram que o importante é trabalhar, em sintonia fina, a manipulação que essa matéria prima milionária, o crime, pode proporcionar, seja para auferir seus dividendos, ou para gerar, por exemplo, capital político (positivo ou negativo).

Insistindo na paixão que o crime desperta, capaz de arrebatar consciências, individual ou coletivamente, muitos exploram o discurso contra a impunidade, ou a corrupção, como fórmula de retroalimentação do estado penal, em detrimento do estado social, neste sentido, a certeira citação de Genelhú[9]:

“o discurso contra a impunidade tem servido de motivo para uma suposta restauração da “segurança social” quando na verdade, serve ela mesma, per se, é de desculpa para a perseguição ao “outro” (…)”.

Mesmo sob o risco de desagradar aos hieráticos mais fervorosos, utilizamos, ao início, a metáfora da fé, posto que o símbolo máximo do cristianismo também seja um instrumento de martírio, a cruz, que em tempos de perversidade, serve muito mais para exortar o ódio, do que para invocar ao amor e fraternidade, estes últimos sim, vencidos pela régua moral da nossa sociedade, que sucumbiu, adicta, à atração dos novos ópios de mídia, o crime e a punição cruel.

James Walker Júnior, advogado criminalista e professor, doutorando em ciências jurídicas pela UAL – Universidade Autônoma de Lisboa, presidente da ABRACRIM-RJ e do IBC – Instituto Brasileiro de Compliance.



[1] DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Ed. Martins Fontes. 2003ISBN 85-3360-515-3.

[2] LUCENA, Carlos. Em “O pensamento educacional de Émile Durkheim”. Disponível em: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/40/art18_40.pdf. Acessado em 22/02/2018.

[3] Disponível em e-book. Publicado em 2012. ISBN 9780226922508.

[5] FOUCAULT. Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Ed. Vozes. 2007.

[6] NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral: uma polêmica. Ed. Vozes. 5ª ed. 2002.

[9] GENELHÚ, Ricardo. Do discurso da impunidade à impunização: o sistema penal do capitalismo brasileiro e a destruição da democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

X