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ORWELL E AS GALINHAS, O NOVO BEM JURÍDICO DA MODA

Com a notícia da sanção pelo presidente interno Michel Temer, da Lei nº 13.330/2016, que alterou de maneira dramática a forma que o Direito Penal realiza a gradação dos bens jurídicos tutelados pelo Estado, acreditamos, mais do que nunca, que o então mundo distópico de “A Revolução dos Bichos” ensaiado pelo jornalista inglês George Orwell, mesmo já datado de 71 anos de idade, ainda se mostra política e socialmente atualizado, desta vez transportado para a nossa República das Bananas.

Para os que não leram ou estão esquecidos deste clássico da literatura inglesa, que se erigiu na época como intensa oposição às matizes totalitaristas da política stalinista, Orwell criou um mundo paralelo onde os personagens são animais que vivem em uma fazenda, com características inarredavelmente humanas como o autoritarismo, crueldade, egoísmo, avareza, etc. Nesta toada, o inglês demonstrou, com sua clareza satírica peculiar, que o homem-animal é um ser naturalmente autofágico (Hobbes), e que a ambição é característica peculiar que muitas vezes afasta a humanidade do ser, tornando o homem-animal em uma besta sem quaisquer traços de empatia com seus semelhantes.

Nesta obra literária, tomados pelo espírito de revolução,os Porcos saem de seus nobres celeiros para juntar forças com os demais bichos, elaborando sete mandamentos que explicitavam direitos e deveres de cada animal que, de comum e democrático acordo, deveriam seguir à risca os termos acordados. Entretanto, e como nada é para sempre, o sonho do Estado Democrático Animal foi se esfacelando em razão da corrupção dos Porcos que lideravam a fazenda, que se consideravam superiores aos outros bichos e terminaram por modificar, pouco a pouco, as regras do Estado para auferir cada vez mais vantagens para a sua classe em específico(qualquer semelhança com o nosso constitucionalismo e com os moldes que nosso estado “democrático” de direito está se erigindo não passa de mera coincidência).

Talvez inspirados e contemplados pela leitura deste livro, os deputados da bancada ruralista, junto com o presidente interino Michel Temer, respectivamente propuseram e sancionou lei que qualifica o crime de furto ou receptação contra animais semoventes e domesticáveis de produção (porcos, galinhas, gados, etc.), exaspera a reprimenda legal para o patamar de 2 a 5 anos de reclusão e cria grave precedente que autoriza a ingerência cada vez mais desmedida do arbítrio estatal, sem qualquer tipo de ponderamento dos bens jurídicos afetados, posto que se pune tanto o “ladrão de carga” de animais, como aquele pobre coitado que furtou uma galinha para abastecer os estômagos de sua família.

E assim como aconteceu na fazenda tomada pelos Porcos de Orwell, o que ocorre é que outros animais, desta vez muito bem vestidos de terno e gravata de grifes europeias, utilizam-se de uma razão instrumental voltada ao desenvolvimento dos seus próprios benefícios de ordem capitalista, esquecendo de perceber as perspectivas humanistas do Direito Penal e acabando por constranger e reduzir o âmbito de incidência da razão crítica, a verdadeira faculdade de se julgar o que é certo ou errado, justo ou injusto. Assim, em nome dos objetivos capitalistas da bancada ruralista (evitar o furto de gado), os limites ético-morais são relativizados e extintos, posto que se pune, pasmem, mais severamente aqueles que furtam uma galinha do que aos que privam um animal-humano de sua liberdade, mediante sequestro ou cárcere privado (reclusão de 1 a 3 anos, cf. Art. 148 ,caput, CPB).

E é justamente diante deste caos urbano, desta histeria coletiva tomada pela ansiedade para pôr um fim à criminalidade, que se desenvolvem e florescem essas modificações da ciência criminal como uma fórmula mágica para o estancamento da violência pública. Neste ponto, os donos do capital da bancada ruralista do Poder Legislativo, em verdadeiro marco do desequilíbrio da distribuição dos poderes, ditam quem e como serão presos aqueles que ousarem afetar os interesses de seus bolsos e de suas carteiras, tudo ao revés de discurso retórico, de cunho meramente sofístico, generalizando condutas que apenas servem para atrair a violência estatal para aqueles que já são violentados pelo mundo diariamente.

E assim como já estava às claras na fazenda de Orwell, o Estado faz-de-conta-Democrático de Direito se constrói através da criativa invenção de um mero fantoche de proteção social na retórica utilitária do arbítrio, pois afasta os olhares curiosos do bicho-povo da corrupção sistêmica estatal através da manifestação de discursos acusatórios de poder, de controle e de segurança, que termina por punir o elo fraco da cadeia alimentar social, afetando até o pobre bicho racional que furta uma “penosa” para saciar sua fome.

Emerson Leônidas.

Advogado Criminalista.

 Presidente da Abracrim PE.

        Membro da Comissão Nacional de Defesa da República e da Democracia do Conselho  Federal da OAB.

                                                    Davi Carvalho Meira.

Acadêmico da Universidade Federal de Pernambuco

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