Percepção do crime de abuso de autoridade em face à violação das prerrogativas profissionais da Advocacia em Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI.
O artigo 133 da Constituição Federal preceitua que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestação no exercício da profissão, nos limites da lei“.
Em conformidade com a Carta Magna, o Legislador dispôs no artigo 5 da Lei nº 8.906 (Estatuto da Advocacia) que no exercício de mandato, “o advogado postula, em juízo, ou fora dele“.
O Legislador garantiu o exercício amplo da profissão, ao passo de garantir o direito do advogado de ingressar livremente “em qualquer edifício ou recinto em que funcione repartição judicial ou outro serviço público onde o advogado deva praticar ato ou colher prova ou informação útil ao exercício da atividade profissional…” (art. 7º, VI, c), bem como, o direito de ingressar livremente “em qualquer assembleia ou reunião de que participe ou possa participar o seu cliente, ou perante a qual este deva comparecer, desde que munido de poderes especiais” (art. 7º, VI, d).”
Deste modo, verifica-se que o Legislador não limitou o exercício profissional da advocacia à atuação perante o Poder Judiciário, ao contrário, permitiu que o seu exercício fosse realizado fora do juízo. Portanto, o advogado tem o direito de acompanhar seu cliente convocado a depor perante a Comissão Parlamentar de Inquérito- CPI.
Cumpre frisar que o Inquérito Parlamentar possibilita transformar testemunhas em indiciados e, até mesmo, em culpados.
Os direitos do advogado estão previstos no artigo 7º, III, do Estatuto da advocacia e da OAB, o qual prevê o direito do profissional de comunicar-se com seu cliente, pessoal e reservadamente; de interferir quando presente qualquer tipo de abuso de poder por parte da Comissão ou de seus membros e; impedir que seu cliente se autoincrimine.
O ilustre processualista penal, Dr. Aury Lopes, ensina sobre a Defesa Técnica promovida pelo profissional da advocacia, vejamos:
4.2.1. Defesa Técnica
A defesa técnica supõe a assistência de uma pessoa com conhecimentos teóricos do Direito, um profissional, que será tratado como advogado de defesa, defensor ou simplesmente advogado. Explica FENECH que a defesa técnica é levada a cabo por pessoas peritas em Direito, que têm por profissão o exercício dessa função técnico-jurídica de defesa das partes que atuam no processo penal, para pôr de relevo seus direitos.
A justificação da defesa técnica decorre de uma esigenza di equilibrio funzionale entre defesa e acusação e também de uma acertada presunção de hipossuficiência do sujeito passivo, de que ele não tem conhecimentos necessários e suficientes para resistir à pretensão estatal, em igualdade de condições técnicas com o acusador. Essa hipossuficiência leva o imputado a uma situação de inferioridade ante o poder da autoridade estatal encarnada pelo promotor, policial ou mesmo juiz. Pode existir uma dificuldade de compreender o resultado da atividade desenvolvida na investigação preliminar, gerando uma absoluta intranquilidade e descontrole. Ademais, havendo uma prisão cautelar, existirá uma impossibilidade física de atuar de forma efetiva.
Para FOSCHINI, a defesa técnica é uma exigência da sociedade, porque o imputado pode, a seu critério, defender-se pouco ou mesmo não se defender, mas isso não exclui o interesse da coletividade de uma verificação negativa no caso do delito não constituir uma fonte de responsabilidade penal. A estrutura dualística do processo expressa-se tanto na esfera individual como na social.
O direito de defesa está estruturado no binômio:
• defesa privada ou autodefesa;
• defesa pública ou técnica, exercida pelo defensor.
Por esses motivos apontados por FOSCHINI, a defesa técnica é considerada indisponível, pois, além de ser uma garantia do sujeito passivo, existe um interesse coletivo na correta apuração do fato. Trata-se, ainda, de verdadeira condição de paridade de armas, imprescindível para a concreta atuação do contraditório. Inclusive, fortalece a própria imparcialidade do juiz, pois, quanto mais atuante e eficiente forem ambas as partes, mais alheio ficará o julgador (terzietà = alheamento).
Deste modo, a fim de garantir o exercício do contraditório e da ampla defesa, deve ser assegurado ao convocado a comparecer na CPI, o direito de ser acompanhado por seu advogado, o qual deverá zelar pela aplicação da lei e impedir a prática de abuso do poder. Nesse sentido, confira-se o voto do Ministro do Egrégio Superior Tribunal Federal, Dr. CELSO DE MELLO, no julgamento do MS 23.576– DF:
O advogado – ao cumprir o dever de prestar assistência técnica àquele que o constitui, dispensando-lhe orientação jurídica perante qualquer órgão do Estado – converte a sua atividade profissional, quando exercida com independência e sem indevidas restrições, em prática inestimável de liberdade. Qualquer que seja o espaço institucional de sua atuação, ao Advogado incube neutralizar os abusos, fazer cessar o arbítrio, exigir respeito ao ordenamento jurídico e velar pela integridade das garantias jurídicas – legais ou constitucionais- outorgadas àquele que lhe confiou a proteção de sua liberdade e de seus direitos dentre os quais avultam, por sua inquestionável importância, a prerrogativa contra a auto-incriminação e ao direito de não ser tratado, pelas autoridades públicas, como se culpado fosse, observando-se, desse modo, diretriz consagrada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal eis porque “o Poder Judiciário não pode permitir que se cale a voz do Advogado, cuja atuação livre e independente há de ser, permanentemente, assegurada pelos Juízes e pelos Tribunais, sob pena de subversão das franquias democráticas e de aniquilação dos direitos do cidadão” e, assim sendo, “o ordenamento positivo brasileiro garante ao cidadão, qualquer que seja a instância do Poder que o tenha convocado, o direito de fazer-se assistir tecnicamente, por advogado, a quem incumbe, com apoio no Estatuto da Advocacia, comparecer às reuniões da CPI, nelas podendo, dentre outras prerrogativas de ordem profissional, comunicar-se, pessoal e livremente, com seu cliente, para adverti-lo de que tem o direito de permanecer em silêncio (direito este fundado no privilégio constitucional contra a autoincriminação), sendo-lhe lícito, ainda, reclamar, verbalmente ou por escrito, contra a inobservância de preceitos constitucionais, legais ou regimentais, notadamente quando o comportamento arbitrário do órgão de investigação parlamentar lesar as garantias básicas daquele – indiciado ou testemunha- que constituiu esse profissional do Direito
MS 23.576– DF, Pedido de Reconsideração, Informativo STF nº 176, de 9.2.2000.
A Suprema Corte concedeu a liminar, oportunidade em que enfatizou que”a Comissão Parlamentar de Inquérito, como qualquer outro órgão do Estado, não pode, sob pena de grave transgressão à Constituição e as leis da República, impedir, dificultar ou frustrar o exercício, pelo Advogado, das prerrogativas de ordem profissional que lhe foram outorgadas pela Lei nº 8.906/94″.
Desta forma, conforme preceitua o Informativo do STF nº 176, o desrespeito às prerrogativas do exercício da profissão”constitui inaceitável ofensa ao estatuto jurídico da Advocacia, pois representa, na perspectiva de nosso sistema normativo, um ato de inadmissível afronta ao próprio texto constitucional e ao regime das liberdades públicas nele consagrado.”
A fim de visar proteger o exercício da advocacia enquanto atividade constitucionalmente elencada como essencial à justiça, o legislador criou o artigo 7-B da Lei nº 13.869/2019, o qual define como crime de abuso de autoridade, a conduta de violar direito ou prerrogativa de advogado que estejam previstos nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º da referida Lei, quais são:
Art. 7º São direitos do advogado
II – a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia;
III – comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis;
IV – ter a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB;
V – não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades condignas, assim reconhecidas pela OAB, e, na sua falta, em prisão domiciliar; (Vide ADIN 1.127-8)
Desta forma, verifica-se que qualquer agente público pode cometer o crime de abuso de autoridade por violar as prerrogativas profissionais elencadas no artigo 7-B, haja vista que o tipo penal não limitou sujeito passivo aos membros do Poder Judiciário, conforme preceitua o artigo 2 do referido dispositivo.
O tipo penal prevê a pena de detenção, de 03 (três) meses a 01 (um) ano, e multa.
Além da penalidade prevista no tipo penal, a condenação por crime de abuso de autoridade poderá ensejar os seguintes efeitos:
Art. 4º São efeitos da condenação:
I – tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, devendo o juiz, a requerimento do ofendido, fixar na sentença o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos por ele sofridos;”
II – a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública, pelo período de 1 (um) a 5 (cinco) anos;”
III – a perda do cargo, do mandato ou da função pública.”
O parágrafo único do dispositivo dispõe que para a inabilitação para o exercício e a perda do cargo são condicionados à ocorrência de reincidência em crime de abuso de autoridade e não são automáticos, devendo ser declarados motivadamente na sentença.
Por fim, cumpre frisar que a iniciativa para propor a ação penal inerente ao crime de abuso de Autoridade é do Ministério Público, o qual poderá ser provocado pela vítima ou agir de ofício. No entanto, em caso de inércia em face da provocação, a ação poderá ser oferecida pela vítima ou de seu representante legal através do ajuizamento da ação privada subsidiária da pública, a qual poderá editar a queixa, repudiá-la ou oferecer denúncia substutiva, bem como, poderá intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de provas, interpor recursos e, a todo tempo, no caso de negligencia do querelante, retomar a ação penal.
Somente é possível a ação penal subsidiária da pública quando restar configurada inércia do Ministério Público, não sendo cabível nas hipóteses de arquivamento de inquérito policial promovido pelo membro do Parquet e acolhido pelo juiz. Nesse sentido confere-se:
No caso concreto, não houve desídia do órgão acusador que, conforme reconhecido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, propôs o arquivamento do inquérito policial, entendendo não haver condições de procedibilidade para o oferecimento da denúncia em razão da inexistência de relevância jurídica na conduta investigada.
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1508560/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 06/11/2018.
A ação privada subsidiária da pública só é possível quando o Órgão Ministerial se mostrar desidioso e não se manifestar no prazo previsto em lei. Se o Ministério Público promove o arquivamento do inquérito ou requer o seu retorno ao delegado de polícia para novas diligências, não cabe queixa subsidiária; se oferecida, a rejeição se impõe por ilegitimidade de parte, falta de pressuposto processual da ação.
STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 1049105/DF, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 18/10/2018.
Diante o exposto, verifica-se que a limitação ou o impedimento do exercício profissional do advogado durante a Comissão Parlamentar de Inquérito poderá configurar o tipo penal previsto no artigo 7-B da Lei de Abuso de Autoridade, haja vista que o profissional da advocacia possui o direito de comunicar-se com o seu cliente.
Brasília, 02 de junho de 2021.
Pedro França
– OAB/DF 49.306 –
Presidente da Comissão de Percepção de Crimes de Abuso de Autoridade no Distrito Federal – ABRACRIM/CPCAADF
Biografia
· Informativo do STF nº 176.
· Aury Lopes Junior, Direito Processual Penal, 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
· Renato Brasileiro de Lima. Nova Lei de Abuso de Autoridade. Salvador: Juspodivm, 2020.
· MS 23.576- DF, Pedido de Reconsideração, Informativo STF nº 176, de 9.2.2000.
· AgRg no AREsp 1049105/DF, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 18/10/2018.
· AgRg no REsp 1508560/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, julgado em 06/11/2018.