O perene Programa de Regulamentação Tributária nos ACORDOS DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
O perene Programa de Regulamentação Tributária nos ACORDOs DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
Filipe Coutinho da Silveira[i]
No último dia 23/01/2020 entrou em vigor a Lei 13.964/2019 – também conhecida como pacote anticrime. Sua entrada em vigor ocorreu de forma parcial, já que foi concedida medida liminar nos autos da ADIN 6.299 determinando a suspensão, por tempo indeterminado, de alguns dispositivos que estabeleciam regras para a implementação do juiz de garantias, sobre a nova forma de arquivamento de inquéritos policiais, sobre a ilegalidade automática de prisões em decorrência da não realização de audiência de custódia, bem como sobre a proibição de sentenciar para os juízes que conheceram do conteúdo de prova declarada inadmissível.
A despeito de toda a polêmica sobre a decisão que concedeu a medida cautelar – v.g. a crítica de Aury Lopes Jr e Alexandre de Morais da Rosa (https://www.conjur.com.br/2020-jan-24/limite-penal-liminar-ministro-fux-revogou-decisao-plenario) – destaca-se que, com sua entrada em vigor, foi introduzido no sistema jurídico brasileiro mais um instituto da justiça penal premial e/ou consensual, materializado no acordo de não persecução penal, conforme o novo art. 28-A do CPP.
O referido instituto já nasceu em meio a certa polêmica, tanto assim que a ABRACRIM – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS ADVOGADOS CRIMINALISTAS ajuizou Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI 6.304, Rel. Min. Celso de Mello) questionando diversos pontos do pacote anticrime, dentre eles, justamente, o acordo de não persecução penal, especialmente, na parte que obriga o acusado a confessar a prática criminosa.
O movimento de solução consensual de conflitos criminais reflete uma tendência mundial[ii], apesar de todas as críticas que possam ser atribuídas a essa forma de justiça, onde a culpa deixa de ser construída a partir da observação de Direitos e Garantias Fundamentais, e passa a ser pressuposta como elemento fundamental para a solução da controvérsia.
Nesse cenário, o novíssimo acordo de não persecução penal surge no Direito Penal brasileiro como uma norma híbrida, possuindo raízes tanto de caráter processual, quanto de direito material, razão pela qual, apesar de ter entrado em vigor no dia 23/01/2020, poderá ser aplicada retroativamente a todos aqueles que já respondam ações penais curso e possuam os requisitos legais exigidos, o mesmo ocorrendo para as Ações Penais originárias, na forma do art. 1º, §3º da Lei 8.038/1990.
Para a formalização do acordo a lei processual penal exige requisitos positivos e negativos. Dentre os requisitos positivos estão: (i) confissão formal; (ii) crime sem violência ou grave ameaça; (iii) pena mínima inferior a 04 (quatro anos), computadas causas de aumento e diminuição, eventualmente existentes; (iv) avaliação para garantir a reprovação e prevenção de novos crimes; (v) acordo escrito.
Já os requisitos negativos são: (a) ser cabível a transação penal da Lei 9099/1995; (b) reincidência e elementos probatórios que indique conduta criminal/habitual/reiterada/profissional, exceto nos casos de insignificância penal; (c) ter o indiciado celebrado nos últimos 05 (cinco) anos transação penal, suspensão condicional do processo ou acordo de não persecução penal; (d) nos crimes de violência doméstica ou praticados contra mulher por razões da condição do sexo feminino.
O instituto prevê ainda algumas condições para seu cumprimento, as quais poderão ser ajustadas de forma cumulativa e alternativa: (i) reparação do dano, salvo impossibilidade; (ii) renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; (iii) prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução; (iv) pagar prestação pecuniária; (v) cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.
A lei prevê que a negociação do acordo se dará apenas entre o Ministério Público e o possível sujeito ativo do crime, não havendo participação do juiz competente nos atos de negociação. Ao juiz caberá: (1) homologar o acordo, em audiência, ouvindo o sujeito ativo do crime; (2) verificar a legalidade do acordo e a voluntariedade do acusado; (3) verificar se as clausulas propostas são abusivas ou insuficientes, devolvendo os autos ao Ministério Público para adequações; (4) recusar a homologação quando não atender os requisitos legais ou nos casos em que não realizada a adequação, devolvendo os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia; (5) Após a homologação (5.1.) intimar a vítima (e também no caso de descumprimento); (5.2.) remeter o autos ao Ministério Público para que inicie o cumprimento no juízo de execução penal.
Uma vez cumprido, o acordo provocará a extinção da punibilidade do fato tido como criminoso (art. 28-A, §13), sendo que não poderá haver registro a título de antecedentes criminais, salvo para a celebração de nova avença (§12). Na hipótese de descumprimento das condições celebradas, o Ministério Público deverá comunicar o juízo competente para que rescinda o acordo e seja oferecida denúncia, bem como o Órgão Ministerial poderá, nos casos em que seja possível a suspensão condicional do processo, deixar de oferecê-la.
Em decorrência dos requisitos legais do artigo 28-A do CPP, o acordo de não persecução penal é absolutamente compatível e aplicável aos crimes de natureza tributária, uma vez que as penas mínimas dos delitos previstos no artigo 1º e 2º da Lei 8.137/1990, art. 337-A, 168-A e 334 do Código Penal são todas inferiores a 04 (quatro) anos[iii], bem como são tipos penais desprovidos de violência e grave ameaça em suas elementares. Assim, ao transpor o acordo de não persecução penal para seara dos crimes tributários se observa que o novo instituto de direito premial inaugurou a possibilidade de instauração de um “programa de regulamentação tributária” perene no Direito Brasileiro.
É dizer, como as condições do acordo de não persecução penal não projetam a necessidade de cumprimento das condições em determinado período de tempo, nada impedirá que as partes (sujeito ativo e Ministério Público) celebrem o parcelamento do valor supostamente sonegado, utilizando-se como base o tempo de parcelamento dos programas utilizados pela Receita Federal e Fazendas Estaduais onde o crime eventualmente tiver ocorrido.
E mais, o parcelamento do referido valor não deverá abranger juros e multa decorrentes da autuação fiscal tributária. Isso é assim, pois, o art. 28-A, inciso I, exige a reparação do dano. Por conseguinte, o Superior Tribunal de Justiça, já constituiu precedentes (5ª e 6ª Turma) afirmando que o dano tributário se refere ao valor do tributo, sem considerar os consectários de multa e juros[iv]. De se observar ademais que, mesmo nos programas de parcelamento instituídos pelos Estados e pela União, em regra, são concedidos reduções de até 90% nos valores de multa e juros, razão pela qual não haveria desproporção na realização do acordo de não persecução penal para a reparação apenas do valor efetivamente relacionado com o tributo em discussão.
Ao que tudo indica, a reparação do dano mediante parcelamento poderia ser a única condição imposta para a celebração do acordo de não persecução penal dos crimes tributários, haja vista que as condições dispostas no artigo 28-A podem ser exigidas de forma alternativa. Segundo, tal previsão estaria em consonância com todas as legislações brasileiras sobre os diversos programas de parcelamento instituídos nos últimos anos que prescreveram expressamente o parcelamento como causa de suspensão da ação penal e o pagamento integral como causa de extinção da punibilidade, não havendo que se falar, portanto, em medida contrária ao ideal de repressão e prevenção do crime fiscal.
Nesse cenário, não haveria qualquer distorção entre o acordo criminal e a transação tributária (MP 899), onde tais hipóteses já estavam sendo previstas com certa repetição nas diversas legislações que vieram a tratar do tema.
Aliás, não se perca de vista que a Lei 13.254/2016 criou o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária prevendo que o cumprimento das condições da regularização cambial e tributária extinguia a punibilidade de diversos crimes, inclusive, de lavagem de dinheiro, quando o objeto do crime for bem, direito ou valor proveniente, direta ou indiretamente, dos crimes tributários, razão pela qual o acordo de não persecução penal celebrado nessas bases também não estaria a contrariar a política criminal adotada pelo Estado brasileiro.
A perspectiva, portanto, indica a possibilidade do Estado, a um só tempo, diminuir o acervo das Varas Especializadas em Crimes Contra Ordem Tributária, das Varas de Fazenda e recuperar, rapidamente, sob pena de futura denúncia ou de prosseguimento da ação penal já existente (nos casos em que o acordo de não persecução penal for aplicado retroativamente), créditos fiscais em tese sonegados, utilizando-se, para tanto, do novo sistema de cobrança instituído pela legislação criminal.
Isso aponta para uma praticidade que denota a existência de um Direito Penal da Cobrança Fiscal.
[i] Advogado Sócio e Head da Área Criminal do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff, especialista em Ciências Criminais (UFPA), Direito Penal Econômico e Europeu (Coimbra)
[ii] Importantíssima a leitura de Maximo Langer: From legal transplants to legal translations: the globalization of plea bargaining and the americanization thesis in criminal procedure. Harvard International Law Journal, Cambridge, v. 45, n. 1, p. 1-64, jan. 2004.
[iii] De se observar que no caso do descaminho, mesmo com a majoração da pena em dobro (§3º, art. 334) a pena mínima ainda assim é inferior a 04 (quatro) anos.
[iv] STJ analisando a aplicação da majorante do art. 12, I da Lei 8137/1990: AgRg no REsp 1412501/PE, Rel. Min. LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, DJe 10/04/2014; REsp 1325685/RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 07/08/2014, DJe 21/08/2014. O Tribunal de Justiça do Estado do Pará também possui o mesmo entendimento: (Acórdão n. 204877, AP 00130070520138140401, Rel. Des. Rômulo José Ferreira Nunes, 2ª Turma de Direito Penal, Dec. Unânime, DJ 6675, P. 07/06/2019)