Os reflexos da Portaria MTB nº 1.129/2017 na tipificação do crime de redução à condição análoga à de escravo (CP, art. 149).
No dia 16 de Outubro de 2017, o Ministério do Trabalho e Emprego publicou a Portaria nº 1129, a qual dispõe sobre os novos conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho, nos termos do artigo 2-C da Lei nº 7998, de 11 de janeiro de 1990 e sobre alterações em dispositivos da PI MTPS/MMIRDH nº 4.
Para a finalidade de elaboração deste artigo, o que nos interessa, precisamente, é a implicação criminal que a novidade jurídica trará à interpretação do injusto descrito no art. 149 do Código Penal.
O caput é assim descrito: “Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.
Prima facie, cumpre observar que o referido delito está localizado no Capítulo VI do Código, onde constam os crimes contra a liberdade individual, e na Seção I, onde constam os crimes contra a liberdade pessoal. Considerando a posição estatutária da norma e a interpretação correta que se faz de seus elementos objetivos e subjetivos, podemos afirmar que o bem jurídico tutelado é a liberdade individual, ou seja, o status libertatis assegurado na Constituição.
Entretanto, a doutrina vai além e considera que a tutela penal da norma em comento se refere não somente à liberdade em si mesma, mas também aos reflexos dela lesivos à dignidade da pessoa humana. Têm-se aqui protegido o valor ético-social do exercício pleno da liberdade na relação de trabalho[1].
Até aí não há qualquer debate a ser travado. É que o nó górdio encontra-se na complexa imputação do crime. Na prática, a subsunção do fato à norma é realizada, inicialmente (e quase que definitivamente), pelos Fiscais do Trabalho, os quais se valem das instruções normativas do MTE para, comparecendo in loco, definirem se há trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho ou restrição à locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Este fiscal é quem acaba definindo a materialidade e a autoria do delito, em analogia ao relatório final produzido pelo Delegado de Polícia ao cabo do inquérito policial. Assim é que expressões como “jornada exaustiva”, “trabalhos forçados”, “condições degradantes de trabalho”, têm seu conceito definido a partir, entre outras origens, do não cumprimento das regras e formalidades estabelecidas nas citadas instruções normativas. Destarte, claramente temos aqui um tipo penal aberto. E se não aberto, de complexa caracterização.
Essa valoração realizada para efeitos de subsunção muitas vezes é inescapável (e até necessária), dada a complexidade das relações humanas, cuja linguagem não é capaz de abarcar em absoluto as mais diversas ocorrências. Todavia, na lição de BITENCOURT, se levada às últimas consequências, “pode chegar a alcançar proporções alarmantes quando o legislador utiliza excessivamente conceitos que necessitam de complementação valorativa, isto é, descrevem efetivamente a conduta proibida, requerendo, do magistrado, um juízo de valoração para complementar a descrição típica, com graves violações à segurança jurídica”[2].
A Portaria do MTE vem em boa hora, pois se o fomento da criminalização das condutas em geral não é a saída primeira e definitiva para a diminuição da violência, não seria este o caminho correto a percorrer se quiséssemos tratar com o mesmo garantismo a criminalização de condutas nas relações de trabalho, destinadas à proteção da liberdade individual.
Nesse passo, o trabalho forçado vem agora melhor delimitado: “Art. 1º. I – trabalho forçado: aquele exercido sem o consentimento por parte do trabalhador e que lhe retire a possibilidade de expressar sua vontade”. O consentimento do trabalhador, aqui possível vítima, é tratado por parte da doutrina, incoerentemente, como desnecessário, ao passo que nos outros crimes contra a liberdade individual é tratado como relevante[3]. O argumento seria de que quando há lesão a princípios fundamentais do Direito Público e à dignidade da pessoa humana, o consentimento não operaria a exclusão da ilicitude.
Outra crítica parte do apontamento de que, muitas vezes, o consentimento do ofendido na relação de trabalho restaria prejudicado, pois este teria sua livre vontade tolhida em razão da necessidade que sempre tem de manter o emprego, ainda que a contragosto.
Este panorama seria suficiente para que o Executivo melhor esclarecesse as ocorrências. E assim o fez, na medida em que agora exige o consentimento do trabalhador, que se reconhece no direito como causa supralegal de exclusão de ilicitude[4], jungido à (im)possibilidade deste expressar sua vontade, como requisitos da caracterização do trabalho forçado.
Sem razão, porém, os críticos. Isto se diz por que o requisito do consentimento, sozinho, não tem valor jurídico algum. É necessário que a ele se some a retirada da possibilidade de expressão da vontade. Não se pode caracterizar trabalho forçado porque tão somente o trabalhador não consinta com a situação. Faz-se indispensável reconhecer que aquela situação lhe retirou a possibilidade de expressar sua vontade livre e espontânea, obstando-o de revelar suas intenções.
O debate sobre o consentimento do ofendido ganha força, eis que, como ensina CIRINO DOS SANTOS[5], “o consentimento real do titular de bem jurídico disponível tem eficácia excludente da tipicidade da ação porque o tipo legal protege a vontade do portador do bem jurídico, cuja renúncia representa exercício de liberdade constitucional de ação”. A propósito, nesse sentido, o jurista paranaense cita também doutrina alemã – como MAURACH/ZIPF, Strafrecht 1, 1992, §17, III, 1, n. 36, p. 227 e ROXIN, Strafrecht, 1997, §13, n. 11-14, p. 461-462 – para ao final concluir: “Todos os bens jurídicos individuais, inclusive o corpo e a vida – como mostra a prática de esportes marciais -, são disponíveis”[6]. Se o corpo e a vida são disponíveis, como entende CIRINO, porque não seriam os detalhes de sua relação de trabalho? É a relação laboral digna de maior proteção que a vida ou o corpo?
A jornada exaustiva restou assim conceituada: “Art. 1º (…) II – jornada exaustiva: a submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria”. Novamente procurou o Ministério do Trabalho incluir, corretamente, a vontade do trabalhador como requisito, somada à privação do direito de ir e vir. Dogmaticamente, como acima salientado, esta é a melhor forma de interpretarmos os injustos penais destinados a proteger a liberdade individual, mesmo nas relações de trabalho.
Já no inciso III do art. 1º, têm-se o conceito de condição degradante: “III – condição degradante: caracterizada por atos comissivos de violação dos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, consubstanciados no cerceamento da liberdade de ir e vir, seja por meios morais ou físicos, e que impliquem na privação da sua dignidade”. Este já não possui como requisito o consentimento do trabalhador, mas tão somente os atos exclusivamente comissivos de violação do direito ambulatorial, seja pela vis corporalis (meios físicos) ou vis compulsiva (meios morais), e que se destinem à privação da dignidade.
Por fim, a condição análoga à de escravo é trazida com os seguintes delineamentos:
IV – condição análoga à de escravo:
- a) a submissão do trabalhador a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntária;
- b) o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, caracterizando isolamento geográfico;
- c) a manutenção de segurança armada com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto;
- d) a retenção de documentação pessoal do trabalhador, com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho;
Em relação a esta, já que o presente escrito não tem pretensões de esgotamento do assunto, necessário apenas frisar que a só intenção de descrever melhor as condutas já homenageia, de longe, o princípio da legalidade estrita ou taxatividade penal.
É sabido que descrição aberta de condutas criminais deflagra contra a segurança jurídica a maior das guerrilhas, deixando ao arbítrio do fiscal do trabalho, do juiz e promotor, a adequação do fato à norma. A imprecisão semântica resgata a vontade do soberano em demérito da vontade da lei.
Na mesma linha é o pensamento de DE PAULA MACHADO e MOURA[7], pois o legislador penal, “com o duvidoso objetivo de criar preceitos omnicompreensivos que assegurem a maior parcela possível de segurança ante os perigos da vida moderna (…) tem recorrido com frequência a certas técnicas legislativas marcadas pelo alto grau de indeterminação, que veiculam uma vaga, e pouco clara, redação da matéria de proibição. Trata-se, pois, de uma perigosa flexibilização do princípio da legalidade penal, especialmente das exigências de taxatividade e certeza”.
FERRAJOLI[8] já alertava quando escreveu sobre verificabilidade jurídica e denotação legal: “Se aplicarmos esta teoria do significado à linguagem penal, diremos que uma tese judicial é verificável e falseável se (e apenas se) os termos nela empregados forem providos de extensão determinada, quer dizer, já que a extensão está determinada pela intensão, se e apenas se suas intensões estiverem definidas de maneira clara e precisa” (grifou-se). Continua o mestre italiano: “O pressuposto necessário da verificabilidade e da falseabilidade jurídica é que as definições legais que estabelecem as conotações das figuras abstratas de delito e, mais em geral, dos conceitos penais sejam suficientemente precisas como para permitir, no âmbito da aplicação da lei, a denotação jurídica (ou qualificação, classificação ou subsunção judicial) de fatos empíricos exatamente determinados) (grifou-se)”.
Portanto, ainda que o melhor esclarecimento das condutas tenha se dato por ato do Executivo (Portaria), a finalidade foi dar maior precisão linguística e interpretativa dos conceitos abertos do tipo penal descrito no art. 149.
Em tempos de expansão do direito penal (Silva Sánchez), nada mais saudável que conter os espaços de arbítrio do intérprete penal. Mesmo que muitas vezes tenhamos por impróprio o auxílio do Direito Administrativo para fins de imputação, não podemos deixar de elogiar quando, por este mesmo expediente, os elementos utilizados para subsunção são melhores fincados como marcos hermenêuticos.
[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – v. 2. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 488.
[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – v. 1. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 61.
[3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – v. 2. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 491.
[4] “Desse modo, o consentimento do titular do bem jurídico (pessoa física ou jurídica) exime a responsabilidade penal, em certas hipóteses, sempre quando diz respeito a bens jurídicos individuais em relação aos quais existe disponibilidade para concordar”. REGIS PRADO, Luiz. Tratado de Direito Penal – v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 447.
[5] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal – Parte Geral. 6 ed. Curitiba: ICPC. 2014, p. 262.
[6] Idem, ibidem.
[7] DE PAULA MACHADO, Fabio Guedes; MOURA, Bruno. Perspectivas político-criminais e dogmáticas do direito penal no contexto da sociedade de riscos. In Direito penal e processo penal: parte geral/organizador Gustavo Henrique Badaró. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 225.
[8] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do garantismo penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 98.