O TRÁFICO PRIVILEGIADO E O DIREITO DO RÉU
O
TRÁFICO PRIVILEGIADO E O DIREITO DO RÉU
A
lei que visa coibir o tráfico de drogas, e prescreve medidas de
prevenção ao uso ilegal além de normatizar a repressão em face da
produção e venda, bem como delinear o que é crime no que se refere à
matéria de tóxicos, bem como busca construir ações para atenção e
reinserção social dos usuários e dependentes é a Lei 11.343/2006.
A
norma foi elaborada em um momento em que se vislumbrava no Brasil e no
mundo um aumento expressivo da ocorrência do crime e como decorrência,
sua elaboração não abarcou as necessárias discussões para avaliar a
ocorrência de exageros no texto legal.
Tal tese
encontra suporte na medida em que existem dois grandes questionamentos
no próprio STF a fim demitigar os efeitos da lei em face das garantias
constitucionais.
É fato que o Direito sempre reflete
anseios da sociedade, mas ao que se identifica com a promulgação da lei
de tóxicos é que ocorreu um grande avanço de limites.
Nos
seus 75 artigos a legislação traz algumas irregularidades graves e
alguns avanços, mesmo que seja quase um paradoxo, vez que o § 2º do
próprio artigo já foi palco da ADI 4.274/DF[1].
Este artigo tem como objetivo especificamente tratar sobre o instituto
(ou tese) do tráfico privilegiado, previsto no § 4º da Lei.
Embora
pareça maçante, ou cansativo, é necessário compreender o que significa
sob a ótica da lei o que é considerado tráfico de drogas:
1)Importar;
2) exportar; 3) remeter; 4)preparar; 5) produzir; 6) fabricar; 7)
adquirir; 8) vender; 9) expor à venda; 10) oferecer; 11)ter em depósito;
12) transportar; 13) trazer consigo; 14) guardar; 15) prescrever; 16)
ministrar; 17) entregar a consumo; ou ; 18)fornecer drogas; 19) semear;
20) cultivar; ou; 21) colher drogas; ou; 22) qualquer matéria prima que
possibilite a criação de drogas.
A pena para quem prática uma das 22 (vinte e duas) ações é:
Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
Se
não bastasse a classificação penal, existem elementos que agravam
sobremaneira o cumprimento da pena imposta ao réu que recebe a uma
condenação com o título de traficante: a classificação de crime
hediondo, ou seja, é considerado um crime sórdido, depravado, que
provoca grande indignação moral, causando horror e repulsa, que ferem a
dignidade humana, causando grande comoção e reprovação da sociedade.
Os crimes hediondos estão previstos na Lei 8.072/1990 [2],
e impossibilitam anistia, graça e indulto, fiança, além de impor o
cumprimento de pena em regime fechado, obrigando a progressão de regime
em conformidade com as alterações do pacote anticrime, Lei nº
13.964/2019 (mas este tema é para um próximo artigo).
Necessário destacar que o tráfico de drogas e entorpecentes é previsto na Constituição Federal, no artigo 5º, XLIII:
XLIII
– a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou
anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e
drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por
eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo
evitá-los, se omitirem.
Por
outro lado, o STF pacificou em 23 de junho de 2016 que a prática de
tráfico privilegiado não pode ser considerado crime hediondo [3], logo, superada a limitação da hediondez, podemos avançar a análise pormenorizada do instituto.
O
parágrafo 4º prevê requisitos que possibilita invocar uma auto
atenuante que pode reduzir a pena do caput do artigo 33 de um sexto a
dois terços (16,6% à 66,66%). Os requisitos são:
§
4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas
poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em
penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons
antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre
organização criminosa.
Sem
muito esforço é possível identificar que o legislador permitiu o
direito de redução da pena desde que cumpridas as imposições
necessárias, ou seja, se o réu cumpre os requisitos do parágrafo 4º,
conforme a atuação do advogado de defesa e demais condições do réu da
defesa, deverá a pena ser reduzida de um sexto a dois terços.
Logo,
estamos diante de uma causa de diminuição de pena ao contrário da ala
positivista dos juristas brasileiros que entendem que tal benesse é um
privilégio.
Por outro lado, os efeitos da causa de diminuição da pena apenas surtirão efeitos desde que o réu:
- seja
primário: isto é, não seja reincidente, sem condenação com trânsito em
julgado (sem existência de recurso em análise de julgamento), antes da
ocorrência de tráfico privilegiado; - possua bons antecedentes: não responda a outra ação penal (mesmo sem trânsito em julgado);
- não
esteja envolvido com organização criminosa: não esteja envolvido na
“criminalidade”, mesmo nunca tendo respondido a um processo criminal.
No
campo formal é identificada tendência do STF tem firmado posição no
sentido de que os requisitos são cumulativos e não alternativos [4], de modo que a ausência de qualquer um deles, desqualifica o réu para ser afetado pela causa de diminuição do parágrafo 4º.
Neste
ponto, necessário reforçar que embora o STF aponte o norte para a
necessidade de todos os requisitos, uma parcela significativa de
magistrados ad quo não tem considerado
todos os requisitos de forma cumulada, de modo que o não preenchimento
de algum deles não impede a aplicação do critério para diminuição da
pena (tráfico privilegiado).
Logo, transpondo as
colocações para o tema principal, o instituto do tráfico privilegiado é
um privilégio possível para o réu que se viu envolto como traficante
ocasional, não sendo um “traficante profissional” ou contumaz na prática
delituosa.
De modo que o voto do ministro Gilmar Mendes em sua análise da ADI 4.274/DF [1], apontou que:
Não
há dúvida, não estamos diante de um tipo penal novo em relação ao crime
de tráfico de drogas. Nem mesmo de um tipo derivado se trata. Ninguém
comete o crime do art. 33, § 4º. Comete-se o crime do art. 33, caput, ou
de seu § 1º, ainda que, na terceira fase da aplicação da pena, o agente
seja beneficiado pela diminuição de pena prevista no § 4º. Não há um
tipo penal derivado, mas a incidência de uma causa de diminuição de pena
sobre o tipo penal básico.
Não
há de se falar na invocação da causa de diminuição de pena para os
casos dos transportadores de drogas e entorpecentes, os vulgarmente
chamados de “mulas”, pois em conformidade com jurisprudência do STJ, é
nítido o envolvimento com organização criminosa que prática delito
hediondo [5].
A
doutrina aponta que a causa de diminuição de pena prevista no crime de
tráfico de drogas para o primário de bons antecedentes é:
Causa
de diminuição de pena: cuida-se de norma inédita, visando à redução da
punição do traficante de primeira viagem, o que merece aplauso.
Portanto, aquele que cometer o delito previsto no art. 33, caput ou §
1.º, se for primário (indivíduo que não é reincidente, vale dizer, não
cometeu outro delito, após ter sido definitivamente condenado
anteriormente por crime anterior, no prazo de cinco anos, conforme arts.
63 e 64 do Código Penal) e tiver bons antecedentes (sujeito que não
ostenta condenações definitivas anteriores), não se dedicando às
atividades criminosas, nem integrando organização criminosa, pode
valer-se de pena mais branda [6].
Outrossim,
necessário apontar que a conceituação ou caracterização do crime de
tráfico de drogas ou entorpecentes se fazem necessárias a existência da
flagrância do ato mínimo de comercio, que demonstre de forma inequívoca a
prática criminosa da pessoa.
De modo que além da
apreensão de drogas é imprescindível evidências que esta pessoa atue
como traficante, como a apreensão de celulares, somas de dinheiro de
pequeno valor, cadernos de registro ou qualquer outro elemento que
registre a venda para outros usuários ou distribuidores (traficantes),
apetrechos para fracionamento, distribuição ou qualquer outro elemento
coletado em provas de investigação prévia que são comuns àqueles que são
praticantes da ação delitiva de tráfico de drogas e entorpecentes.
Por
outro lado também necessário frisar que o crime de tráfico de drogas e
entorpecentes é concretizado com a realização de várias ações, as quais a
lei especial enumera, logo, será improvável que eventual apreensão de
drogas em razoável quantidade seja apontada como uso próprio na
tentativa de desqualificação do crime de tráfico para o tráfico
privilegiado ou para a figura do usuário de drogas, já que a própria
jurisprudência aponta que a quantidade total pode sim delinear os traços
da traficância.
De sorte que existindo qualquer
elemento que leve o julgador à questionar se o réu é traficante nato
(reincidente, eventual), traficante novato (de bons antecedentes e
primário) ou usuário dependente, em se tratando do conjunto de provas do
processo com provas frágeis, aliada à existência de pequena quantidade
de drogas, bem como a suposta prisão ou apreensão se deu, se tem a
existência de dúvidas quanto à conduta delituosa do réu, o que impõe a
necessidade de considerar que a dúvida deve favorecer a quem está sendo
imposta a prática criminosa devendo se passar à desclassificação do
crime capitulado no caput do artigo 33 para o previsto no § 4º, isso
quando não deve haver a desqualificação para o artigo 28 da mesma Lei[7].
RESULTADOS PRÁTICOS DA DESCLASSIFICAÇÃO DO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS
O
uso da causa de diminuição prevista no parágrafo 4º beneficia o réu de
forma significativa quando da elaboração de eventual pena condenatória,
vez que por ocasião da elaboração da dosimetria da pena[8]
ter como resultado (após a aplicação da fração variável de 1/6 à 2/3)
uma pena de valor menor do que aquele previsto como mínima para o crime
de tráfico de drogas e entorpecentes, caput do artigo 33, que prevê
cinco anos.
Neste diapasão, há a possibilidade de
uma pena mínima resultar em um ano e oito meses ao invés de receber uma
pena de cinco anos, o que possibilita que o regime inicial de
cumprimento da pena seja o regime semi-aberto.
Outro ponto que merece destaque é o fato de que o Senado Federal [9]suspendeu a execução do seguinte trecho do parágrafo 4º: vedada a conversão em penas restritivas de direitos
por força da declaração de inconstitucionalidade definitiva do Supremo
Tribunal Federal nos autos do Habeas Corpus nº 97.256/RS.
De modo que o cumprimento no exemplo supra poderá inclusive ser realizado por meio da imposição da restrição de direitos.
pode-se
concluir afirmando que a modalidade de tráfico privilegiado constitui
importante causa de diminuição de pena que atende em primeiro lugar uma
politica de gestão prisional, já que conforme dados do monitor de
presídios do CNJ, mais de 28% das pessoas presas são oriundas de crimes
relacionados com o tráfico de drogas e entorpecentes e em segundo lugar
houve uma preocupação do legislador em resguardar o réu primário que se
envolveu em atividades de tráfico e possui bons antecedentes e é
primário para que responda pelo seu crime de uma forma mais amena e
assim se conscientize e não volte mais a praticar atos delituosos,
contudo, para que isso se concretize o Estado, sociedade e família devem
cumprir suas partes.
REFERÊNCIAS
BRASIL.
Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil:
promulgada em 5 de outubro de 1988. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
_____. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 4.274/DF. Relator: Min. Ayres Britto. Brasília, DF, 23 de novembro de 2011.
_____. Supremo Tribunal Federal. RHC nº 110.084/DF. Relator: Min. Luiz Fux. 1ª Turma. Brasília, DF, 29 de novembro de 2011.
_____.
Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1.501.704/SP. Relator: Min.
Reynaldo Soares da Fonseca. 5ª Seção. Brasília, DF, 02 de maio de 2016.
_____.
Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1.507.986/SP. Relator: Min.
Nefi Cordeiro. 6ª Turma. Brasília, DF, 11 de maio de 2017.
_____.
Superior Tribunal de Justiça. EREsp 1.431.091/SP. Relator: Min. Felix
Fischer. 1ª Seção. Brasília, DF, 01 de fevereiro de 2017.
NUCCI,
Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 8ª Ed.
Rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 316.
[1]
O parágrafo 2º do artigo 33 da Lei 11.343/2006 é interpretado desde 23
de novembro de 2011 em conformidade com a Constituição, por força do
Acórdão da ADI 4.274/DF, excluindo qualquer
significado que enseje a proibição de manifestações e debates públicos
acerca da descriminalização ou legalização do uso de drogas ou de
qualquer substância que leve o ser humano ao entorpecimento episódico,
ou então viciado, das suas faculdades psico-físicas, em conformidade com a decisão unânime com base no voto do Relator Ministro Ayres Britto.
[2]
De forma resumida, são crimes hediondos previstos nos artigos 1º e 2º
da Lei 8.072/1990: homicídio praticado em chacina ou qualificado; lesão
corporal dolosa de natureza gravíssima; roubo, com restrição de
liberdade da vítima, uso de armamento permitido ou restrito ou ainda com
o uso de arma branca (faca por exemplo), ou ainda que cause alguma
lesão física da vítima; latrocínio; sequestro; estupro; a promoção de
epidemias; falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto
medico ou terapêutico; a prostituição de crianças ou adolescentes; o
furto com uso de explosivo; o porte, comercio ou tráfico de arma de fogo
de uso restrito; a organização criminosa que pratique algum ato
classificado como crime hediondo; tráfico ilícito de entorpecentes e
drogas afins; terrorismo.
[3] Votaram pelo reconhecimento da prática de tráfico privilegiado como crime hediondo: Dias Toffoli, Luiz Fux e Marco Aurélio.
Votaram
pela desclassificação da hediondez: Cármen Lúcia (Relatora), Luís
Roberto Barroso, Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Gilmar
Mendes, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski.
[4]
Também entendendo que os requisitos legais “devem estar presentes
cumulativamente” para a incidência do tráfico privilegiado. STF, RHC
110.084/DF, rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 29.11.2011; e STJ, EREsp
1.431.091/SP, rel. Min. Felix Fischer, 3ª Seção, j. 01.02.2017.
[5] STJ, AgRg no REsp 1.501.704/SP, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, j. 02.05.2016. E também: “Esta
Corte Superior tem admitido o afastamento do redutor pelo tráfico
privilegiado, quando evidenciada função específica de transportador, ‘mula’, por entender que nestes casos há efetivo envolvimento com organização criminosa” (STJ, AgRg no REsp. 1.507.986/SP, rel. Min. Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. 11.05.2017).
[6]
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas.
8ª Ed. Rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 316.
[7] TJSP. Apelação Criminal 0007622-35.2010.8.26.0082, 16.ª Câmara de Direito Criminal, rel. Newton Neves, DJ 11.03.2014); TJRS. Apelação Crime 70057831950, 1.ª Câmara Criminal, rel. Sylvio Baptista Neto, j. em 12.02.2014; TJDF. Apelação Criminal 2013 01 1 110369-5 APR, 3.ª Turma Criminal, rel. João Batista Teixeira, 20.02.2014; TJMG. Ap. 1.0324.04.023371-4/001, rel. Paulo Cezar Dias, 13.09.2005, DJ, 24.11.2005; TJDF. Apelação Criminal 2013 01 1 110369-5 APR, 3.ª Turma Criminal, rel. João Batista Teixeira, 20.02.2014; TJMG. Ap. 1.0324.04.023371-4/001, rel. Paulo Cezar Dias, 13.09.2005, DJ, 24.11.2005; TJMG. Apelação Criminal 1.0439.11.014309-6/001, 7.ª Câmara Criminal, rel. Marcílio Eustáquio Santos, DJ 27.02.2014; TJRS. Ap. 70013766621, 3.ª C., rel. Elba Aparecida Nicolli Bastos, 04.05.2006.
[8]
sistema trifásico previsto no artigo 68 do Código Penal, subsidiada
pelo artigo 59 (1ª fase), artigos 65 – atenuantes, 61 e 62 – agravantes
(2ª fase), e 3ª fase que aplica eventuais causas de diminuição ou
aumento de pena.
[9] Constituição Federal – Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
[…]
X
– suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada
inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;
*Rafael Pinto Ribeiro é advogado criminalista.
Bacharel em Direito pela Universidade Positivo/PR. Especialização L.LM.
em Direito Empresarial. Pós-Graduando em Direito Penal e Processual
Penal. Juiz Leigo do Tribunal de Justiça do Paraná. Membro da Comissão
de Inovação e Gestão da OAB/PR. Email: rafael@rpr.adv.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3975-9861