O necessário apaziguamento de conflitos federativos
Felipe Santa Cruz e Ophir Cavalcante*
22 de abril de 2020 | 17h30
No meio jurídico nacional importantes questionamentos têm surgido, inclusive com ajuizamento de várias medidas judiciais, sobre os limites e o alcance das atuações federativas da União, de Estados-membros, Distrito Federal e Municípios na adoção de medidas emergenciais diante de quadro de pandemia da covid-19.
Neste contexto, a Comissão Especial de Defesa da Federação da OAB oferece sua contribuição para o debate em torno do pacto federativo na Constituição de 1988, com vistas a estudar moldura interpretativa das competências constitucionais distribuídas pelo Poder Constituinte originário a partir do critério da predominância do interesse, preconizado pela doutrina constitucional brasileira contemporânea.
A pandemia provocada pela disseminação do coronavírus levou a Organização Mundial da Saúde a declarar estado de emergência de saúde internacional, ao que se seguiu ato do Ministério da Saúde brasileiro no mesmo sentido, tendo o Congresso reconhecido o estado de calamidade pública.
Mais não é preciso dizer para concluir que a Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, em sua concepção geral, encontra-se plenamente amparada na Constituição Federal, tendo sido complementada pelas Medidas Provisórias 926 e 927, de 20 e 22 de março, respectivamente.
Por meio dela, buscou-se estruturar um elenco de medidas de natureza sanitária, preordenadas ao enfrentamento da situação emergencial, atribuindo-se à União o papel que somente uma entidade com poder de mando sobre todo o território nacional poderia exercer, na articulação e coordenação das ações cabíveis, sejam elas normativas ou administrativas.
Para evitar ações contraditórias, desarticuladas ou prejudiciais sob o prisma sanitário, por parte das entidades federativas e respectivos governos (inclusive o da própria União), o legislador arrolou o elenco de medidas que podem ser adotadas para o enfrentamento da emergência de saúde pública, legitimando o isolamento, a quarentena, a realização compulsória de exames, testes, coletas, vacinação e tratamentos, a adoção de restrições ao deslocamento de pessoas e cargas pelo território nacional, a requisição de bens e a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na ANVISA.
O pressuposto fundamental de todas elas foi estabelecido, com muita propriedade e precisão, no § 1º, do artigo 3º, da Lei Federal nº 13.979/20, que as condiciona à existência de explícita motivação, fundada em “evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde”, devendo, ademais, serem “limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública”.
Sob a inspiração da racionalidade técnica e das melhores práticas de gestão e articulação de ações sanitárias, foram estabelecidas as autoridades competentes para a adoção das providências emergenciais listadas nos incisos do artigo 3º da LF nº 13.979/20, tendo presente o disposto nos artigos 23, inciso II, 198 e 200, inciso II, da Constituição Federal, que consideram de competência comum à União, Estados, Distrito Federal e Municípios as ações e serviços de saúde, integrando-as em um sistema único (SUS), ao qual, dentre outras atribuições, compete “executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica”.
Esse reconhecimento do importante papel a ser desempenhado por Estados, Distrito Federal e Municípios no combate à pandemia valeu menção no texto das decisões monocráticas dos Ministros Marco Aurélio (ADI nº 6.341/DF) e Alexandre de Moraes (ADPF 672/DF), que, em sede cautelar, mantiveram incólumes as normas da Lei Federal nº 13.979/20, ressaltando a necessidade de se respeitarem as competências de cada um dos entes federados, observadas as diretrizes do SUS.
As circunstâncias atuais representam o mais difícil teste de operabilidade já apresentado ao desenho federativo, presentes ainda os valores essenciais do Estado de Direito e da democracia. E é exatamente, como ressaltou o Ministro Alexandre de Moraes, por isso que “em momentos de acentuada crise, o fortalecimento da união e a ampliação de cooperação entre os três poderes, no âmbito de todos os entes federativos, são instrumentos essenciais e imprescindíveis a serem utilizados pelas diversas lideranças em defesa do interesse público, sempre com o absoluto respeito aos mecanismos constitucionais de equilíbrio institucional e manutenção da harmonia e independência entre os poderes” (ADPF 672).
A solidariedade, a busca do consenso, a ponderação, a cautela, a responsabilidade, o foco, a valorização da ação em detrimento da omissão e a suspensão de outros objetivos distintos da superação do momento crítico precisam estar presentes a cada passo. A união de forças dos entes federativos é absolutamente imprescindível para que o país atravesse a situação atual com o menor dano humano, social e econômico possível.
Deve ser ressalvado que não há respostas antecipadas para todos os possíveis conflitos federativos que a pandemia pode trazer. Pode-se sugerir, contudo, que a análise jurídica de cada situação leve em conta, como vetores de interpretação, o conceito essencial de que o Estado Brasileiro está organizado como uma federação cooperativa e a ideia de essencialidade da proteção à saúde. Assim, o exercício das competências atribuídas aos diversos entes deve observar a imprescindibilidade de amparo técnico-científico para qualquer deliberação e a inexistência de relação hierárquica propriamente dita entre os integrantes da Federação.
Ganha realce, dessa forma, a necessária valorização das competências que, à luz do critério da predominância do interesse, foram reservadas ao campo de atuação tipicamente regional (Estados) e local (Municípios), devendo ser proposto o abandono de qualquer tendência centralizadora na esfera da União (interesse nacional), passando-se a adotar – para o fortalecimento do federalismo democrático – uma opção hermenêutica que promova a atuação cooperativa de todos os membros da Federação Brasileira.
Isso nos leva a traçar as seguintes diretivas em relação aos conflitos competenciais que a atuação das entidades federadas e respectivos governos na atual quadra emergencial vem suscitando: – os Estados, o DF e os Municípios podem, dentre outras medidas, decretar o isolamento ou a quarentena de pessoas, porém observados os parâmetros gerais tecnicamente estabelecidos pelo Ministério da Saúde (art. 3º, § 7º, I);
– as medidas de âmbito municipal não podem conflitar com aquelas adotadas pelos Estados, que prevalecem com fundamento no artigo 30, inciso II, da Constituição, como sucede com atos normativos municipais prescritivos do fechamento ou abertura de estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços, com discrepâncias em relação a editos estaduais sobre a mesma matéria, inclusive por força da impossibilidade de, no quadro de uma pandemia, serem os efeitos materiais das medidas circunscritos à localidade específica;
– a restrição excepcional e temporária à entrada e saída de pessoas do país por portos, aeroportos e rodovias somente pode ser determinada pelo Ministério da Saúde, conforme recomendação da ANVISA e em articulação com o órgão regulador ou o Poder concedente (art. 3º, VI, letra a, e §§ 7º, I, e 10, da LF 13.979/20, c.c. o art. 21, XII, letras c, d e f, da CF);
– a restrição excepcional e temporária à locomoção por rodovias interestaduais somente pode ser determinada pelo Ministério da Saúde, em articulação com o órgão regulador ou Poder concedente (art. 3º, VI, letra b, e §§ 7º, I, e 10, da LF 13.979/20, c.c. o art. 21, XII, letra e, da CF);
– a restrição excepcional e temporária à locomoção por rodovias intermunicipais somente pode ser determinada pelo gestor estadual de saúde, sob autorização do Ministério da Saúde e em articulação com o órgão regulador ou o Poder concedente (art. 3º, VI, letra b, e §§ 7º, II, e 10, da LF 13.979/20, c.c. o art. 25, § 1º, da CF);
– todas as medidas excepcionais e transitórias, restritivas de atividades, determinadas com base no artigo 3º, caput, incisos de I a VIII, da Lei Federal nº 13.979/20, devem resguardar os serviços públicos e atividades essenciais, especificados por decreto do Presidente da República (§§ 8º e 9º do art. 3º – vejam-se os Decretos Federais nº 10.292 e nº 10.288, de 20 e 22 de março, respectivamente);
– a especificação de serviços públicos e atividades essenciais não pode se apartar da zona de abrangência desses conceitos, nem incluir serviços ou atividades que possam ser desempenhados, satisfatoriamente, por meio remoto ou virtual;
– o presidente da República não pode, por meio de decreto, sem motivação tecnicamente adequada, estabelecer o fim da situação de emergência de saúde pública associada à covid-19, quer por ter sido essa competência legalmente deferida ao Ministro da Saúde (art. 1º, § 2º, da LF nº 13.979/20), quer por se exigir, na espécie, motivação baseada em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde (art. 3º, § 1º, da LF nº 13.979/20).
Cumpre assinalar que não há emergência sanitária ou crise socioeconômica que dispense o cumprimento da Constituição Federal e da legislação que lhe preste obediência.
*Felipe Santa Cruz, presidente da OAB; Ophir Cavalcante, ex-presidente da OAB e atual presidente da Comissão de Defesa da Federação da OAB