Prisões e Direito ao Silêncio
No processo penal brasileiro atual, o direito ao silêncio passou a ser a principal garantia para o exercício eficiente do direito de defesa. Digo isto, porque as investigações criminais se tornaram cada vez mais complexas, sobretudo em razão da evolução tecnológica e, consequentemente, dos meios e métodos utilizados pelos órgãos oficiais de investigação, onde a coleta de dados e informações sobre o investigado criminal passaram a ocorrer de forma extremamente detalhada e organizada.
Em que pese o aparelhamento dos referidos órgãos, a Constituição assegura ao investigado a paridade de armas, ou seja, há o direito de conhecer com completude o que está sendo acusado para poder contestar, justificar ou mesmo assumir a autoria do que foi produzido pela acusação.
Exemplo importante foi o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça sobre a ilegalidade do acesso às informações contidas nos aplicativos de celular sem prévia ordem judicial no momento da prisão em flagrante do investigado (RHC/MG nº. 89.981, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma do STJ, julgado em 05/12/2017).
Em razão do objeto do presente artigo tratar sobre prisões, abordaremos a utilização do nemo tenetur se detegere em um primeiro momento quando da prisão em flagrante e, em um segundo momento, quando das prisões temporárias e preventivas durante as investigações.
Com relação ao primeiro momento, de prisão em flagrante, duas questões precisam ser ponderadas, onde uma é a do investigado dever ser cientificado expressamente sobre o seu direito de permanecer em silêncio e de não produzir provas contra si pela autoridade policial, agente de polícia, servidor público ou membro do Ministério Público que esteja conduzindo ou fazendo parte das investigações criminais.
Esta ciência deve ser documentada pela autoridade responsável pela investigação, especificando o horário que informou e quem estava presente quando o investigado foi cientificado sobre seu nemo tenetur se detegere. Essa obrigação de formalização da comunicação do direito ao silêncio se dá em decorrência da hipossuficiência do investigado criminal e para evitar que a autoridade responsável pela investigação alegue que informou e o investigado afirme que não foi cientificado, restando a palavra de um contra a do outro.
A segunda é a da necessidade do investigado saber do que está sendo acusado e, em razão disso, ter a possibilidade concreta e a capacidade de decidir se irá ou não se manifestar sobre qualquer coisa que possa lhe beneficiar ou, principalmente, lhe prejudicar imediata e futuramente.
Sobre tais circunstâncias já decidiu o Supremo Tribunal Federal (HC 80949-RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma do STF, DJ 14/12/2001), quando apontou pela ilegalidade das declarações prestadas por um investigado criminal que confessou suposto crime em conversa informal com policiais dentro de Delegacia de Polícia, tendo sido gravado clandestinamente pelos servidores públicos sem que houvesse informação sobre seu direito ao silêncio e sem que a ciência tenha sido formalmente documentada.
Outro momento importante, com relação ao nemo tenetur se detegere, se dá quando há prisão temporária ou preventiva, vez que nestes casos já há investigação antecedente, onde muitas vezes existem determinações judiciais de quebra do sigilo fiscal e bancário, interceptações telefônicas, realização de perícia de geolocalização do telefone celular do investigado e oitivas de testemunhas.
Acontece que, em várias comarcas do Brasil, os mandados de prisão preventiva e temporária são cumpridos em conjunto com os de busca e apreensão, o que, em alguns casos, faz com que a autoridade responsável pela investigação e seus agentes, sob o argumento de evitar alarmar o investigado, coletem todos os bens e documentos determinados judicialmente, conversem informalmente com o investigado e, apenas ao final, muitas vezes sem a presença do advogado de defesa, informem que o investigado deverá os acompanhar para a Delegacia de Polícia, pois está preso.
Além disto, o mandado de prisão preventiva ou temporária rotineiramente vem desacompanhado da ordem judicial que decretou a medida cautelar, sendo que muitas vezes o único documento que o acompanha é um resumo do decreto prisional, o que impossibilita ao investigado de saber o risco à cautelaridade processual que lhe levou à prisão.
Por isso, como verdadeira regra de defesa, é importante blindar o investigado, em outras palavras, aconselhar ao investigado para que não fale nesse momento perante a autoridade responsável pela investigação.
Isto é extremamente importante e pertinente, pois o art. 196 do CPP permite que o investigado criminal seja interrogado à qualquer momento da investigação, instrução judicial e, com base no art. 616 do CPP, até mesmo pelos Tribunais em grau de recurso. Logo, é essencial fazer valer, concretamente, o interrogatório como um meio de defesa.
O defensor deve aconselhar ao investigado que ele não deve falar neste momento, porque poderia terminar prestando declarações que provavelmente iriam comprometê-lo futuramente, vez que não conhece a investigação de forma completa e está em um momento extremamente frágil psicologicamente, pois acabou de ter a liberdade retirada.
Disto decorre a importância de compreender que o investigado criminal não é, não deve e não pode ser obrigado a contribuir com as investigações. Dito de outra maneira, cabe ao investigado se defender e, se quiser, contribuir com as investigações mediante a confissão, colaboração premiada ou com a realização de acordo de não persecução penal, sendo que tais escolhas se tratam de verdadeiro direito subjetivo do investigado.
Há também grande relevância na obrigação existente de que a autoridade responsável pela investigação deve garantir que o investigado seja assistido por seu defensor já constituído quando de seu interrogatório durante a investigação policial ou procedimento de investigação criminal, todavia, a jurisprudência está deixando isso de lado por considerar a ausência da defesa técnica durante o interrogatório como mera irregularidade e que as nulidades do inquérito policial não perseguem a ação criminal dele decorrente.
Acontece que o artigo 7º, XXI, da Lei nº. 8906/94 (Estatuto da OAB) é claro ao estabelecer que o investigado deve ser assistido por seu defensor constituído sob pena de nulidade do interrogatório e de todos os depoimentos e elementos probatórios/investigatórios dele decorrentes.
Nesse ponto, é importante sim uma maior atuação da Ordem dos Advogados do Brasil para fazer valer a real força e relevância da advocacia na defesa dos direitos do investigado criminal.
Assim sendo, resta evidente que nemo tenetur se detegere é a pedra da esquina para que o investigado possa se defender de maneira estratégica e preservar o seu estado de liberdade, não podendo seu defensor ser omisso com relação a isto, nos termos do art. 133 da Constituição da República.
Lucas Sá Souza
Advogado Criminalista e Professor