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Projeto de dez medidas contra a corrupção deve ser aprovado integralmente pelo Congresso? NÃO! (Por Gustavo Mascarenhas e Rafael Tucherman)

INCENTIVO AO ABUSO DE PODER
“O que eles têm que fazer? Têm que aprovar, na integralidade, as dez medidas.” Com essas palavras, ditas em recente debate, uma procuradora da República exortou o Congresso a aprovar o pacote anticorrupção elaborado pelo Ministério Público Federal.
Não é mero acaso o pendor autoritário desse discurso, segundo o qual o Poder Legislativo estaria reduzido a um reles órgão homologatório dos desígnios do Ministério Público: ele reflete o autoritarismo que permeia muitas das dez medidas.
Em primeiro lugar, o pomposo título esconde que as dez medidas compreendem, na verdade, mais de cem alterações normativas, que, em sua maioria, aplicam-se a processos por qualquer crime, não só o de corrupção. Trata-se de uma ampla reforma, que os procuradores pretendem ver aprovada, a toque de caixa, até o fim deste ano.
Em atitude recorrente nos regimes autoritários, as “dez medidas” atacam o habeas corpus, alvo de seis diferentes restrições ao seu cabimento. Vale dizer: para o Ministério Público, o problema não é o Estado praticar ilegalidades contra os acusados, mas a possibilidade de os acusados levarem essas ilegalidades ao crivo dos tribunais, com a rapidez que só o habeas corpus permite.
Impressiona também o incentivo que o pacote dá aos já frequentes abusos cometidos por nossas autoridades investigativas.
Ao permitir o aproveitamento das provas ilícitas, caso obtidas de “boa-fé” -seja lá o que isso signifique-, e, pior ainda, ao legitimar inclusive as colhidas com má-fé -fruto de invasões de domicílio, grampos ilegais e, no limite, até mesmo de coação física-, desde que “usadas pela acusação” para “refutar álibi” da defesa, o recado está dado: pode ser proveitoso lançar mão de atrocidades para desvendar crimes.
Pretendem ainda as “dez medidas” instalar uma rede nacional de informantes, composta por qualquer cidadão que resolva espionar o seu próximo em troca de uma recompensa financeira estabelecida em lei. Providência semelhante era adotada na Alemanha Oriental, lá também em prol da segurança pública.
A disseminação da desconfiança mútua no combate à corrupção tem um capítulo específico voltado à administração pública. A rigor das “dez medidas”, as repartições serão palco de um teatro do crime, em que servidores incitarão seus pares a cometer ilícitos. A pretexto de prevenir crimes futuros, o Estado estará criando crimes presentes, que, apesar de encenados, sujeitarão o ator involuntário a sanções administrativas ou criminais bastante reais.
Curiosamente, a realização desse “teste de integridade” lombrosiano será obrigatória para a polícia, mas não para o Ministério Público.
Talvez o mais grave de tudo seja o silêncio dos procuradores sobre uma singela questão: em um sistema carcerário que já é o quarto maior do mundo e sofre com um deficit de mais de 200 mil vagas, onde serão encarcerados os milhares de novos presos que advirão da implantação das “dez medidas”?
Do alto de sua pregação salvacionista, o Ministério Público parece não ter se ocupado de problema tão mundano.
Não há dúvida de que a iniciativa tem méritos, a começar por traduzir a indignação cívica contra a corrupção em propostas concretas para enfrentá-la. Debatê-las e rejeitá-las em seus excessos, porém, longe de significar complacência com o crime, constitui direito da sociedade e dever do Congresso.
Em temas sérios e complexos como esse, mais vale a temperança do que a boa intenção.
GUSTAVO MASCARENHAS, 26, é advogado criminalista. Foi pesquisador de direito penal na Utrecht University (Holanda) e é membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
(Rafael Tucherman, é advogado criminalista membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Fonte: Jornal Folha de SP)

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