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Populismo penal: uma análise histórica

Como se sabe, em anos de eleições, propostas de leis visando o endurecimento penal começam a surgir como promessa de solução para os mais diversos tipos de embaraços humanos, geralmente tomando grandes proporções.

Exemplos recentes se dão com a aprovação pelo Senado Federal do texto-base do Projeto de Lei 2.253/2022, que extingue as saídas temporárias dos presos que cumprem as penas em regime semiaberto e, até mesmo, a proposição o Projeto de Lei 1904/2024, o qual, busca equiparar o aborto realizado após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio.

A intenção deste artigo não é esmiuçar as desastrosas consequências de uma política de endurecimento penal que protagoniza o encarceramento como meio de angariar votos, mas tentar decifrar suas origens e a causa de seu grande sucesso e, quem sabe, gerar dúvidas em alguns de seus adeptos.

Em uma contextualização histórica que comprova que o sistema de justiça é um espelho da sociedade em que atua, Carvalho (2010) identifica que a atual justiça criminal brasileira é o reflexo do pensamento inquisitório, institucionalizado e consolidado desde a colonização europeia, a qual trouxe ao país um sistema de gestão pública como um modelo idealizado, ou seja, completamente distinto da realidade brasileira.

Nesse sentido, tendo o encarceramento como meio de restrição de liberdade, algo extremamente invasivo, foi necessária uma forma de naturalização deste meio de controle social, conforme elucida Davis (2019):

Um poder dominante pode se legitimar promovendo crenças e valores compatíveis consigo próprio; naturalizando e universalizando tais crenças de modo a torná-las óbvias e aparentemente inevitáveis; denegrindo ideias que possam desafiá-lo; excluindo formas rivais de pensamento, mediante talvez alguma lógica não declarada mas sistemática; e obscurecendo a realidade social de modo a favorecê-lo. Tal “mistificação”, como é comumente conhecida, com frequência assume a forma de camuflagem ou repressão dos conflitos sociais, da qual se origina o conceito de ideologia como uma resolução imaginária de contradições reais. (DAVIS, 2019, p. 22).

Diante desse contexto, infere-se que o “medo” e a “sensação de segurança” são usados como forma de controle social nos moldes de uma cultura punitivista, que aponta o cárcere como forma de punição estatal – institucionalizando-o, de modo que pouco seja questionado, extinguindo a possibilidade de uma sociedade na qual este não é uma alternativa (SILVA, 2020).

Nas palavras de Mariana Belestrin Kobielski (2019, p. 30-39) sobre a função simbólica da sensação de segurança como discurso social:

Os processos de criminalização agem sobre determinados indivíduos (público facilmente identificado se observarmos os cárceres brasileiros) e determinados crimes – via de regra criminalidade de rua, que pode ser observada pelo policiamento ostensivo. Essa lógica tem por objetivo prover uma sensação de segurança, tendo em vista que a punição de crimes contra o patrimônio, por exemplo, tende a promover uma ideia de que “os criminosos estão sendo punidos”.

Pratt (2007), conceitua o populismo punitivista como aquele que faz menção às mudanças ocorridas nos complexos jurídicos penais e na justiça que os assola. Aduz o doutrinador que o populismo penal “representa a maior mudança na configuração do poder penal na sociedade moderna”, na medida em que conduz parcelas da população que se reconhecem como “ignorados pelos governos” (2007, p. 08 – 09).

No mesmo sentido, Gaio, fundamentado nos estudos de Pratt (2007), explica que o “[…] populismo nos diz os modos pelos quais criminosos e prisioneiros são vistos como favorecidos às expensas das vítimas de crimes e em particular daqueles que seguem as leis em geral.” (GAIO, 2011, p. 21), o que acarreta ainda mais o sentimento de descrença no sistema judicial vigente, em especial na esfera criminal.

O pupulismo penal alimentaria a raiva e o ressentimento, reconfigurando o poder para punir, elegendo a prisão como ferramenta central da nova política penal, ferramenta que estava em franca decadência desde os anos de 1960. O efeito maior é a deslegitimação da reabilitação como método de prevenção e faz com que as leis duras substituam as políticas sociais (GAIO, 2011, p. 22).

Coincidentemente ou não, a estrutura do populismo punitivista que atualmente se assola no país teve seu início na década de 1970, uma década após o início da crescente do crime no país, quando foi imposto um discurso acerca da lei e da ordem, utilizado como estratégia política para conseguir mais popularidade (REZENDE, 2016).

Rezende (2016) discorre que, especificamente no âmbito nacional, o discurso punitivista foi fruto de um período ditatorial e ganhou maior força após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e promulgação de leis que tipificam condutas como crimes, bem como sua inserção no discurso político popular.

Segundo Barrata (2016), o Estado busca legitimar suas ações de penalizar as condutas do direito natural que extrapolam o convívio harmônico da sociedade através do princípio do interesse sociedade, que seriam também prejudiciais ao convívio e à existência coletiva. Ou seja, referidas condutas devem ser punidas pois seriam de interesse público, cabendo ao Estado a tutela dos direitos fundamentais, dentre eles, a segurança pública.

Nesse sentido, percebe-se que os poderes executivo e legislativo “[…] muitas vezes, fundamenta o maior rigor penal nas representações sociais, na opinião pública e conteúdos apropriados pela mídia como indicativas da necessidade da representação penal.”, estabelecendo a crítica de que a produção legislativa nessa matéria deve ser marcada pelo imediatismo, utilizando-se do discurso de respostas pontuais à opinião pública (GAZOTO, 2010, p. 372).

Ou seja, “[…] o próprio Estado não tem interesse em educar a massa, pois prefere continuar a promover o status de garantidor. Assim, é mais fácil os governantes se manterem no poder. Quanto menos é a instrução do cidadão, mais fácil é realizar a sua manipulação.” (SCHMIDT, 2007, p. 9).

Concluindo, a abordagem punitivista das políticas penais revela um profundo enraizamento no sistema de justiça brasileiro, influenciado por um histórico de gestão pública autoritária e por uma necessidade de controle social através do medo. As recentes propostas legislativas, como o Projeto de Lei 2.253/2022 e o Projeto de Lei 1904/2024, exemplificam como o endurecimento penal é utilizado como uma ferramenta de ganho político, apelando para a sensação de segurança e respondendo a um clamor popular muitas vezes fomentado por discursos midiáticos e políticos.

Contudo, essa estratégia populista não só obscurece as causas reais da criminalidade como também perpetua um ciclo de encarceramento que deslegitima a reabilitação e ignora alternativas mais humanas e eficazes para a prevenção do crime. É imperativo, portanto, questionar e desafiar essas políticas, promovendo um debate mais profundo sobre a função e os objetivos do sistema penal em uma sociedade democrática.

*Elisa Fani Bayestorff, Advogada Criminalista; graduada pela UNISUL – Universidade do Sul de Santa Catarina; pós graduanda em Direito Eleitoral pela PUC MINAS: Advogada no escritório Koerich e Santos Advogados Associados e Nathalia Poeta Advocacia Criminal.

REFERENCIAS

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal. 6. ed. Tradução Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2011. E-book.

CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo (o exemplo privilegiado da aplicação da pena). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. E-book.

DAVIS, A. Estarão as prisões obsoletas?. Tradução de Marina Vargas. Rio de Janeiro: Difel, 2018. E-book.

GAIO, André Moysés. O Populismo Punitivo no Brasil. Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 5, ed. 12, 2011. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/csonline/article/view/17184

GAZOTO, Luís Wanderley. Justificativas do Congresso Nacional brasileiro ao rigor penal legislativo: graduação o estabelecimento do populismo penal no Brasil contemporâneo. 2020. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade de Brasília, Brasília, 2010. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/6661/3/2010_LuisWanderleyGazoto.pdf.

KOBIELSKI, M. B. Discurso da Punição: A absorção da manifestação popular punitivista pelo poder judiciário. Rev. bras. segur. Pública. São Paulo v. 13, n. 2, pg. 30-39, 2019. Disponível em: https://revista.forumseguranca.org.br/index.php/rbsp/article/view/969.

PRATT, John. Penal Populism. New York: Routledge, 2007.

REZENDE, Guilherme Reis de. O Pupulismo Punitivista e a legitimidade do Estado para punir. 2016. Monografia (Graduação em Direito – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufjf.br/jspui/bitstream/ufjf/3910/1/guilhermereisderezende.pdf.

SILVA, Guilherme Garcia da. Jornalismo policial e o caráter ideológico punitivista na mídia hegemônica. 2020. Monografia (Graduação em Especialista em Mídia, Informação e Cultura) – Universidade de São Paulo.2020. Disponível em: http://celacc.eca.usp.br/sites/default/files/media/tcc/2021/01/tcc_-_guilherme_garcia_da_silva.pdf. Acesso em: 28 out. 2022.

SCHMIDT, Augusto Silva. Crítica ao Poder Punitivo e a Seletividade na Criminalização. 2007. Monografia (Graduação em Direito) – Faculdade Castelo Branco. Colatina, 2007. Disponível em: http://monografias.brasilescola.com/direito/critica-ao-poderpunitivo-seletividade-na-criminalizacao.htm.

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