OPINIÃO – Como o juiz deve decidir os chamados casos difíceis?
Todo magistrado minimamente sensível aos apelos das partes que lhe demandam justiça já experimentou a desconfortável sensação de impasse que advém (i) da inexistência de regra prévia escrita — seja lei ou precedente judicial legítimo — para nortear a solução de uma questão jurídica que lhe compete resolver. Igual perplexidade o assedia (ii) quando há mais de uma regra disponível para regular o caso em exame, mas veiculando orientações divergentes, ou (iii) quando a regra disponível mostra-se tão agressiva ao senso comum de equidade ou de justiça que raia a absurdeza a sua aplicação.
Tem-se denominado essas situações, aliás muito frequentes, de casos difíceis, o que indica que o desejável pelos julgadores — ou o seu optimo funcional — é que exista uma lei válida, vigente, eficaz e boa (justa ou equitativa) fornecendo-lhe diretamente a solução da questão. Nessa rara hipótese, o que lhe cabe (ao juiz) é apenas aplicá-la, exercendo uma atividade reprodutiva de conceitos e visões precedentes e em tudo e por tudo semelhante ao exercício tecnoburocrático, tão assiduamente desempenhado pelos agentes estatais do poder administrativo.
Em outras palavras, a postura judicial de submissão pura e simples aos comandos das regras legais, sem qualquer crítica aos seus conteúdos, confina com o exercício funcional rotineiro que cabe aos servidores públicos em geral, como já o disse o professor Norberto Bobbio (1909-2004), em livro muito citado pelos juristas, apesar da parca reflexão a seu respeito (O Positivismo Jurídico. Tradução de Márcio Pugliese, Edson Bini e Carlos Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 28).
O professor ministro Eros Grau vê nessa atitude dos juízes a sua consagração ao serviço do arbítrio e da opressão, visto que todo e qualquer conteúdo pode ser Direito, ainda que arbitrário e opressivo (Direito/Conceito e Normas Jurídicas. São Paulo: RT, 1988, p. 31), o que ele rejeita com vigorosa veemência. O professor Dalmo Dallari diz que tal conduta judicial elimina a procura do justo e o que sobra é um apanhado de normas técnico-formais, que sob a aparência de rigor científico, reduzem o Direito a uma superficialidade mesquinha (O Poder dos Juízes. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 85).
O jurista português professor Paulo Otero conecta o não controle da legitimidade das leis à vocação totalitária das estruturas estatais. Para ele, o Estado totalitário, procurando definir novas categorias morais e elevando o próprio Estado a um verdadeiro Deus, assenta em quatro preferências estruturais (i) prefere a disciplina à justiça; (ii) a autoridade à liberdade; (iii) a obediência à consciência e, por último, (iv) a violência à tolerância (A Democracia Totalitária. Lisboa: Principia, 2000, p. 20).
O imortal professor Paulo Bonavides mostrou como a ordem jurídica de tendência legalista absorveu no conceito de legalidade a exigência ética da legitimidade, vindo daí o desastre das injustiças e dos massacres, tudo sob a bênção apaziguadora da lei, excluída de ser submetida à verificação de conteúdo. A sua preocupação mais aguda era com o legalismo positivista, que dissolveu o conceito de legitimidade, elegendo, em seu lugar, a legalidade formalista e pregando o seu exato cumprimento, como norte ou escopo da atividade interpretativa jurídica e judicial.
Ele detectou que efetivamente banido ficava, por inteiro, do centro das reflexões sobre o Direito o problema crucial da legitimidade, numa concepção assim de todo falsa e, sobretudo, já ultrapassada. (Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 37). A eliminação da preocupação com a legitimidade das regras positivas gerou o advento do legalismo, cuja característica predominante é a de reduzir todo o Direito às leis escritas. Com a expulsão da legitimidade, aflorou o antigo estatismo autoritário, tendência sempre latente em todos os tipos estatais, entronizando no lugar da origem divina dos governantes, a origem alegadamente democrática das leis escritas.
O diagnóstico anti-legalista traçado por esses mestres evidencia que a solução dos casos difíceis não pode ser encontrada no denominado panorama das regras postas, coisa que o professor Lourival Vilanova (1915-2011) já indicara, ao proclamar que o sistema positivo é manifestamente insuficiente para dar conta da experiência jurídica (As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: RT, 1977, p. 63). Tudo isso nos leva, inevitavelmente, a pensar que as decisões judiciais — e não apenas as difíceis — não podem dispensar a reflexão criadora e a construção original de soluções próprias à singularidade do caso específico em exame ou, em outras palavras, à decantada justiça do caso concreto.
E assim somos alertados para a tarefa da fundamentação das decisões, que devem expressar o conhecimento da realidade da questão, mediante a sua própria atualidade, o que não se alcança por simples dedução. Como adverte o professor Hans Albert, através da dedução lógica nunca se pode obter um conteúdo. De um conjunto de enunciados só se pode tirar, através do processo dedutivo, a informação que já está contida nele. (Tratado da Razão Crítica. Tradução de Idalina Azevedo da Silva, Erika Gudde e Maria José Monteiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969, p. 25).
Isso quer dizer que, se o juiz não criar a solução dos casos difíceis, apoiando-se ponderada e fundamentadamente nos princípios e nos valores do Direito, eles (os casos difíceis) permanecerão sem solução, porque (i) não há regra prévia ajustada à situação, (ii) há mais de uma regra disponível, porém com mensagens opostas, ou (iii) a regra existente é injusta, perversa ou iníqua, pelo que não merece aplicação ou abono judicial. No terceiro caso, a solução legalista parece ser simples: aplique-se a regra, nem que o mundo pereça. Então, o julgador seguirá essa recomendação, olímpico com uma entidade, indiferente ao resultado injusto que a sua decisão irá produzir.
Resta, porém, a inquietante pergunta de se saber por qual razão ignota ou conspícua os julgadores muitas vezes se escudam em vácuos legais ou em leis vedadoras, para negar tutela judicial, mesmo a direitos que ostentam gritantemente o nível de fundamentais? Será este apenas um caso de amor ao legalismo?
Napoleão Nunes Maia Filho é ministro aposentado do STJ (2007/2020). Conjur.