PRECEDENTE INTERNACIONAL – Corte Interamericana condena Argentina por critérios em abordagens policiais
O Estado argentino foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por duas prisões decorrentes de abordagens policiais, justificadas apenas por “atitude suspeita”. A sentença do caso Prieto & Tumbeiro vs. Argentina foi divulgada na última terça-feira (6/10) e já é considerada paradigma para casos brasileiros.
Tanto Prieto quanto Tumbiero foram presos nos anos 1990, em Buenos Aires. O tribunal entendeu que houve restrições de direitos por ação policial e que as prisões foram ilegais, já que foram feitas sem ordem judicial ou flagrante.
O tribunal afirmou que o uso de estereótipos “pressupõe uma presunção de culpa contra qualquer pessoa que se enquadre neles, e não a avaliação caso a caso dos motivos objetivo que efetivamente indique que uma pessoa está ligada ao cometimento de um crime”. Na sentença, lembram ainda que as detenções com bases discriminatórias são “manifestamente desarrazoadas e, portanto, arbitrárias”.
No caso concreto, a corte afirmou que não havia indício suficiente e razoável sobre a participação deles em atos criminosos. Os casos foram analisados separados para determinação de medidas de reparação, como indenização.
Tumbeiro, por exemplo, foi preso unicamente porque não reagir como os agentes entenderam ser correto e por usar uma roupa julgada por eles como inapropriada.
A corte declarou a violação dos direitos às garantias pela falta de controle judicial adequado nas outras instâncias. Concluiu que o Estado deve responder pela violação do direito à liberdade pessoal, garantias judiciais, proteção da honra e dignidade, além da igualdade perante a lei e dever de não discriminação.
A sentença determina que sejam adaptados os regulamentos internos para evitar arbitrariedades em prisão, revista pessoal ou revista de veículo e que seja implementado um plano de treinamento para as forças policiais de Buenos Aires e da Polícia Federal Argentina, bem como o Ministério Público e Judiciário, incluindo informações sobre a proibição de basear as prisões em “fórmulas dogmáticas e estereotipadas”.
Também fica determinada a produção de estatísticas oficiais sobre o desempenho das Forças de Segurança em matéria de prisões, buscas e buscas. A decisão deverá ser publicada no Diário Oficial e em algum jornal de circulação nacional, além do site oficial do Poder Judiciário.
Pegando carona
A decisão é considerada parâmetro para que outros países, incluindo o Brasil, regulem e fiscalizem suas polícias, conforme explica o advogado Hugo Leonardo, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Eles participaram do julgamento como amicus curiae, enviando para a corte dados sobre a letalidade brasileira.
“O preconceito institucionalizado nas diversas agências penais historicamente foi responsável para a enorme seletividade penal e o arbítrio praticado pelas forças de segurança”, diz o advogado, que defende que a coerção estatal seja “regida por parâmetros e protocolos objetivos”.
Segundo o IDDD, a falta de critérios é um dos motivos para os números massivos de abordagens. Conforme dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, somente no estado, foram registradas quase 79 milhões de abordagens entre 2015 e 2019.
A legislação brasileira não exige que policiais registrem detalhes das abordagens, de forma que não há mecanismos para corrigir a margem de erro que esse tipo de procedimento ostenta atualmente.
Outra ponta solta trata dos testemunhos de policiais em processos criminais. A palavra de policiais é o que mais influencia juízes em casos de tráfico, conforme mostrou a pesquisa Tráfico e sentenças judiciais — uma análise das justificativas na aplicação de Lei de Drogas no Rio de Janeiro, produzida pela Defensoria Pública fluminense e pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) do Ministério da Justiça.
A pesquisa revela que em 53,79% das condenações por tráfico de drogas no Rio de Janeiro, a palavra dos policiais foi a única prova usada pelo juiz para fundamentar sua decisão. E em 71,14% eles foram as únicas testemunhas dos processos.
O problema já é conhecido por operadores do Direito. Tanto o Núcleo de Estudos de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) quanto o juiz da Vara de Execução Penal de Manaus, Luís Carlos Valois, em sua tese de doutorado na mesma instituição, verificaram o percentual de 74% de autos de prisão em flagrante sem a palavra de testemunhas que não os policiais envolvidos. Veja aqui a série de reportagens da ConJur sobre a guerra às drogas e a superlotação dos presídio.
O mesmo foi visto pelo juiz substituto da Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, Marcelo Semer. “Os juízes colocam os policiais numa forma absolutamente abstrata, como pessoas honestas que fizeram seus concursos e que defendem a lei e a ordem e, portanto, devemos acolher suas manifestações, ignorando que vivemos no país onde existe maior violência policial contra civis do mundo”, disse em entrevista à ConJur.
Segundo Hugo Leonardo, o Poder Judiciário brasileiro é conivente com esse tipo de prática e “precisa entender que, enquanto continuar a chancelar essas condutas, é corresponsável pelas barbaridades praticadas pelos policiais nas ruas e nos departamentos de polícia”.
“O ‘tirocínio’ policial e a fundada suspeita são exemplos de hipóteses subjetivas que abrigam o preconceito e os desmandos da polícia. Não há mais espaço para essas práticas!”
A manifestação do IDDD contou com participação da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Eles analisaram mais de 100 acórdãos de apelação criminal no Tribunal de Justiça de São Paulo de 2016 a 2019. A conclusão: a fundada suspeita que justifica as abordagens policiais é, em geral, baseada em critérios subjetivos.
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Fernanda Valente – Conjur