Porte de arma: o que resta após a revogação dos decretos 9785/19 e 9844/19?
O porte de arma e a facilitação do acesso às armas foi, e continua sendo, uma das principais bandeiras defendidas pelo Presidente Bolsonaro, responsável não só por sua eleição, como também pela eleição de boa parte dos novos congressistas.
Quem acompanha o assunto de perto, viu as diversas alterações de decretos que ocorreram recentemente. Primeiro se editou o Decreto 9785/2019, que já previa uma série de atividades como atividades de risco. Posteriormente o decreto 9844/2019 revogou o primeiro e veio com outros dois decretos. No mesmo dia foi publicado o decreto 9847/2019, que revogou ambos os decretos, não prevendo mais nenhuma categoria como atividade de risco. Fato é que direitos foram reconhecidos, procedimentos foram alterados, centenas de profissionais criaram expectativas e ingressaram com o pedido de porte, e, por fim, após forte pressão do congresso, tudo se perdeu…. aparentemente.
Ocorre que esse vai e vem de decretos, criou um sério debate sofre os efeitos e consequências ocasionados na nação, principalmente para aqueles que peticionaram requerendo o porte de arma, visto que não houve um mero pedido, mas por trás disso há um dispêndio financeiro para apresentar os documentos que comprovam os requisitos legais. Com a revogação do decreto, paira a dúvida sobre o que irá ocorrer com tais pedidos.
O primeiro ponto a ser observado nos decretos presidenciais, diz respeito à natureza do decreto, ou seja, se a enumeração das atividades de risco possui natureza declaratória ou constitutiva. Tal distinção é importante para entendermos os efeitos decorrentes da revogação do decreto. Enquanto o ato constitutivo cria direitos, o ato declaratório apenas reconhece um direito já existente. No primeiro caso, a revogação produz efeitos sobre o direito criado, já no segundo caso a revogação não atinge o direito, vez que ele já existia anteriormente, tendo sido apenas reconhecido.
No caso do decreto presidencial, por ter função de regulamentar a lei (art. 84, IV da CF), este não cria direitos ou obrigações, vez que nos termos do art. 5º, II da CF, somente lei tem o poder de criar obrigação. Deste modo, podemos chegar a conclusão que o decreto presidencial, por não ter a prerrogativa de criar ou modificar direitos, possui natureza declaratória, apenas reconhecendo direitos já existentes com a finalidade de regulamentar a norma afim de melhor orientar os agentes estatais.
Nesse entendimento, tanto o decreto 9785/2019 quanto o decreto 9844/2019, ao ditarem atividades presumidamente de risco, estavam delimitando rol exemplificativo, reconhecendo que tais atividades já geravam risco aos profissionais ali previstos. Não se trata de constituir um novo direito a tais profissionais, o que seria ilegal, mas reconhecer que a atividade por eles exercida gera risco excepcional, risco esse que, de acordo com os ditames legais, autoriza a concessão do porte de arma.
Seguindo tal raciocínio, podemos concluir que, por ser ato declaratório, que apenas reconhece condição pré-existente, a revogação dos decretos supra-citados não atinge o ato substancial que foi reconhecido pelo Estado, qual seja o risco presumido do exercício daquelas atividades.
Deste modo não é possível sustentar que, com a revogação dos decretos, as atividades neles previstas, tais como Conselheiros Tutelares, Jornalistas, Advogados, Guardas Portuários, entre outros, perderam o direito de pleitear o porte de arma de fogo. De fato a presunção de risco perdura, devendo ser aceita pela Autoridade Policial (Delegado Federal) para superar a análise da efetiva necessidade.
Nesse interim, importante esclarecer o motivo do uso do verbo pleitear. Veja bem, não se trata de um direito posto, ou seja, aquelas categorias não podem ir a Polícia Federal simplesmente com o decreto debaixo do braço para pedir a autorização de porte, é necessário o cumprimento de outros requisitos.
Os requisitos para a concessão do porte de arma de fogo, podem se subdividir em dois: os objetivos e os subjetivos. Os objetivos são aqueles que se comprovam documentalmente, quais sejam, idade mínima de 25 anos, residência fixa, trabalho lícito, aptidão técnica e psicológica e já possuir uma arma registrada em seu nome.
O requisitos subjetivo, juridicamente conhecido como discricionário, é a analise da efetiva necessidade, realizada pelo Delegado Federal caso a caso. Segundo a lei, a efetiva necessidade será comprovada pela atividade de risco ou grave ameaça a integridade física. Ocorre que mesmo juntando Boletins de Ocorrência, ou demonstrando que sua atividade é perigosa, é praxe dos Delegados negarem os pedidos, justamente por ausência de regulamentação para delimitar o que é atividade de risco e em quais casos será reconhecida a grave ameaça suficiente para a concessão do porte de arma.
Os decretos 9785/2019 e 9844/2019 vieram justamente para tapar tal lacuna, criando linhas-guia para orientar a atividade do Delegado Federal.
Tais decretos, ao exemplificarem atividades de risco, além de guiar o Delegado Federal, eliminaram o elemento subjetivo, ou seja, a discricionariedade para as atividades ali previstas, visto que passaram a ser reconhecidas formalmente como atividades de risco. Para tais atividades, todos os requisitos passaram a ser objetivos, ou seja, estavam sujeitos a comprovação documental, superada a analise subjetiva do Delegado de Policia, que apenas fiscalizaria a comprovação dos requisitos.
Nesse ponto importante frisar que, apesar de não ser um direito posto, conforme dito acima, os profissionais previstos nos decretos 9785/2019 e 9844/2019, que preenchiam todos os requisitos para a concessão do porte, podem, além de sustentar a presunção da atividade de risco, o direito adquirido, vez que preenchiam todos os requisitos previstos na lei.
Para explicar para o leitor, direito adquirido é o fenômeno jurídico que garante o exercício do direito, mesmo quando a norma que lhe garantiu aquele direito não existe mais, desde que, quando da vigência da norma, o cidadão preenchia todos os requisitos para o exercício do direito.
Deste modo, o conselheiro tutelar que preenchia todos os requisitos previstos na lei, e já descritos acima, e que na época da vigência dos decretos já era concelheiro tutelar, possui direito adquirido, devendo ter garantido o exercício de tal direito.
Importante esclarecer que direito adquirido visa justamente garantir a segurança jurídica, que nada mais é do que a confiança do cidadão no Estado, suas leis e seus direitos. Trata-se portanto de base de própria república, e assim sendo, previsto na Constituição no art. 5º, XXXVI.
Ressalta-se que o fato da norma revogada ser um decreto, nada afeta o direito adquirido. Como já vimos, não houve a constituição de um direito, mas apenas seu reconhecimento, e mesmo que não fosse assim, a Constituição Federal, ao tratar da proteção ao direito adquirido, apesar de falar em lei, deve ser interpretada de maneira ampliada, englobando todas as normas jurídicas.
Concluímos assim que os profissionais previstos nos decretos 9885/2019 e 9844/2019, mesmo tendo tais normas sido revogadas, possuem ainda o direito de pleitear o direito ao porte de arma, seja por que a presunção do risco de suas atividades permanece, seja por que, os profissionais que preenchiam os requisitos na época de vigência da norma, possuem direito adquirido quanto a tal concessão.