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Os Impactos da Regulamentação do uso de IA no Judiciário e Desafios para a Advocacia

O avanço da inteligência artificial (IA) no sistema judiciário brasileiro impõe riscos diretos à advocacia, especialmente diante da nova atualização da Resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nº 332/2020, a qual pode impactar tanto a atuação dos advogados(as) no Judiciário quanto a autonomia das decisões judiciais.

A recente resolução do CNJ, aprovada em 18 de fevereiro de 2025, estabelece diretrizes para o uso responsável da IA nos tribunais, incluindo normas de governança, auditoria e transparência. Embora a regulamentação vise assegurar que a tecnologia respeite os direitos fundamentais e a segurança jurídica, existem preocupações legítimas sobre seu uso na produção de decisões judiciais com reflexos que podem limitar o pleno exercício da advocacia (prerrogativas no cenário de IA).

Embora a regulamentação do CNJ oriente para o impedimento da IA em substituir os magistrados na tomada de decisões de forma autônoma, essa realidade não elimina os desafios que os advogados(as) enfrentarão ao lidar com decisões baseadas em algoritmos.

A resolução não menciona especificamente quais fontes de doutrina e jurisprudência serão utilizadas para formatar sentenças geradas com o auxílio da IA, o que compromete a argumentação jurídica no exercício da defesa, prejudicando/limitando o papel da advocacia no sistema judicial da IA. Assim, seria recomendável que a resolução informasse explicitamente quais bases de dados estão sendo inclusas (transparência – artigo 8º). Justamente neste ponto, está um dos relevantes riscos desta normativa justamente pela ausência  de transparência, dificultando a identificação de vícios na padronização automatizada do raciocínio jurídico da IA. Isso pode resultar em um cenário onde advogados(as) passam a depender de interpretações algorítmicas, sem total clareza sobre os critérios utilizados. A falta de acesso à lógica dos sistemas de IA pode dificultar a consonância metodológica das decisões.

Apesar da previsão de auditorias e supervisão sobre o uso da IA, a resolução do CNJ não especifica o nível de acesso que advogados(as) terão aos critérios utilizados pelos algoritmos, o que, na minha visão, prejudica o pleno exercício da advocacia. Se as decisões ou pareceres gerados por IA não forem citados com clareza e transparência, advogados(as) podem enfrentar barreiras na contestação de julgamentos baseados nessas tecnologias. A transparência é essencial para evitar a ausência de controle adequado, pois a ferramenta da IA pode exacerbar as desigualdades sociais, representando graves ameaças para a segurança jurídica e pleno direito ao contraditório.

A proibição do uso da IA para perfis criminais baseados em características pessoais ou comportamentais é um avanço da resolução, mas ainda persiste o risco de viés algorítmico na análise da produção de provas e evidências nestes casos. Ferramentas que analisam dados históricos objetivamente podem reforçar desigualdades e impactar na defesa de réus, comprometendo a equidade processual.

Além disso, a introdução da IA no processo penal (a resolução apenas diz que não deve ser estimulada, não veda – art. 23) levanta questões sobre a justa causa e a lealdade processual, especialmente quando algoritmos influenciam a avaliação inicial da necessidade de um futuro processo penal e a metodologia tecnologia na cadeia de provas. Caso a IA seja utilizada para analisar a existência de justa causa, há um risco considerável de que fatores subjetivos sejam incorporados ao sistema, resultando na formulação de denúncias baseadas em padrões contestáveis. Além disso, mais uma vez dito que, a falta de transparência nos critérios utilizados pelos algoritmos pode comprometer a capacidade dos advogados(as) de contraditar a abertura de processos penais improcedentes, afetando diretamente o direito de defesa e a equidade no julgamento. A acusação deve apresentar todas as evidências disponíveis ou, no mínimo, indicar onde o acusado pode acessá-las, pois assim a advocacia tem a viabilidade de identificar que algoritmos promovem a ausência de análise de provas exculpatórias o que, sem dúvidas, influenciam o resultado de um julgamento com base em inferências parciais.

A aplicação da Regra de Brady no Brasil torna-se ainda mais relevante no contexto do uso da IA. A obrigação estatal de garantir que a defesa tenha acesso a todas as provas disponíveis devem ser ampliada para assegurar que as bases de dados que alimentam os algoritmos contenham informações completas e imparciais. Nos Estados Unidos, essa regra foi estabelecida pela Suprema Corte no caso Brady v. Maryland (1963) e reforçada por decisões subsequentes, como Giglio v. United States (1972) e United States v. Bagley (1985), garantindo que a omissão de provas exculpatórias possa anular condenações injustas.

No Brasil, no entanto, com a crescente utilização de IA no Judiciário, há um risco real de que decisões judiciais sejam tomadas com base em dados incompletos, comprometendo a imparcialidade do processo penal na produção jurisdicional.

Outro tema prejudicial à advocacia é a proliferação de assistentes jurídicos baseados em IA, que já se tornou uma realidade, com a tendência de automação de serviços criminais que antes eram prestados exclusivamente por advogados(as). Esse fenômeno pode levar à chamada “comoditização da advocacia”, onde atividades como a apresentação de defesas preliminares e pareceres jurídicos passam a ser realizadas por softwares, reduzindo a percepção de valor do trabalho jurídico e impactando a sustentabilidade financeira da profissão.

Diante desses desafios, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) desempenha um papel fundamental na fiscalização e regulamentação do uso da IA no sistema judiciário, atuando para mitigar os riscos que a advocacia enfrenta. A entidade busca garantir que a implementação da IA respeite os princípios do devido processo legal, assegurando que advogados(as) tenham pleno acesso aos critérios utilizados pelos algoritmos e possam contestar decisões automatizadas de maneira eficaz. Além disso, a OAB trabalha para fortalecer a governança dessas tecnologias, exigindo maior transparência e mecanismos de auditoria que preservem a autonomia da advocacia no exercício da defesa dos direitos de seus clientes. A inclusão da entidade no Comitê Nacional de Inteligência Artificial do CNJ é um avanço importante, permitindo que advogados(as) possam questionar e monitorar as aplicações dessa tecnologia. O presidente nacional da OAB, Beto Simonetti, destacou que “o uso da inteligência artificial no Judiciário deve ser uma ferramenta de apoio, jamais um substituto da atuação humana”.

A OAB já publicou recomendações para orientar a advocacia no uso responsável da inteligência artificial, enfatizando a importância da supervisão humana e a necessidade de mecanismos claros de auditoria e governança sobre os sistemas utilizados pelos tribunais. A entidade também participa ativamente na implementação da resolução por meio de sua representação no Comitê Nacional de Inteligência Artificial do Judiciário, contribuindo para a supervisão e a aplicação das diretrizes estabelecidas.

A Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM), por meio do presidente Sheyner Asfóra, preocupada com os efeitos da resolução e a ausência de um debate aberto com a advocacia criminal, instalou a Comissão Nacional de Inteligência Artificial e Algoritmos Criminais. A comissão tem a finalidade de estudar, acompanhar e propor medidas relacionadas ao uso da IA e algoritmos no âmbito do sistema de justiça criminal brasileiro, visando fortalecer a atuação da advocacia criminal frente aos desafios tecnológicos da IA.

Deste modo, com a regulamentação da IA no Judiciário, faz-se necessário um amplo debate com a advocacia criminal; esse será o papel da comissão, que tem como objetivo identificar os desafios a serem enfrentados no exercício da advocacia na representação do cidadão na justiça tecnológica. “Cabe à advocacia manter-se ativa e engajada, assegurando que a implementação dessas inovações respeite os princípios garantistas e preserve o papel essencial dos advogados(as) no sistema de justiça afirma o Presidente Sheyner Asfora.

O uso excessivo de IA sem supervisão adequada pode comprometer garantias processuais, reduzir a autonomia dos advogados(as) e criar obstáculos na defesa dos direitos da cidadania, prejudicando, assim, os Direitos Fundamentais definidos na Constituição. Este cenário da IA obriga a advocacia a uma vigilância redobrada; para isso, são inevitáveis investimentos em tecnologia, já que as estruturas públicas, como o Judiciário, o Ministério Público e as polícias, investem milhões na criação de plataformas tecnológicas de IA, o que, para grande parte da advocacia brasileira, torna-se inviável. É necessário estar atento a todas essas questões, pois, como já mencionado, a advocacia, no tema da paridade de armas, na era da IA estará deficiente e o direito de defesa comprometido.

Ricardo Breier é advogado. Pós-Doutor em Direito – Uminho/Portugal, pesquisa no tema IA e Justiça Digital. Presidente da OAB/RS (2016/2021). Presidente da Comissão Nacional de Inteligência Artificial e Algoritmo Criminal da ABRACRIM.

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