Por que a Descriminalização do aborto é necessária para garantir os direitos da mulher
Por: Luciana Pimenta
“O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões.”
Esta é a primeira frase de um acórdão – considerado histórico – proferido em 2012. O tema central era o aborto, mas as polêmicas e debates eram diferentes das que se viram recentemente. A frase, por outro lado, poderia ser repetida neste momento: estaria dentro do contexto.
Em 2012, o julgamento era de uma ADPF e o objeto era saber se a gravidez de fetos anencéfalos poderia ser interrompida legalmente e com assistência médica. Com 8 votos a favor, a ação foi julgada procedente e foi declarada inconstitucional a interpretaçãosegundo a qual a interrupção deste tipo de gravidez é considerada aborto, em qualquer das suas formas previstas no Código Penal (arts. 124, 126 e 128 do Código Penal).
O relator, Min. Marco Aurélio, citou trecho da obra “Sermão da Primeira Dominga do Advento”, do Padre Antônio Vieira, que, como a frase que abriu o acórdão (e este artigo) também merece transcrição: ‘E como o tempo não tem, nem pode ter consistência alguma, e todas as coisas desde o seu princípio nasceram juntas com o tempo, por isso nem ele, nem elas podem parar um momento, mas com perpétuo moto, e resolução insuperável passar, e ir passando sempre’.
A discussão foi longa e contou com a participação de diversos setores da sociedade civil. E 8 anos após a propositura da ação, entendeu-se que quando o feto é anencefálico não há potencial vida a ser protegida, e entendeu-se também que a Igreja e o Estado são instituições totalmente apartadas, e que uma não deve interferir na outra. Este ponto é sempre relevante, pois qualquer discussão sobre o aborto remonta a argumentos religiosos e/ou espirituais. Como se viu recentemente.
Ainda no julgamento desta ADPF, esclareceu-se o conceito de anencefalia: em resumo, ofeto anencéfalo é um morto cerebral com batimentos cardíacos e respiração. Debateu-se o grande confronto entre direito à vida (do feto) e direito de escolha (da mulher). Prevaleceu este, sob o argumento de que não se estaria diante de uma potencialidade de vida do feto.
Quatro anos se passaram, e não se discute mais tal questão. Mas a dicotomia vida versusescolha voltou à tona. E muito se falou, discutiu, brigou. Houve alvoroço. Defensores ferrenhos de ambos os lados. Especialmente nas redes sociais (que é onde tem nascido os mais diversos “experts” em assuntos polêmicos como este).
Vejamos os fatos.
Duas pessoas foram denunciadas pela suposta prática do crime de aborto com o consentimento da gestante e formação de quadrilha. Foram presas em flagrante, em 2013, mas o juiz concedeu-lhes liberdade provisória. O MP do Rio de Janeiro recorreu e o TJ daquele estado decretou a prisão preventiva. Em 2014, o STJ deferiu a cautelar para a revogação da prisão: os réus eram primários, com bons antecedentes e com trabalho e residência fixa em Duque de Caxias, e a prisão seria medida desproporcional, pois eventual condenação poderia ser cumprida em regime aberto.
No STF, a liberdade foi mantida, mas o debate ganhou novos contornos. O Ministro Luis Roberto Barroso, que não conheceu do HC, pois entendeu que se tratava de substitutivo de recurso, mas concedeu a ordem de ofício, entendeu que “…é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam ocrime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversosdireitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade.”
Pronto. Estava armado o circo.
Todos os tipos de fundamentalistas voltaram a erguer suas vozes, em todos os sentidos. Como também ocorreu em 2012. E repetiu-se, na opinião pública, a tentativa de abominar atos do Estado em razão de posições da Igreja.
O voto-vista foi muito esclarecedor: a mulher, sujeito de direitos sexuais e reprodutivos, não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a mulher, sujeito de direitos de escolhas existenciais, deve poder agir com a autonomia para exercer tais direitos; a gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez, deve ter sua integridade física e psíquica protegida; e “já que homens não engravidam”, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher.
Do ponto de vista jurídico, é importante mencionar, como fez o Ministro, que a criminalização do aborto viola o princípio da proporcionalidade. O delito é considerado crime contra a vida, ou seja, o bem jurídico tutelado é a vida do nascituro. Mas em verdade a adequação desta medida é bastante duvidosa: encarcerar aquele que comete o aborto, na imensa maioria das vezes, não “salva” o bebê. E mais: evita-se o aborto muito mais eficazmente com educação sexual distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho.
Por fim, trouxe o Ministro, ainda, argumentos sociais que merecem transcrição: “É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos.”
Como se não bastassem todos os pontos acima, o que mais se ouviu (como também ocorreu em 2012) foram argumentos de que o aborto não é permitido pelas leis de Deus, que é um absurdo tirar uma vida, que “quem não quer ter filho deve fechar as pernas” ou até mesmo “tirar o útero”. Diversas frases neste sentido expressaram, a nosso ver, uma grande maioria de mulheres que é contra o aborto, mas que nada sabem ou pensam sobre a criminalização de tal ato. E esta era a discussão. Não outra. Não se questionou se as pessoas fariam ou não aborto. Mas a esta pergunta, as respostas foram dadas. Respostas ferrenhas e agressivas.
Vejamos agora outros argumentos. Não mais do Ministro, mas que a eles se juntam.
Como bem disse Padre Antônio Vieira, o tempo passa. E não há o que fazer contra este fato. Com o passar do tempo, a sociedade muda. E é bem fácil exemplificar o efeito do passar do tempo nas leis penais. Basta lembrarmos dos crimes de “Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude” e “Induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. O conceito de “mulher honesta”, que um dia pode ter sido válido e aceitável, não o é mais hoje. Tais condutas deixaram, portanto, de ser crime. Por outro lado, criou-se, recentemente, o crime de sequestro-relâmpago, inimaginável no mesmo ano de 1940, quando o Código Penal entrou em vigor.
A escolha por atos penalmente puníveis e o processo de descriminalização de conduta(s), devem acompanhar o tempo e a sociedade. E na sociedade dos tempos de hoje, é impossível fechar os olhos para a existência do aborto. Ele existe. E vai continuar existindo. Independentemente de ser crime ou não.
Diante disto, surge a real pergunta que precisa ser respondida. O que preferimos: criminalizar a mulher, que faz um aborto numa clínica clandestina, sem um mínimo de higiene e condições, que se submete a um procedimento cirúrgico realizado por quem não tem preparo algum, ou cuidar dela? Esta mulher que, por razões que nem sequer vale discutir, vai fazer o aborto, de uma forma ou de outra. Preferimos deixar esta mulher morrer? Preferimos colocá-la num presídio e estigmatizá-la para sempre?
O ponto central da questão (e que talvez tenha sido esquecido no meio das brigas de rede social) é esse. Não entra em conceitos íntimos. Não se obrigou ninguém a abortar. Não se obrigou ninguém a incentivar o aborto. Não se obrigou ninguém a mudar de crença. Até porque discussão suplanta a crença. Como também suplantava em 2012.
Por fim, diga-se: a recente decisão não teve os mesmos efeitos que teve a decisão a respeito do aborto de fetos anencefálicos. Esta realmente funciona, hoje, quase como lei (no dizer leigo): não é mais crime este tipo de aborto. Médicos podem realizar o procedimento. Mulheres podem optar por seguir a gestação ou interrompê-la.
Na decisão de agora, não se descriminalizou nada no campo genérico. O julgamento não foi feito pelo plenário do Supremo. Nenhum juiz está obrigado a seguir este posicionamento. Um médico que, hoje, realiza um aborto, a princípio comete um crime sim. Também comete crime a mãe que consente ou opta pelo aborto. A lei não mudou. O que mudou foi a situação daquelas pessoas, julgada neste caso específico, que cometeram o crime, em 2013: agora elas não são mais consideradas culpadas.
O que mudou foi a sociedade. E o modo de pensar dos ministros. E isto abriu uma porta (ainda que pequena) para reflexões. Esperemos que essas mudanças continuem.
*Luciana Pimenta é coordenadora pedagógica no IOB Concursos, advogada e revisora textual.